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24 de janeiro de 2017

Novos rumos da psiquiatria e sua influência na clínica e na pesquisa

Entender os rumos da psiquiatria americana é fundamental para entender a tendência que afeta a pratica clínica no mundo todo. O texto do psicanalista Marcelo Veras, publicado no blog da Subversos, explica bem as consequências que as políticas de saúde trazem para a clínica.  
Submundos
O que podemos esperar da troca do mais alto posto da psiquiatria americana, a direção do National Institut of Mental Health (NIMH)? Por treze anos a entidade foi comandada pelo notório Dr. Thomas Insel. Insel ganhou repercussão mundial quando a esperada quinta edição do DSM, que vinha sendo organizada pela Associação de Psiquiatria Americana, não foi referendada pelo NIMH no exato momento de seu lançamento. O DSM5 foi elaborado em meio a grandes polêmicas e resistências, principalmente quando o mundo descobriu o alto grau de comprometimento dos psiquiatras responsáveis com a indústria farmacêutica. Quando o NIMH desautorizou o DSM5 muitos comemoraram, pois a expectativa era de um manual ainda mais repleto de transtornos, aumentando enormemente o que poderia ser considerado uma patologia mental. Contudo, como chamou atenção Eric Laurent, em um artigo escrito logo após o anúncio do NIMH, não haveria muito o que comemorar, já que a crítica de Insel era precisamente que o DSM5 não era suficientemente “científico”, deixando entrever que o futuro da psiquiatria seria seu desaparecimento no oceano das pesquisas em neurociências[1].
As pesquisas translacionais
Efetivamente, a gestão Insel priorizou a neurociência e estrangulou progressivamente o orçamento para a pesquisa clínica. Afinal, com toda a crítica feita ao DSM, este era ainda um instrumento conectado à experiência clínica de profissionais que recebiam pacientes todos os dias. A partir de 2010, o NIMH instalou um novo critério para aprovação de pesquisas , chamado de RDC (Research Domain Criteria), que atrelava qualquer solicitação de financiamento à pesquisa translacional. O que é a Pesquisa Translacional? Trata-se de uma tendência mundial, crescente na pesquisa de doenças de todos os tipos, que visa agilizar a transferência de resultados da pesquisa básica à pesquisa clínica, afim de produzir benefícios para a comunidade como um todo. Em princípio a ideia é muito boa, pois visa reduzir o hiato entre a ciência pura e a prática clínica. As pesquisas translacionais no caso da psiquiatria envolvem sempre, em uma mesma pesquisa, tanto os genes, moléculas produzidas, células, e circuitos cerebrais, quanto o comportamento e os resultados clínicos obtidos.
Contudo, a crença de que o futuro da psiquiatria está no cérebro é tão consolidada, que solicitações de financiamento de pesquisas puramente clínicas passaram a ser sistematicamente negadas a partir dos novos RDC. A alegação do NIMH é sempre de que faltam nas propostas simplesmente clínicas uma “neurosignature”, espécie de selo de qualidade que implica a presença no projeto encaminhado de procedimentos atrelados aos pilares das neurociências. Em uma recente carta ao Times, o psiquiatra John Markowitz relata como ficou difícil propor uma pesquisa puramente clínica auspiciada pelo NIMH, já que, progressivamente, os fundos foram todos dedicados às pesquisas que incluem as neurociências. Atualmente apenas dez por cento do bilionária verba do NIMH é dedicada à trabalhos puramente clínicos[2]. 
Remédios para todos
Quem então se interessa pelos ensaios clínicos? Percebe-se que o espaço deixado vago foi fartamente ocupado pela indústria farmacêutica. Enquanto os neurocientistas se dedicam às pesquisas translacionais, a clínica psiquiátrica, na ponta, passa a ser orientada de modo cada vez mais explícito por protocolos duvidosos que levaram o consumo de medicamentos à patamares sem precedentes.
Dentre os projetos mais controversos encontra-se o Practice Support Program for Child and Youth Mental Health (PSP-CYMH), coordenado pelo Dr. Stan Kutcher. Trata-se de um programa que visa identificar patologias psiquiátricas entre os jovens em idade escolar. O programa foi largamente impulsionado por alguns crimes e suicídios cometidos por adolescentes em suas escolas, e que ganharam grande repercussão na imprensa. Nele, médicos generalistas recebem 2600 dólares por 10 horas de capacitação, para identificar precocemente possíveis distúrbios psiquiátricos em jovens em idade escolar. Assim, durante as visitas rotineiras para vacinação e demais check-ups anuais, os jovens pacientes passaram a responder a um questionário protocolizado visando identificar possíveis situações de depressão, ansiedade ou outro sintoma psiquiátrico.
A constatação foi que, com o questionário, o número de jovens diagnosticados e tratados com medicamentos aumentou para proporções muito acima da realidade. Um dos mais preocupantes métodos para identificar distúrbios de ansiedade entre os jovens é o SCARED, Screen for Child Anxiety Related Disorders[3]. Enquanto a maioria dos dados conhecidos indicava que não mais que 10 por cento dos jovens apresentam distúrbios de ansiedade, com o SCARED o numero de jovens diagnosticados e tratados foi simplesmente o triplo[4]. O questionário, elaborado pelo Dr. Kutcher, vem sendo questionado por inúmeras entidades. A crítica é que ele induz os generalistas a aumentarem ou persistirem com a prescrição de Fluoxetina em jovens que muito provavelmente não possuem patologia alguma, simplesmente problemas cotidianos do enfrentamento de situações escolares difíceis.
Chama ainda atenção que o programa não faz nenhum incentivo à escuta ou terapias não medicamentosas, simplesmente a prescrição, daí que ele vem sendo ironicamente chamado, ao invés de Educação Médica, de Programa de Promoção de Drogas.
Como então encontrar o sujeito do sofrimento psíquico? O país está dividido. Há os que apostam milhões de dólares na elucidação biológica precisa das doenças psiquiátricas, em pesquisas cuja duvidosa comprovação pode levar décadas até produzir algum sentido prático na clínica, mas há igualmente os que desenvolvem sua prática clínica em um meio completamente distorcido pelo charme da indústria farmacêutica[5].
Os devaneios podem ir mais longe. Um experimento recente[6]] permitindo que adultos pudessem atingir o ouvido absoluto[7], condição que normalmente somente se adquire na infância, levantou a hipótese de que é possível recuperar a neuroplasticidade neuronal da juventude. A partir desses dados alguns pesquisadores já cogitam uma intervenção muito mais ousada, se não seria possível apagar os traumas infantis e permitir ao sujeito um novo ponto zero em sua própria história[8]. Ignora-se completamente que nossos traumas, assim como os sintomas decorrentes, são constitutivos de nossa própria existência.
Uma bilionária foraclusão do sujeito
“Os avanços na genética humana estão remodelando a maneira como entendemos muitas doenças mentais, incluindo a esquizofrenia. Sabemos infinitamente mais sobre as mudanças de DNA… O próximo passo crítico é aprender como eles produzem a doença.”[9] Esse comentário da Dra Pamela Sklar compõe uma matéria com as expectativas de seis grandes pesquisadores no domínio das doenças psiquiátricas publicado recentemente na Revista Cell, uma das mais prestigiosas revistas científicas do mundo. Os comentadores estão todos muito otimistas e pedem ainda mais fundos para continuar a desenvolver suas pesquisas: “Precisamos declarar guerra à doença mental, que afeta a vida de uma em cada quatro pessoas, e priorizar o financiamento de pesquisas neurobiológicas inovadoras para uma melhor prevenção, diagnóstico, intervenção precoce e tratamento.”, alega no mesmo artigo Jeffrey Borenstein, daBrain & Behavior Research Foundation.[10]


Não é provável que o orçamento anual de 1,5 bilhões de dólares do NIMH tenha destino muito diferente nas mãos de seu novo diretor. Joshua Gordon assume o novo posto após uma larga experiência como professor no Columbia University Medical Center, onde é o responsável pelo currículo de neurociências[11]. Suas pesquisas, focadas na atividade neural de camundongos portadores de mutações com relevância em doenças psiquiátricas, deixam entrever que não é para breve uma reconciliação entre a Associação de Psiquiatria Americana e o Instituto Nacional de Saúde Mental. São dois gigantes de peso. Se o orçamento do NIMH é gigantesco, o aumento no consumo de medicamentos psiquiátricos no Estados Unidos tem as mesmas proporções. Enquanto em 1987, quando o Prozac foi lançado, os americanos consumiam 800 milhões de dólares em medicamentos psiquiátricos, em 2010 essa cifra subiu para 40 bilhões de dólares/ano. E assim a máquina anda muito bem. O NIMH, preocupado com suas pesquisas em neurociências, parece não ter nenhum papel regulador sobre o consumo em proporções abissais de medicamentos prescritos no cotidiano da clínica. Há cifras bilionárias para ambos na terra de Trump. Somente a clínica do sujeito continua proletária
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Em um ambiente tão inóspito, de que modo a psicanálise pode ser ouvida? Como mostrar uma face muito pouco conhecida da psicanálise em território americano, a psicanálise aplicada? Entre genes e ratos de laboratório por um lado, e uma venda crescente de medicamento por outro, poucas vozes se levantam contra essa bipolaridade obcecada em isolar o sofrimento psíquico no corpo cadaverizado da ciência ou rentabilizado pela indústria farmacêutica. Dentre as resistências mais ativas, podemos destacar o papel atual da organização não governamental MAD IN AMERICA[12]. Capitaneada pelo jornalista americano Robert Withaker, autor do best seller Anatomy of an Epidemic, a MAD se tornou uma das mais importantes associações contra os abusos e distorções da Saúde Mental americana. Sem dúvidas é necessário conhecer e interagir com essas resistências. Nas últimas décadas, a psicanálise acumulou uma enorme experiência em hospitais, serviços substitutivos e demais projetos sociais. Essa prática mostra que o mal-estar contemporâneo pode ter outro destino que não seja o entorpecimento. O sonho americano tem demonstrado seu amargo despertar, trata-se de um mal-estar que não será tratado por nenhuma droga, tampouco por promessas genéticas que podem beirar a eugenia. A psicanálise com certeza tem algo a dizer sobre os restos que nenhum muro consegue segregar.
Fonte: http://subversos.com.br/category/coluna-submundos-por-marcelo-veras/


Fernanda Pimentel é psicanalista e atualmente cursa doutorado em Pesquisa e Clínica em Psicanálise na UERJ, pesquisando sobre a psicanálise na atualidade e a clínica contemporânea.



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Fernanda Pimentel é psicanalista e atualmente cursa doutorado em Pesquisa e Clínica em Psicanálise na UERJ, pesquisando sobre a psicanálise na atualidade e a clínica contemporânea.
 Atende em consultório em Niterói e Copacabana.