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31 de janeiro de 2020

A teoria da 'química do cérebro' que não explica os transtornos mentais



Uma série de Twittes do psiquiatra, doutor em psiquiatria e professor da Unicamp, Luis Fernando Tófoli, reacendeu a discussão sobre a hipótese - nunca comprovada! - da causalidade química dos transtornos mentais. 
Acompanhando a discussão esbarrei com dois excelentes artigos que compartilho aqui: Por que a teoria da 'química do cérebro' não explica transtornos mentais... de Luiza Pollo e Desequilíbrio químico no cérebro é mito, de Michelle Muller.




Depressão, ansiedade e outros transtornos mentais são a soma de diversos fatores — pessoais, biológicos, ambientais... A lista de causas para um distúrbio psiquiátrico é extensa e varia de pessoa para pessoa. Tanto que os psiquiatras afirmam ser impossível encontrar um único "culpado". Por que, então, é tão comum ouvir que esses casos podem ser explicados simplesmente por um desequilíbrio químico no cérebro? Essa teoria vigorou por muito tempo, desde que a indústria farmacêutica descobriu que os remédios que reduziam os sintomas de depressão e ansiedade, por exemplo, aumentavam os níveis de alguns neurotransmissores no cérebro: em geral serotonina, dopamina e noradrenalina.
Mas espera: por que falar disso agora? Bem, não há nenhuma novidade bombástica sobre o tema, mas uma sequência de tuítes do professor Luís Fernando Tófoli, da Unicamp, causou alvoroço nesta semana. Sob o título "O mito do desequilíbrio químico como causa das doenças mentais", o doutor em psiquiatria explicou que os transtornos mentais não são comprovadamente causados pela carência de determinadas substâncias no cérebro, como se costuma acreditar. É muito (muito, sério, muito) mais complexo do que isso.
De onde veio essa ideia, então? A hipótese monoaminérgica, termo técnico que descreve a ideia de que os transtornos são causados por desequilíbrio químico, vigorou por muito tempo e ajuda a simplificar a explicação para nós, o público leigo, além de contribuir com a adesão ao tratamento. Isso porque a hipótese surgiu a partir de bons resultados com remédios, explica Tófoli. "Descobriram que existem remédios que melhoravam os sintomas da depressão. Depois, descobriram que eles agiam aumentando serotonina, dopamina e noradrenalina", afirma o psiquiatra. Foi natural juntar "dois mais dois" e chegar à conclusão de que a causa dos transtornos seria, então, a falta desses neurotransmissor no cérebro. O problema é que não há comprovação alguma disso.
Repete e melhora? Vamos a uma comparação: pense que você quebrou um braço e o médico te deu morfina no hospital. A dor não foi causada pela falta de opioides no corpo, certo? Mas, mesmo assim, a morfina fez a dor diminuir. Apesar de ainda não conhecermos exatamente as causas da depressão e da ansiedade, já conhecemos algumas opções de tratamento dos sintomas com psicofármacos comprovadamente eficazes.
Mas, se não é o desbalanço químico, então qual a causa? A resposta é anticlimática: ainda não sabemos. Depressão, ansiedade e outros transtornos psiquiátricos são multifatoriais, a soma de fatores pessoais, biológicos e ambientais. Não há um exame de sangue que possa identificá-los. Tófoli resume: "O diagnóstico é clínico. Tem que conversar com o paciente".
Ué, mas se os remédios funcionam... Sim, funcionam mesmo. Aliás, o próprio Tófoli defende o uso deles no tratamento. Mas é essencial que paciente e psiquiatra construam um tratamento que vá além dos fármacos, e inclua psicoterapia e outras abordagens. O psiquiatra Rodrigo Martins Leite, coordenador de relações institucionais do Instituto de Psiquiatria do Hospitais das Clínicas da USP, defende que a mudança no estilo de vida do paciente seja uma das prioridades. "Caímos na real de que não existe uma constante biológica tão clara quanto gostaríamos. Então precisamos sim de exercício físico, meditação, contato social, relações pessoais com afeto... A medicação pode ajudar, mas definitivamente não resolve o problema da existência humana", reflete. Estudos sugerem inclusive que mudanças na alimentação podem ser benéficas, principalmente quando levamos em conta evidências recentes de que a depressão pode ser um processo inflamatório. Mas, de novo: é difícil explicar transtornos psiquiátricos com apenas um fator.
Por que tanta gente acredita em uma hipótese ultrapassada? Antes de mais nada, a hipótese do desequilíbrio químico simplifica a explicação do médico para o paciente. "A teoria dos neurotransmissores é muito útil como ferramenta de trabalho, apesar de não conseguirmos mensurar [os níveis de químicos no cérebro] e bater o martelo. A gente acaba usando essa explicação para motivar o paciente a aderir ao tratamento", explica Leite. Para justificar o uso de um remédio que vai mexer nos neurotransmissores x, y e z, é mais fácil dizer que há um problema com eles. Além disso, essa explicação ajuda a reduzir o estigma do tratamento ao apontar um "culpado". São reações químicas, é a biologia, e ponto.
E tem a indústria, sempre ela. Não dá para esquecer que essa teoria ajudou a psiquiatria a evoluir, ressalta Tófoli, e ainda ajuda os médicos na clínica. Mas é também do interesse da indústria farmacêutica vender uma solução pronta, e há estudos que apontam que os grandes laboratórios ajudaram a alardear essa ideia. A quem possa interessar, essa relação é explorada com mais detalhes neste artigo da revista Piauí assinado por Marcia Angell, que foi diretora de redação do New England Journal of Medicine (NEJM) e escreveu o livro "A Verdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos" (publicado pela editora Record em 2007). Ok, mas precisava ter mexido num tema tão delicado? Tófoli recebeu muitas críticas por ter tratado de um tema tão complexo no Twitter. Ele reconhece que algumas ideias não ficaram muito claras, como o fato de que ele não contesta a eficácia dos remédios. Ainda assim, o psiquiatra defende a importância de debater o tema, inclusive para que médicos e pacientes estejam sempre dialogando para definir e alterar o tratamento em conjunto, quando necessário. "O que funciona para uma pessoa não necessariamente funciona para outra. É preciso trabalhar para encontrar o arranjo adequado para cada um", afirma.



A ação prática das pílulas pode ser tentadora - e até necessária em alguns casos - mas ela acabou se tornando mais um perigoso excesso da sociedade, mais um ponto de desequilíbrio, disfarçado de solução.

Não existe nenhuma comprovação de que a que depressão, TDAH e outros distúrbios mentais sejam causados por baixa produção de certos neurotransmissores. Até quando esse mito será sustentado pela mídia e até por profissionais da saúde mental?
Muito pais mostram, inicialmente, grande resistência em medicar seu filho diagnosticado com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Até serem informados que os estimulantes corrigem um problema que seria causado por um desequilíbrio químico no cérebro da criança. A teoria da baixa produção de dopamina, divulgada pelos laboratórios, foi recebida com entusiasmo por médicos, psicólogos e professores quando surgiram os medicamentos que provocam aumento nos níveis desse neurotransmissor. Afinal, agora poderiam corrigir, de forma prática e rápida, o "problema" da falta de uma substância no cérebro das crianças desatentas e inquietas.
Essa é a ideia que continua imperando nas diversas áreas ligadas à saúde mental infantil e à educação. Ao conversar com pais de crianças diagnosticadas com TDAH, muitos ainda comparam a necessidade de estimulantes à de reposição da insulina em diabéticos. O fato é que não existe nenhuma comprovação das raízes biológicas do transtorno. O que existem são especulações que se contradizem. E mesmo que se chegue em um consenso, a pouca produção de determinados neurotransmissores já pode ser descartada das possibilidades, pois há anos é repetidamente derrubada por inúmeras pesquisas.

Talvez por ser assimilada tão facilmente pela população, talvez por acender a esperança de uma cura rápida e simples, o desequilíbrio químico tornou-se a explicação mais aceita não apenas para o TDAH, mas para quase todo o tipo de transtorno mental - sendo a depressão e a esquizofrenia os dois grandes pilares que sustentam essa hipótese.
Convenientemente divulgada pelos laboratórios ainda antes do lançamento das marcas famosas de fluoxetina e principal argumento de muitas campanhas publicitárias nos países em que a propaganda de psicotrópicos pode ser feita diretamente ao consumidor, a teoria ainda está longe de ser enterrada. Na tentativa de derrubar o mito, o diretor do Instituto de Saúde Mental americano (National Institute of Mental Health - NIMH), Thomas Insel, já declarou que "as noções iniciais de que transtornos mentais são desequilíbrios químicos estão começando a ficar antiquadas". Isso foi em 2011. Muitos anos antes - em 2003 - o psiquiatra e pesquisador de Standford, David Burns, já havia revelado que mesmo tendo dedicado anos de sua carreira à pesquisa do metabolismo da serotonina no cérebro, ele nunca havia se deparado com "nenhuma evidência convincente de que algum transtorno psiquiátrico, incluindo depressão, seja ocasionado por uma deficiência de serotonina no cérebro". Quanto tempo vai levar para que os profissionais da saúde mental no Brasil abandonem esse argumento?

A popularização dessa hipótese colabora com o uso indiscriminado e irresponsável de psicotrópicos. Pode estar entre os fatores que explicam o aumento expressivo do uso de antidepressivos na última década em todo o mundo. De acordo com o National Health and Nutrition Examination Survey (2008), atualmente 23% das mulheres americanas tomam esses medicamentos - um índice que reflete a realidade ocidental, em geral. A certeza de que "produzem pouca serotonina" leva muitas pessoas a acreditar na cura milagrosa das drogas até no caso de depressão leve e moderada - em que esses medicamentos têm resultados comprovadamente iguais aos de placebos.
Autor de diversos livros sobre medicação psiquiátrica e consultor do Instituto Nacional de Saúde Mental, o psiquiatra Peter Breggin destaca que são as drogas que causam o desequilíbrio químico - e não o contrário. E o resultado desse desequilíbrio está evidente nas diversas reações de abstinência que sofrem os pacientes ao largar as medicações psiquiátricas.

No caso dos antidepressivos mais comuns, por exemplo - os ISRS (inibidores seletivos de recaptação de serotonina) - o neurotransmissor, liberado pela célula pré-sináptica, tem seu canal de receptação bloqueado. Assim, ao invés de concluir seu ciclo natural e retornar ao neurônio pré-sináptico, ele é acumulado entre as sinapses. No entanto, os neurônios têm receptores que monitoram o nível de serotonina na sinapse e como o cérebro é plástico, ele naturalmente vai regular a produção do neurotransmissor. Portanto, os antidepressivos causam - e não ajustam - o desequilíbrio químico. Evidências apontam que sua ação sobre a via serotoninérgica provoca o nascimento de novas células nervosas no hipocampo - região afetada nos casos depressão profunda. Isso explicaria o tempo, de cerca de três semanas, que os antidepressivos levam para começar a agir nesses casos.

O metilfenidado - estimulante usado para "corrigir" o TDAH - têm ação quase imediata sobre alguns dos sintomas comuns de crianças hiperativas. Assim como a cocaína, faz com que a dopamina se acumule nas sinapses por muito tempo, levando as células pré-sinápticas a liberar quantidades cada vez menores do neurotransmissor. Com o tempo, o cérebro ajusta a produção de neurotransmissores e a criança desenvolve tolerância à medicação, precisando de doses maiores. O desequilíbrio então realmente se estabelece, o que leva os médicos a receitar outras drogas para compensá-lo.
Para se certificar se tudo isso compensa em longo prazo, uma equipe de 18 pesquisadores, com apoio do Instituto de Saúde Mental americano (NIMH), investigou o desempenho de 579 crianças diagnosticadas com TDAH no período de oito anos. Maior pesquisa já realizada com essa finalidade, o "Estudo Multimodal de Tratamento para TDAH", publicado em 2009, concluiu que depois de um ano e meio, mesmo com o aumento contínuo de dose, as crianças medicadas não apresentaram melhor desempenho em nenhum aspecto com relação às que não receberam medicação. Depois de um tempo, portanto, restam apenas os efeitos colaterais do desequilíbrio provocado pela droga.
"A verdade é que ninguém sabe qual deveria ser a quantidade 'correta' de diferentes neurotransmissores. O nível dessas substâncias é apenas um fator em um complexo ciclo de influências que interagem, como vulnerabilidade genética, stress, hábitos no pensamento e circunstâncias sociais", escreve Christian Jarrett em Great Myths of The Brain (Os Grande Mitos do Cérebro).
A ponte do equilíbrio transformou-se numa corda bamba num mundo de tantos excessos. Buscá-lo passou a ser um desafio que coloca em jogo a saúde física e mental. A ação prática das pílulas pode ser tentadora - e até necessária em alguns casos - mas ela acabou se tornando mais um perigoso excesso da sociedade, mais um ponto de desequilíbrio, disfarçado de solução.


Fernanda Pimentel é psicanalista, professora e pesquisadora. Doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ
e investigas os temas relativos 
à psicanálise na atualidade e à clínica contemporânea. 


28 de janeiro de 2020

49 anos sem Winnicott


Em 28 de janeiro de 1971 falecia o pediatra e psicanalista Donald Winnicott, grande referência na clínica com as crianças.



"A criança brinca para expressar agressão, adquirir experiência, controlar ansiedades, estabelecer contatos sociais como integração da personalidade e, acima de tudo, por prazer." Winnicott





"De fato, somos pobres se formos apenas sãos." Winnicott



Fernanda Pimentel é psicanalista, professora e pesquisadora. Doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ
e investigas os temas relativos 
à psicanálise na atualidade e à clínica contemporânea. 

26 de janeiro de 2020

Sobre a clínica...








Fernanda Pimentel é psicanalista, professora e pesquisadora. Doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ
e investigas os temas relativos 
à psicanálise na atualidade e à clínica contemporânea.