Uma série de Twittes do psiquiatra, doutor em psiquiatria e professor da Unicamp, Luis Fernando Tófoli, reacendeu a discussão sobre a hipótese - nunca comprovada! - da causalidade química dos transtornos mentais.
Acompanhando a discussão esbarrei com dois excelentes artigos que compartilho aqui: Por que a teoria da 'química do cérebro' não explica transtornos mentais... de Luiza Pollo e Desequilíbrio químico no cérebro é mito, de Michelle Muller.
Depressão,
ansiedade e outros transtornos mentais são a soma de diversos fatores —
pessoais, biológicos, ambientais... A lista de causas para um distúrbio
psiquiátrico é extensa e varia de pessoa para pessoa. Tanto que os psiquiatras
afirmam ser impossível encontrar um único "culpado". Por que, então,
é tão comum ouvir que esses casos podem ser explicados simplesmente por um
desequilíbrio químico no cérebro? Essa teoria vigorou por muito tempo, desde
que a indústria farmacêutica descobriu que os remédios que reduziam os sintomas
de depressão e ansiedade, por exemplo, aumentavam os níveis de alguns
neurotransmissores no cérebro: em geral serotonina, dopamina e noradrenalina.
Mas espera:
por que falar disso agora? Bem, não há nenhuma novidade bombástica sobre o
tema, mas uma sequência de tuítes do professor Luís Fernando Tófoli, da
Unicamp, causou alvoroço nesta semana. Sob o título "O mito do
desequilíbrio químico como causa das doenças mentais", o doutor em psiquiatria
explicou que os transtornos mentais não são comprovadamente causados pela
carência de determinadas substâncias no cérebro, como se costuma acreditar. É
muito (muito, sério, muito) mais complexo do que isso.
De onde veio
essa ideia, então? A hipótese monoaminérgica, termo técnico que descreve a
ideia de que os transtornos são causados por desequilíbrio químico, vigorou por
muito tempo e ajuda a simplificar a explicação para nós, o público leigo, além
de contribuir com a adesão ao tratamento. Isso porque a hipótese surgiu a
partir de bons resultados com remédios, explica Tófoli. "Descobriram que
existem remédios que melhoravam os sintomas da depressão. Depois, descobriram
que eles agiam aumentando serotonina, dopamina e noradrenalina", afirma o
psiquiatra. Foi natural juntar "dois mais dois" e chegar à conclusão
de que a causa dos transtornos seria, então, a falta desses neurotransmissor no
cérebro. O problema é que não há comprovação alguma disso.
Repete e
melhora? Vamos a uma comparação: pense que você quebrou um braço e o médico te
deu morfina no hospital. A dor não foi causada pela falta de opioides no corpo,
certo? Mas, mesmo assim, a morfina fez a dor diminuir. Apesar de ainda não
conhecermos exatamente as causas da depressão e da ansiedade, já conhecemos
algumas opções de tratamento dos sintomas com psicofármacos comprovadamente
eficazes.
Mas, se não é
o desbalanço químico, então qual a causa? A resposta é anticlimática: ainda não
sabemos. Depressão, ansiedade e outros transtornos psiquiátricos são
multifatoriais, a soma de fatores pessoais, biológicos e ambientais. Não há um
exame de sangue que possa identificá-los. Tófoli resume: "O diagnóstico é
clínico. Tem que conversar com o paciente".
Ué, mas se os
remédios funcionam... Sim, funcionam mesmo. Aliás, o próprio Tófoli defende o
uso deles no tratamento. Mas é essencial que paciente e psiquiatra construam um
tratamento que vá além dos fármacos, e inclua psicoterapia e outras abordagens.
O psiquiatra Rodrigo Martins Leite, coordenador de relações institucionais do
Instituto de Psiquiatria do Hospitais das Clínicas da USP, defende que a
mudança no estilo de vida do paciente seja uma das prioridades. "Caímos na
real de que não existe uma constante biológica tão clara quanto gostaríamos.
Então precisamos sim de exercício físico, meditação, contato social, relações
pessoais com afeto... A medicação pode ajudar, mas definitivamente não resolve
o problema da existência humana", reflete. Estudos sugerem inclusive que
mudanças na alimentação podem ser benéficas, principalmente quando levamos em
conta evidências recentes de que a depressão pode ser um processo inflamatório.
Mas, de novo: é difícil explicar transtornos psiquiátricos com apenas um fator.
Por que tanta
gente acredita em uma hipótese ultrapassada? Antes de mais nada, a hipótese do
desequilíbrio químico simplifica a explicação do médico para o paciente.
"A teoria dos neurotransmissores é muito útil como ferramenta de trabalho,
apesar de não conseguirmos mensurar [os níveis de químicos no cérebro] e bater
o martelo. A gente acaba usando essa explicação para motivar o paciente a
aderir ao tratamento", explica Leite. Para justificar o uso de um remédio
que vai mexer nos neurotransmissores x, y e z, é mais fácil dizer que há um
problema com eles. Além disso, essa explicação ajuda a reduzir o estigma do
tratamento ao apontar um "culpado". São reações químicas, é a
biologia, e ponto.
E tem a
indústria, sempre ela. Não dá para esquecer que essa teoria ajudou a
psiquiatria a evoluir, ressalta Tófoli, e ainda ajuda os médicos na clínica.
Mas é também do interesse da indústria farmacêutica vender uma solução pronta,
e há estudos que apontam que os grandes laboratórios ajudaram a alardear essa
ideia. A quem possa interessar, essa relação é explorada com mais detalhes
neste artigo da revista Piauí assinado por Marcia Angell, que foi diretora de
redação do New England Journal of Medicine (NEJM) e escreveu o livro "A
Verdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos" (publicado pela editora
Record em 2007). Ok, mas precisava ter mexido num tema tão delicado? Tófoli
recebeu muitas críticas por ter tratado de um tema tão complexo no Twitter. Ele
reconhece que algumas ideias não ficaram muito claras, como o fato de que ele
não contesta a eficácia dos remédios. Ainda assim, o psiquiatra defende a
importância de debater o tema, inclusive para que médicos e pacientes estejam
sempre dialogando para definir e alterar o tratamento em conjunto, quando
necessário. "O que funciona para uma pessoa não necessariamente funciona
para outra. É preciso trabalhar para encontrar o arranjo adequado para cada
um", afirma.
A ação prática das pílulas pode ser tentadora - e
até necessária em alguns casos - mas ela acabou se tornando mais um perigoso
excesso da sociedade, mais um ponto de desequilíbrio, disfarçado de solução.
Não existe nenhuma
comprovação de que a que depressão, TDAH e outros distúrbios mentais sejam
causados por baixa produção de certos neurotransmissores. Até quando esse mito
será sustentado pela mídia e até por profissionais da saúde mental?
Muito
pais mostram, inicialmente, grande resistência em medicar seu filho
diagnosticado com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Até
serem informados que os estimulantes corrigem um problema que seria causado por
um desequilíbrio químico no cérebro da criança. A teoria da baixa produção de
dopamina, divulgada pelos laboratórios, foi recebida com entusiasmo por
médicos, psicólogos e professores quando surgiram os medicamentos que provocam
aumento nos níveis desse neurotransmissor. Afinal, agora poderiam corrigir, de
forma prática e rápida, o "problema" da falta de uma substância no
cérebro das crianças desatentas e inquietas.
Essa
é a ideia que continua imperando nas diversas áreas ligadas à saúde mental
infantil e à educação. Ao conversar com pais de crianças diagnosticadas com
TDAH, muitos ainda comparam a necessidade de estimulantes à de reposição da
insulina em diabéticos. O fato é que não existe nenhuma comprovação das raízes
biológicas do transtorno. O que existem são especulações que se contradizem. E
mesmo que se chegue em um consenso, a pouca produção de determinados
neurotransmissores já pode ser descartada das possibilidades, pois há anos é
repetidamente derrubada por inúmeras pesquisas.
Talvez por ser assimilada
tão facilmente pela população, talvez por acender a esperança de uma cura
rápida e simples, o desequilíbrio químico tornou-se a explicação mais aceita
não apenas para o TDAH, mas para quase todo o tipo de transtorno mental - sendo
a depressão e a esquizofrenia os dois grandes pilares que sustentam essa
hipótese.
Convenientemente
divulgada pelos laboratórios ainda antes do lançamento das marcas famosas de
fluoxetina e principal argumento de muitas campanhas publicitárias nos países
em que a propaganda de psicotrópicos pode ser feita diretamente ao consumidor,
a teoria ainda está longe de ser enterrada. Na tentativa de derrubar o mito, o
diretor do Instituto de Saúde Mental americano (National Institute of Mental
Health - NIMH), Thomas Insel, já declarou que "as noções iniciais de que
transtornos mentais são desequilíbrios químicos estão começando a ficar
antiquadas". Isso foi em 2011. Muitos anos antes - em 2003 - o psiquiatra
e pesquisador de Standford, David Burns, já havia revelado que mesmo tendo
dedicado anos de sua carreira à pesquisa do metabolismo da serotonina no
cérebro, ele nunca havia se deparado com "nenhuma evidência convincente de
que algum transtorno psiquiátrico, incluindo depressão, seja ocasionado por uma
deficiência de serotonina no cérebro". Quanto tempo vai levar para que os
profissionais da saúde mental no Brasil abandonem esse argumento?
A
popularização dessa hipótese colabora com o uso indiscriminado e irresponsável
de psicotrópicos. Pode estar entre os fatores que explicam o aumento expressivo
do uso de antidepressivos na última década em todo o mundo. De acordo com o
National Health and Nutrition Examination Survey (2008), atualmente 23% das
mulheres americanas tomam esses medicamentos - um índice que reflete a
realidade ocidental, em geral. A certeza de que "produzem pouca
serotonina" leva muitas pessoas a acreditar na cura milagrosa das drogas
até no caso de depressão leve e moderada - em que esses medicamentos têm
resultados comprovadamente iguais aos de placebos.
Autor
de diversos livros sobre medicação psiquiátrica e consultor do Instituto
Nacional de Saúde Mental, o psiquiatra Peter Breggin destaca que são as drogas
que causam o desequilíbrio químico - e não o contrário. E o resultado desse
desequilíbrio está evidente nas diversas reações de abstinência que sofrem os
pacientes ao largar as medicações psiquiátricas.
No
caso dos antidepressivos mais comuns, por exemplo - os ISRS (inibidores
seletivos de recaptação de serotonina) - o neurotransmissor, liberado pela
célula pré-sináptica, tem seu canal de receptação bloqueado. Assim, ao invés de
concluir seu ciclo natural e retornar ao neurônio pré-sináptico, ele é
acumulado entre as sinapses. No entanto, os neurônios têm receptores que
monitoram o nível de serotonina na sinapse e como o cérebro é plástico, ele
naturalmente vai regular a produção do neurotransmissor. Portanto, os
antidepressivos causam - e não ajustam - o desequilíbrio químico. Evidências
apontam que sua ação sobre a via serotoninérgica provoca o nascimento de novas
células nervosas no hipocampo - região afetada nos casos depressão profunda.
Isso explicaria o tempo, de cerca de três semanas, que os antidepressivos levam
para começar a agir nesses casos.
O
metilfenidado - estimulante usado para "corrigir" o TDAH - têm ação
quase imediata sobre alguns dos sintomas comuns de crianças hiperativas. Assim
como a cocaína, faz com que a dopamina se acumule nas sinapses por muito tempo,
levando as células pré-sinápticas a liberar quantidades cada vez menores do
neurotransmissor. Com o tempo, o cérebro ajusta a produção de
neurotransmissores e a criança desenvolve tolerância à medicação, precisando de
doses maiores. O desequilíbrio então realmente se estabelece, o que leva os
médicos a receitar outras drogas para compensá-lo.
Para
se certificar se tudo isso compensa em longo prazo, uma equipe de 18
pesquisadores, com apoio do Instituto de Saúde Mental americano (NIMH),
investigou o desempenho de 579 crianças diagnosticadas com TDAH no período de
oito anos. Maior pesquisa já realizada com essa finalidade, o "Estudo Multimodal
de Tratamento para TDAH", publicado em 2009, concluiu que depois de um ano
e meio, mesmo com o aumento contínuo de dose, as crianças medicadas não
apresentaram melhor desempenho em nenhum aspecto com relação às que não
receberam medicação. Depois de um tempo, portanto, restam apenas os efeitos
colaterais do desequilíbrio provocado pela droga.
"A
verdade é que ninguém sabe qual deveria ser a quantidade 'correta' de
diferentes neurotransmissores. O nível dessas substâncias é apenas um fator em
um complexo ciclo de influências que interagem, como vulnerabilidade genética,
stress, hábitos no pensamento e circunstâncias sociais", escreve Christian
Jarrett em Great Myths of The Brain (Os Grande Mitos do Cérebro).
A
ponte do equilíbrio transformou-se numa corda bamba num mundo de tantos
excessos. Buscá-lo passou a ser um desafio que coloca em jogo a saúde física e
mental. A ação prática das pílulas pode ser tentadora - e até necessária em
alguns casos - mas ela acabou se tornando mais um perigoso excesso da sociedade,
mais um ponto de desequilíbrio, disfarçado de solução.
Fernanda Pimentel é psicanalista, professora e pesquisadora. Doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ
e investigas os temas relativos à psicanálise na atualidade e à clínica contemporânea.
e investigas os temas relativos à psicanálise na atualidade e à clínica contemporânea.
Atende em consultório em Niterói e Copacabana.