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6 de maio de 2020

Feliz aniversário, Dr. Freud!

Hoje Freud completaria 164 anos!

Para celebrar, recomendo a leitura do texto "Sobre a Transitoriedade", de 1916, onde Freud aborda a finitude, a morte e a decadência. Apesar dos termos, não se trata de um teto pessimista, ao contrário, pois o que ele destaca é que é justamente a transitoriedade das coisas, da beleza e da vida, que nos faz dar valor a elas...



“Sobre a Transitoriedade” (1916/1915) 

Não faz muito tempo empreendi, num dia de verão, uma caminhada através de campos sorridentes na companhia de um amigo taciturno e de um poeta jovem mas já famoso. O poeta admirava a beleza do cenário à nossa volta, mas não extraía disso qualquer alegria. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava fadada à extinção, de que desapareceria quando sobreviesse o inverno, como toda a beleza humana e toda a beleza e esplendor que os homens criaram ou poderão criar. Tudo aquilo que, em outra circunstância, ele teria amado e admirado, pareceu-lhe despojado de seu valor por estar fadado à transitoriedade.

A propensão de tudo que é belo e perfeito à decadência, pode, como sabemos, dar margem a dois impulsos diferentes na mente. Um leva ao penoso desalento sentido pelo jovem poeta, ao passo que o outro conduz à rebelião contra o fato consumado. Não! É impossível que toda essa beleza da Natureza e da Arte, do mundo de nossas sensações e do mundo externo, realmente venha a se desfazer em nada. Seria por demais insensato, por demais pretensioso acreditar nisso. De uma maneira ou de outra essa beleza deve ser capaz de persistir e de escapar a todos os poderes de destruição.


Mas essa exigência de imortalidade, por ser tão obviamente um produto dos nossos desejos, não pode reivindicar seu direito à realidade; o que é penoso pode, não obstante, ser verdadeiro. Não vi como discutir a transitoriedade de todas as coisas, nem pude insistir numa exceção em favor do que é belo e perfeito. Não deixei, porém, de discutir o ponto de vista pessimista do poeta de que a transitoriedade do que é belo implica uma perda de seu valor.

Pelo contrário, implica um aumento! O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos. Quanto à beleza da Natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, do modo que, em relação à duração de nossas vidas, ela pode de fato ser considerada eterna. A beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhes empresta renovado encanto. Um flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela. Tampouco posso compreender melhor por que a beleza e a perfeição de uma obra de arte ou de uma realização intelectual deveriam perder seu valor devido à sua limitação temporal. Realmente, talvez chegue o dia em que os quadros e estátuas que hoje admiramos venham a ficar reduzidos a pó, ou que nos possa suceder uma raça de homens que venha a não mais compreender as obras de nossos poetas e pensadores, ou talvez até mesmo sobrevenha uma era geológica na qual cesse toda vida animada sobre a Terra; visto, contudo, que o valor de toda essa beleza e perfeição é determinado somente por sua significação para nossa própria vida emocional, não precisa sobreviver a nós, independendo, portanto, da duração absoluta.

Essas considerações me pareceram incontestáveis, mas observei que não causara impressão quer no poeta quer em meu amigo. Meu fracasso levou-me a inferir que algum fator emocional poderoso se achava em ação, perturbando-lhes o discernimento, e acreditei, depois, ter descoberto o que era. O que lhes estragou a fruição da beleza deve ter sido uma revolta em suas mentes contra o luto. A ideia de que toda essa beleza era transitória comunicou a esses dois espíritos sensíveis uma antecipação de luto pela morte dessa mesma beleza; e, como a mente instintivamente recua de algo que é penoso, sentiram que em sua fruição de beleza interferiam pensamentos sobre sua transitoriedade.




O luto pela perda de algo que amamos ou admiramos se afigura tão natural ao leigo, que ele o considera evidente por si mesmo. Para os psicólogos, porém, o luto constitui um grande enigma, um daqueles fenômenos que por si sós não podem ser explicados, mas a partir dos quais podem ser rastreadas outras obscuridades. Possuímos, segundo parece, certa dose de capacidade para o amor – que denominamos de libido – que nas etapas iniciais do desenvolvimento é dirigido no sentido de nosso próprio ego. Depois, embora ainda numa época muito inicial, essa libido é desviada do ego para objetos, que são assim, num certo sentido, levados para nosso ego. Se os objetos forem destruídos ou se ficarem perdidos para nós, nossa capacidade para o amor (nossa libido) será mais uma vez liberada e poderá então ou substituí-los por outros objetos ou retornar temporariamente ao ego. Mas permanece um mistério para nós o motivo pelo qual esse desligamento da libido de seus objetos deve constituir um processo tão penoso, até agora não fomos capazes de formular qualquer hipótese para explicá-lo. Vemos apenas que a libido se apega a seus objetos e não renuncia àqueles que se perderam, mesmo quando um substituto se acha bem à mão. Assim é o luto.

Minha palestra com o poeta ocorreu no verão antes da guerra. Um ano depois, irrompeu o conflito que lhe subtraiu o mundo de suas belezas. Não só destruiu a beleza dos campos que atravessava e as obras de arte que encontrava em seu caminho, como também destroçou nosso orgulho pelas realizações de nossa civilização, nossa admiração por numerosos filósofos e artistas, e nossas esperanças quanto a um triunfo final sobre as divergências entre as nações e as raças. Maculou a elevada imparcialidade da nossa ciência, revelou nossos instintos em toda a sua nudez e soltou de dentro de nós os maus espíritos que julgávamos terem sido domados para sempre, por séculos de ininterrupta educação pelas mais nobres mentes. Amesquinhou mais uma vez nosso país e tornou o resto do mundo bastante remoto. Roubou-nos do muito que amáramos e mostrou-nos quão efêmeras eram inúmeras coisas que consideráramos imutáveis.

Não pode surpreender-nos o fato de que nossa libido, assim privada de tantos dos seus objetos, se tenha apegado com intensidade ainda maior ao que nos sobrou, que o amor pela nossa pátria, nossa afeição pelos que se acham mais próximos de nós e nosso orgulho pelo que nos é comum, subitamente se tenham tornado mais vigorosos. Contudo, será que aqueles outros bens, que agora perdemos, realmente deixaram de ter qualquer valor para nós por se revelarem tão perecíveis e tão sem resistência? Isso parece ser o caso de muitos de nós; só que, na minha opinião, mais uma vez, erradamente. Creio que aqueles que pensam assim, de e parecem prontos a aceitar uma renúncia permanente porque o que era precioso revelou não ser duradouro, encontram-se simplesmente num estado de luto pelo que se perdeu. O luto, como sabemos, por mais doloroso que possa ser, chega a um fim espontâneo. Quando renunciou a tudo que foi perdido, então consumiu-se a si próprio, e nossa libido fica mais uma vez livre (enquanto ainda formos jovens e ativos) para substituir os objetos perdidos por novos igualmente, ou ainda mais, preciosos. É de esperar que isso também seja verdade em relação às perdas causadas pela presente guerra. Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes.



Fernanda Pimentel é psicanalista, professora e pesquisadora. Doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ
 Atende em consultório em Niterói e Copacabana.

4 de maio de 2020

Sobre a influência da tecnologia na subjetividade das crianças


No momento em que as crianças estão mais em suas casas é importante retomar a discussão sobre a influência da tecnologia na subjetividade e desenvolvimento da criança. 
A psicanalista Julieta JerusalinskyOrganizadora do livro “Intoxicações Eletrônicas, O Sujeito na Era das Relações Virtuais” ( Agalma, 2017), fala, para a Revista Gama, sobre o impacto da tecnologia na formação da criança e de como ‘é preciso de gente para ser gente’

"A internet é pior babá eletrônica do que foi a televisão em outros tempos. A partir do momento em que a mobilidade permitiu que cada integrante de uma família usasse uma tela para assistir ou jogar o que bem entendesse, houve a individualização de um processo que antes era coletivo. Dar um tablet para uma criança ficar quieta pode ser abrir a porta para um estado de passividade.
“A infância é um momento de estruturação em que o cérebro, o corpo e o psiquismo estão em formação. As experiências de vida são decisivas para quem a criança será no futuro, e por isso é tão importante pensar que lugar se dá para a ela em casa, na escola e na sociedade”, afirma a psicanalista Julieta Jerusalinsky, professora do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Puc-SP) e especialista em primeira infância e desenvolvimento infantil.
Organizadora do livro “Intoxicações Eletrônicas, O Sujeito na Era das Relações Virtuais” ( Agalma, 2017), em entrevista a Gama ela fala sobre o impacto das telas na criação e no desenvolvimento dos filhos e sobre como a convivência é fundamental para moldar que adultos essas crianças serão amanhã. “A gente precisa de gente para virar gente, pois é pela relação com o outro que uma criança se estrutura.”
G |Da perspectiva de pais esmagados por obrigações profissionais e domésticas, como não cair na armadilha da tela apaziguadora? Como criar filhos nesse mundo de telas? 
A questão seria a tela ou o fato de estarmos todos demasiadamente ocupados trabalhando, em um afastamento de contextos comunitários de família extensa e vizinhança, enquanto as crianças ficam sozinhas? Essa é a pergunta que a gente precisa se fazer. Porque a infância é um tempo da vida crucial para a formação, mas ela termina. Por isso precisamos pensar em como arrumar tempo e lugar para transmitir à criança aquilo que achamos que é decisivo para que ela se torne o adulto de amanhã. Dá muito trabalho, é verdade. Mas ao conviver com uma criança acabamos inventando brincadeiras e evocando passagens da nossa própria infância que, se não fosse pela criança, cairiam no esquecimento. Assim elas acabam por nos fazer um favor aos nos tirar do automatismo da vida adulta e nos convidar a construir uma brincadeira entre gerações. Costuma ser surpreendente o que pode acontecer quando desligamos as telas e abrimos lugar para o convívio.

O que mudou em relação a crianças e telas durante a quarentena? 
A quarentena tem sido um grande desafio de convívio familiar na medida em que as crianças passaram a ficar sob o cuidado dos pais 24 horas por dia, sem poder compartilhá-los com a escola, com outros familiares, com as babás ou as empregadas domésticas. Se produz assim um encontro entre pais que costumam delegar o cuidado dos filhos com crianças que estão muito acostumadas a ter atividades propostas por outros — e que em muitos casos não sabem construir suas próprias brincadeiras. Enquanto os pais estão sobrecarregados pelo home office e os cuidados com os filhos, pululam na internet mil e uma sugestões para entreter as crianças. Em vez de virar recreacionistas dos filhos, é um bom momento para compartilhar ludicamente das atividades da casa: cozinhar, estender a roupa, fazer a cama. Tais atividades estão repletas de sequências que exigem planejamento, motricidade ampla e fina, classificações centrais na construção do pensamento, bem como dotadas de grande valor simbólico capaz de fazer uma criança se orgulhar de poder “fazer sozinha” o que sempre foi feito por outros.

Existe uma dosagem saudável para o uso de TV ou internet? Ela muda com a idade? 
Há 20 anos, se discutia quanto tempo de televisão uma criança poderia assistir. Mas a televisão implicava que todos assistissem juntos, o que permitia comentários. Com uma tela individual, não há mais a conversa. A programação da televisão terminava; a internet não termina. Os pais já não sabem mais o que as crianças estão vendo, a não ser as muito pequenininhas. Outro aspecto é a passividade. Uma criança que brinca está em atividade, construindo uma história. A criança que está na frente da tela é uma espectadora, o que traz diferentes consequências em cada idade. Uma criança de zero a três anos vive um momento decisivo para a apropriação de seu corpo e entrada na linguagem. Que noção do seu corpo ela terá se está passiva e não circula pelo espaço? Que modo de entrada na linguagem terá se está exposta a um tablet que emite sons, mas que não sustenta a lógica de uma conversa? Até os três anos, a utilização das telas deveria ser zero porque nesse momento de vida é fundamental a relação com o outro.

E depois da primeira infância? 
Dos três aos dez anos é o momento da construção do faz de conta, de armar brincadeiras que impliquem em fantasiar. Brincar é algo extremamente complexo porque é preciso construir uma sequência e negociá-la conjuntamente com outro, dizendo para o companheiro de brincadeira o que se imaginou para que, a partir dessas palavras, os demais companheiros possam construir uma imagem e fantasiar junto. Nos jogos virtuais, esse trabalho é poupado. Mesmo nos mais criativos, os contextos aparecem dados, seja o cenário, a missão ou o personagem de cada um. E esse é um trabalho psiquicamente estruturante. Mais adiante isso é necessário para escrever um texto a partir de uma ideia ou interpretar o que lemos. Há tabelas que indicam um limite de tempo de uso de eletrônicos para cada idade, mas a questão crucial a se fazer é: no lugar do que isso está? Quando um adolescente de 13 ou 14 anos fica de duas a três horas por dia na internet, e se esse é o tempo que uma família tem para estar junto ao final do dia, se perde um momento irrecuperável.

Mas existe alguma medida que o uso de telas pode ser positivo? 
Não se trata de demonizar as novas tecnologias, mas de considerar que uso fazemos delas. As intoxicações eletrônicas não começam quando se larga o celular na mão de uma criança. A questão é como nós, adultos, estamos usando esses aparelhos. Com a internet móvel, não temos mais divisão entre o tempo de trabalho e de lazer. Um pai chega em casa e senta para brincar com seu filho, enquanto olha para as mensagens no celular. Ao ficarmos o tempo inteiro disponíveis aos que não estão ali, perdemos a importância da presença dos que estão ali conosco. Para as crianças, que dependem radicalmente do lugar que os pais lhes dão, isso tem consequências muito mais contundentes.

Você organizou um livro sobre as intoxicações eletrônicas. O que é isso exatamente? 
Para elaborar o que acontece na vida, as crianças precisam produzir, ativamente, suas representações no lugar de ficarem como espectadoras passivas de um entretenimento digital. Fazer um desenho, uma escultura de massinha, uma encenação na brincadeira ou produzir narrativas com acontecimentos ficcionais ou biográficos permite a elaboração do que é vivido, transformando acontecimentos em experiências sobre as quais se produziu algum saber. Mas quando todo intervalo passa a ser preenchido por outro e mais outro conteúdo digital suprime-se o tempo necessário para poder até mesmo evocar isso que foi vivido. É aí que um efeito tóxico se instaura, já que essa exigência de estar sempre atualizado e online torna-se um excesso que suprime o lugar e o tempo para a elaboração subjetiva que dá significado à vida.

Como se identifica que uma criança está intoxicada? 
Nos últimos anos, principalmente a partir do advento da internet móvel, começamos a receber pequenas crianças que, em vez de brincar, conversar, fazer perguntas, compartilhar atividades com adultos, explorar o espaço ou simplesmente observar o entorno, ficavam absortas em jogos eletrônicos. Para os bebês de menos de três anos, isso se traduzia em um desinteresse de estar com os outros, apresentando linguagens com repetição de fragmentos de jogos eletrônicos e aplicativos, algumas vezes em língua estrangeira, em lugar de sustentar um diálogo ou compartilhar uma brincadeira. Muitas vezes os tablets ou celulares passaram a ser entregues na mão de pequenas crianças como “chupetas eletrônicas”. Um bebê precisa explorar o espaço para encontrar os perigos reais do mundo e ser advertido simbolicamente das regras de convívio. A partir do momento em que entra essa chupeta eletrônica, ele deixa de fazer um registro do seu próprio corpo no espaço. E isso tem uma consequência.

O que os pais que permitiram o uso de eletrônicos pelas crianças se deram conta de que há problemas e querem restringi-lo podem fazer? 
Dizer “não” não basta. Em primeiro lugar é preciso pensar o que se propõe à criança. Em segundo lugar é preciso considerar o que o próprio adulto faz. Muitas vezes, as crianças convivem com um adulto que está de corpo presente, mas psiquicamente ausente olhando para uma janela virtual. As crianças não aprendem simplesmente pelo que os adultos lhes dizem, mas pelo cruzamento disso com o que eles mesmo fazem. Há bebês que, siderados por eletrônicos, podem acabar caindo em diagnósticos de transtorno do espectro do autismo. Não estou dizendo que o autismo é causado pelos eletrônicos, mas que muitas crianças com intoxicações eletrônicas são colocadas nessa valeta diagnóstica, ou em outra grande valeta diagnóstica da contemporaneidade que é o déficit de atenção e hiperatividade.

Crianças que não têm contato com telas podem ter algum tipo de distância cultural das que as utilizam? 
Não existe uma única maneira de educar — existem várias e os pais não devem se eximir de transmitir aos filhos aquilo em que acreditam, mesmo que isso implique impor limites diferentes dos que estão acostumados a ver nos colegas. É uma ilusão entregar a elas aparelhos achando que vão prepará-las para o futuro. A era digital traz uma possibilidade de acesso à informação sem precedentes, mas as crianças precisam de outros seres humanos, pais, professores, para construir suas perguntas e seus percursos de investigação.
Fonte: Revista Gama

Fernanda Pimentel é psicanalista, professora e pesquisadora. Doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ
 Atende em consultório em Niterói e Copacabana.