No momento em que as crianças estão mais em suas casas é importante retomar a discussão sobre a influência da tecnologia na subjetividade e desenvolvimento da criança.
A psicanalista Julieta
Jerusalinsky, Organizadora do livro “Intoxicações Eletrônicas, O Sujeito na Era das Relações Virtuais” ( Agalma, 2017), fala, para a Revista Gama, sobre o impacto da tecnologia
na formação da criança e de como ‘é preciso de gente para ser gente’
"A internet é pior babá eletrônica do que
foi a televisão em outros tempos. A partir do momento em que a mobilidade
permitiu que cada integrante de uma família usasse uma tela para assistir ou
jogar o que bem entendesse, houve a individualização de um processo que antes
era coletivo. Dar um tablet para uma criança ficar quieta pode ser abrir a
porta para um estado de passividade.
“A infância é um momento de
estruturação em que o cérebro, o corpo e o psiquismo estão em formação. As
experiências de vida são decisivas para quem a criança será no futuro, e por
isso é tão importante pensar que lugar se dá para a ela em casa, na escola e na
sociedade”, afirma a psicanalista Julieta Jerusalinsky, professora do curso de
Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Puc-SP) e
especialista em primeira infância e desenvolvimento infantil.
Organizadora do livro
“Intoxicações Eletrônicas, O Sujeito na Era das Relações Virtuais” ( Agalma,
2017), em entrevista a Gama ela
fala sobre o impacto das telas na criação e no desenvolvimento dos filhos e
sobre como a convivência é fundamental para moldar que adultos essas crianças
serão amanhã. “A gente precisa de gente para virar gente, pois é pela relação
com o outro que uma criança se estrutura.”
G |Da perspectiva de pais esmagados por obrigações profissionais e
domésticas, como não cair na armadilha da tela apaziguadora? Como criar filhos
nesse mundo de telas?
A questão seria a tela ou o fato de estarmos todos demasiadamente
ocupados trabalhando, em um afastamento de contextos comunitários de família
extensa e vizinhança, enquanto as crianças ficam sozinhas? Essa é a pergunta
que a gente precisa se fazer. Porque a infância é um tempo da vida crucial para
a formação, mas ela termina. Por isso precisamos pensar em como arrumar tempo e
lugar para transmitir à criança aquilo que achamos que é decisivo para que ela
se torne o adulto de amanhã. Dá muito trabalho, é verdade. Mas ao conviver com
uma criança acabamos inventando brincadeiras e evocando passagens da nossa
própria infância que, se não fosse pela criança, cairiam no esquecimento. Assim
elas acabam por nos fazer um favor aos nos tirar do automatismo da vida adulta
e nos convidar a construir uma brincadeira entre gerações. Costuma ser
surpreendente o que pode acontecer quando desligamos as telas e abrimos lugar
para o convívio.
O que mudou em relação a crianças e telas durante a quarentena?
A quarentena tem sido um grande desafio de convívio familiar na medida
em que as crianças passaram a ficar sob o cuidado dos pais 24 horas por dia,
sem poder compartilhá-los com a escola, com outros familiares, com as babás ou
as empregadas domésticas. Se produz assim um encontro entre pais que costumam
delegar o cuidado dos filhos com crianças que estão muito acostumadas a ter
atividades propostas por outros — e que em muitos casos não sabem construir
suas próprias brincadeiras. Enquanto os pais estão sobrecarregados pelo home
office e os cuidados com os filhos, pululam na internet mil e uma sugestões
para entreter as crianças. Em vez de virar recreacionistas dos filhos, é um bom
momento para compartilhar ludicamente das atividades da casa: cozinhar,
estender a roupa, fazer a cama. Tais atividades estão repletas de sequências
que exigem planejamento, motricidade ampla e fina, classificações centrais na
construção do pensamento, bem como dotadas de grande valor simbólico capaz de
fazer uma criança se orgulhar de poder “fazer sozinha” o que sempre foi feito
por outros.
Existe uma dosagem saudável para o uso de TV ou internet? Ela muda com a
idade?
Há 20 anos, se discutia quanto tempo de televisão uma criança poderia
assistir. Mas a televisão implicava que todos assistissem juntos, o que
permitia comentários. Com uma tela individual, não há mais a conversa. A
programação da televisão terminava; a internet não termina. Os pais já não
sabem mais o que as crianças estão vendo, a não ser as muito pequenininhas.
Outro aspecto é a passividade. Uma criança que brinca está em atividade,
construindo uma história. A criança que está na frente da tela é uma
espectadora, o que traz diferentes consequências em cada idade. Uma criança de
zero a três anos vive um momento decisivo para a apropriação de seu corpo e
entrada na linguagem. Que noção do seu corpo ela terá se está passiva e não
circula pelo espaço? Que modo de entrada na linguagem terá se está exposta a um
tablet que emite sons, mas que não sustenta a lógica de uma conversa? Até os
três anos, a utilização das telas deveria ser zero porque nesse momento de vida
é fundamental a relação com o outro.
E depois da primeira infância?
Dos três aos dez anos é o momento da construção do faz de conta, de
armar brincadeiras que impliquem em fantasiar. Brincar é algo extremamente
complexo porque é preciso construir uma sequência e negociá-la conjuntamente
com outro, dizendo para o companheiro de brincadeira o que se imaginou para
que, a partir dessas palavras, os demais companheiros possam construir uma
imagem e fantasiar junto. Nos jogos virtuais, esse trabalho é poupado. Mesmo
nos mais criativos, os contextos aparecem dados, seja o cenário, a missão ou o
personagem de cada um. E esse é um trabalho psiquicamente estruturante. Mais
adiante isso é necessário para escrever um texto a partir de uma ideia ou
interpretar o que lemos. Há tabelas que indicam um limite de tempo de uso de
eletrônicos para cada idade, mas a questão crucial a se fazer é: no lugar do
que isso está? Quando um adolescente de 13 ou 14 anos fica de duas a três horas
por dia na internet, e se esse é o tempo que uma família tem para estar junto
ao final do dia, se perde um momento irrecuperável.
Mas existe alguma medida que o uso de telas pode ser positivo?
Não se trata de demonizar as novas tecnologias, mas de considerar que
uso fazemos delas. As intoxicações eletrônicas não começam quando se larga o
celular na mão de uma criança. A questão é como nós, adultos, estamos usando
esses aparelhos. Com a internet móvel, não temos mais divisão entre o tempo de
trabalho e de lazer. Um pai chega em casa e senta para brincar com seu filho,
enquanto olha para as mensagens no celular. Ao ficarmos o tempo inteiro
disponíveis aos que não estão ali, perdemos a importância da presença dos que
estão ali conosco. Para as crianças, que dependem radicalmente do lugar que os
pais lhes dão, isso tem consequências muito mais contundentes.
Você organizou um livro sobre as intoxicações eletrônicas. O que é isso
exatamente?
Para elaborar o que acontece na vida, as crianças precisam produzir,
ativamente, suas representações no lugar de ficarem como espectadoras passivas
de um entretenimento digital. Fazer um desenho, uma escultura de massinha, uma
encenação na brincadeira ou produzir narrativas com acontecimentos ficcionais
ou biográficos permite a elaboração do que é vivido, transformando
acontecimentos em experiências sobre as quais se produziu algum saber. Mas
quando todo intervalo passa a ser preenchido por outro e mais outro conteúdo
digital suprime-se o tempo necessário para poder até mesmo evocar isso que foi
vivido. É aí que um efeito tóxico se instaura, já que essa exigência de estar
sempre atualizado e online torna-se um excesso que suprime o lugar e o tempo
para a elaboração subjetiva que dá significado à vida.
Como se identifica que uma criança está intoxicada?
Nos últimos anos, principalmente a
partir do advento da internet móvel, começamos a receber pequenas crianças que,
em vez de brincar, conversar, fazer perguntas, compartilhar atividades com
adultos, explorar o espaço ou simplesmente observar o entorno, ficavam absortas
em jogos eletrônicos. Para os bebês de menos de três anos, isso se traduzia em
um desinteresse de estar com os outros, apresentando linguagens com repetição de fragmentos de jogos
eletrônicos e aplicativos, algumas vezes em língua estrangeira, em
lugar de sustentar um diálogo ou compartilhar uma brincadeira. Muitas vezes os
tablets ou celulares passaram a ser entregues na mão de pequenas crianças como
“chupetas eletrônicas”. Um bebê precisa explorar o espaço para encontrar os
perigos reais do mundo e ser advertido simbolicamente das regras de convívio. A
partir do momento em que entra essa chupeta eletrônica, ele deixa de fazer um
registro do seu próprio corpo no espaço. E isso tem uma consequência.
O que os pais que permitiram o uso de eletrônicos pelas crianças se
deram conta de que há problemas e querem restringi-lo podem fazer?
Dizer “não” não basta. Em primeiro lugar é preciso pensar o que se
propõe à criança. Em segundo lugar é preciso considerar o que o próprio adulto
faz. Muitas vezes, as crianças convivem com um adulto que está de corpo
presente, mas psiquicamente ausente olhando para uma janela virtual. As
crianças não aprendem simplesmente pelo que os adultos lhes dizem, mas pelo
cruzamento disso com o que eles mesmo fazem. Há bebês que, siderados por eletrônicos,
podem acabar caindo em diagnósticos de transtorno do espectro do autismo. Não
estou dizendo que o autismo é causado pelos eletrônicos, mas que muitas
crianças com intoxicações eletrônicas são colocadas nessa valeta diagnóstica,
ou em outra grande valeta diagnóstica da contemporaneidade que é o déficit de
atenção e hiperatividade.
Crianças que não têm contato com telas podem ter algum tipo de distância
cultural das que as utilizam?
Não existe uma única maneira de educar — existem várias e os pais não
devem se eximir de transmitir aos filhos aquilo em que acreditam, mesmo que
isso implique impor limites diferentes dos que estão acostumados a ver nos
colegas. É uma ilusão entregar a elas aparelhos achando que vão prepará-las
para o futuro. A era digital traz uma possibilidade de acesso à informação sem
precedentes, mas as crianças precisam de outros seres humanos, pais,
professores, para construir suas perguntas e seus percursos de investigação.
Fonte: Revista Gama
Fernanda Pimentel é psicanalista, professora e pesquisadora. Doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ
Atende em consultório em Niterói e Copacabana.
Atende em consultório em Niterói e Copacabana.
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