"Um processo de redesignação de gênero (...) é
cruzar aquela que talvez seja, juntamente com a raça, a mais violenta das
fronteiras políticas inventadas pela humanidade"
(Preciado)
Em novembro de
2019, na 49º Jornada da Causa Freudiana, na França, O filósofo Paul Preciado
fez uma apresentação que, além de ter sacudido algumas sólidas
proposições da psicanálise, trouxe uma discussão muito interessante e atual
para nos fazer pensar.
Preciado nasceu na Espanha, em 1970, e dedicou seus estudos e pesquisas às questões de gênero, identidade, pornografia e sexualidade. Tem mestrado em Filosofia na New School, em Nova York, doutorado na Universidade de Princeton e foi professor de
História Política do Corpo, Teoria de Gênero e História da Performance na Université Paris VIII.
O autor aborda os temas a partir de sua própria experiência.
“Mudar de sexo” não é, como quer a guarda do antigo regime sexual, dar um salto para a psicose. Mas também não é, como pretende a nova gestão neoliberal da diferença sexual, um mero trâmite médico-legal que pode ser completado durante a puberdade para dar lugar a uma normalidade absoluta (Preciado)
Ele iniciou sua jornada de transição em 2004, quando começou a autoadministrar pequenas doses
de testosterona, num processo político e performático. Inicialmente transitou
entre o masculino e o feminino - ou como ele mesmo designa "um espaço de
reconhecimento de gênero que oscilava entre o feminino e o masculino, entre a
masculinidade lésbica e a feminilidade King" - como o que hoje é
considerado gênero fluido. Esta jornada é registrada no livro
"Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica"
(2008).
Posteriormente, o filósofo
abre mão da fluidez e decide mudar de gênero, consolidando seu processo de
transição em 2014, iniciando um protocolo médico-psiquiátrico de
redesignação de gênero na Audre Lorde Clinic, em Nova York.
É a partir daí que Preciado inicia suas considerações na Jornada da causa Freudiana.
Abaixo, segue a transcrição da conferência de Preciado traduzida por camilla Kushnir e retirada do Blog Lacan em PDF
Bom dia, queridas damas, queridos cavalheiros, da
Escola de psicanálise da França, damas e cavalheiros da Escola da Causa
Freudiana, e não sei se vale a pena que se diga também bom dia a todos aqueles
que não são nem damas nem cavalheiros, porque creio que não há entre vocês
alguém que haja renunciado legal e publicamente à diferença sexual e que tenha
sido aceito como psicanalista (...), depois de haver conseguido exitosamente o
passe. Falo aqui de um psicanalista trans ou não binário que tenha sido admitido
entre vocês. Se existe, permitam-me enviar a esse mutante, imediatamente, a
saudação mais calorosa.
[Fala em
espanhol] Também quero saudar aqui a todos os psicanalistas hispanofalantes da
América Latina e da Espanha. Senhoras, senhores, e sobretudo todos os outros,
aqueles que não são senhoras, nem senhores.
[Retorno
à fala em francês] Em 1917, Franz Kafka escreveu Um relatório para uma
Academia. O narrador do texto é um macaco que, depois de ter aprendido as
linguagens humanas, se apresenta frente a uma Academia das mais altas
autoridades científicas para explicar-lhes o que a evolução humana havia
representado para ele.
O macaco,
que se chama Pedro Vermelho, conta como foi capturado por uma expedição de caça
organizada pelo circo Hagenbeck, como foi em seguida transportado a Europa e
como logo conseguiu converter-se em um homem. Pedro Vermelho conta como
aprendeu as linguagens humanas e como, para fazê-lo, e entrar na sociedade da
Europa de seu tempo, teve que esquecer sua vida de macaco e tornar-se alcóolatra.
Mas o mais interessante, no monólogo de Pedro
Vermelho, é que Kafka não apresenta sua história de humanização como uma
história de liberação, mas sim como uma crítica do humanismo europeu.
Uma vez capturados, os macacos, dizem que não havia
outra opção, mas que, ou bem morriam em uma jaula, ou bem viviam passando à
jaula da subjetividade humana; e é, a partir desta nova jaula da humanidade,
que se dirige à Academia científica.
Como o macaco Pedro Vermelho se dirigiu à Academia
de científicos, me dirijo hoje a vocês, acadêmicos de psicanálise, desde minha
jaula de homem transexual. Meu corpo, marcado pelo discurso médico e jurídico
como transexual, caracterizado na maior parte de vossos diagnósticos
psicanalíticos como sujeito de metamorfose impossível, segundo vosso colega
Pierre-Henri Castel; estando, segundo a maior parte de suas teorias, mais além
da neurose, na borda ou inclusive no interior da psicose; tendo, segundo vocês,
uma incapacidade de resolver corretamente um complexo de Édipo, ou havendo
sucumbido à inveja do pênis. Me dirijo a vocês, como um macaco humano de uma
nova era.
Eu, enquanto corpo trans, enquanto corpo não
binário, ao que nem a medicina, nem o direito, nem a psicanálise, nem a
psiquiatria reconhecem o direito de falar nem a possibilidade de produzir um
discurso uniforme de conhecimento sobre eu mesmo; aprendi como Pedro Vermelho,
a linguagem do patriarcado colonial, vossa língua. Estou aqui para dirigir-me a
vocês.
Dirão que recorro a um conto kafkiano para começar
a falar-lhes, mas vosso colóquio me parece mais próximo da época do autor de “A
metamorfose” que da nossa.
Vocês organizam um encontro para falar das mulheres
na psicanálise em 2019 como se todavia estivéssemos em 1917, e como se esse
tipo particular de animal, que vocês chamam de forma condescendente e
naturalizada “mulher”, não tivesse sempre um reconhecimento pleno enquanto
sujeito político; como se ela fosse um anexo ou uma nota em pé de página, uma
criatura estranha e exótica entre as flores, sobre a qual há que pensar de
tanto em tanto, em um colóquio em mesa redonda. Pois bem, haveria que organizar
um encontro sobre homens brancos heterossexuais e burgueses, em psicanálise.
O discurso psicanalítico gira em torno do poder
discursivo e político desse tipo de animal necropolítico que vocês tendem a
confundir com o humano universal, e que é, ao menos até o presente, o sujeito
da enunciação central no discurso das instituições psicanalíticas da
modernidade colonial.
Não tenho, já verão, grande coisa que dizer sobre
as mulheres em psicanálise, mas que eu também sou, como Pedro Vermelho, um
fugitivo, que eu também fui, um dia, uma mulher em psicanálise; que me
atribuíram um sexo feminino, e como o macaco mutante, também saí dessa jaula
apertada, talvez para entrar em outra jaula; mas ao menos, dessa vez, por meus
próprios pés.
Falo-lhes, hoje, desde essa jaula elegida e
desenhada, do homem trans, do corpo de gênero não binário. Uma jaula política
que é, em todo caso, melhor que a dos homens ou das mulheres, porque ao menos
reconhece seu estatuto de jaula.
Queria transmitir-lhes hoje ao menos três ideias,
se vocês me permitem. Com a estranha liberdade de falar-lhes desde uma posição
discursiva impossível; pois enquanto está em trânsito, enquanto corpo de gênero
não binário, mutante de uma humanidade binária e colonial que vocês
representam, consagrei toda minha vida a estudar os diferentes tipos de jaulas
onde os humanos se prendem.
Em primeiro lugar, gostaria de dizer-lhes que o
regime da diferença sexual, com o qual trabalha a psicanálise, não é nem uma
natureza nem uma ordem simbólica, mas uma epistemologia política do corpo, e,
como tal, é histórica e mutável.
Em segundo lugar, queria informar-lhes, no caso de
que não o saibam, que esta epistemologia binária e hierárquica está em crise a
partir de 1940. Não somente por causa da resposta exercida pelos movimentos
políticas de minorias dissidentes, mas também pela aparição de novos dados
morfológicos, cromossômicos e bioquímicos, que tornam impossível a atribuição
sexual binária.
Em terceiro lugar, gostaria de dizer-lhes que,
agitada por estas profundas mudanças, a epistemologia da diferença sexual está
em mutação, e vai ceder lugar, provavelmente durante os próximos dez ou vinte
anos, a uma nova epistemologia.
O movimento trans-feminista, queer, de denúncia da
violência hétero-patriarcal, mas também as novas práticas de filiação, de
relação amorosa, de identificação de gênero, do desejo, da sexualidade, da
nomeação, não são mais que indícios dessa mutação.
De cara com essa transformação epistemológica em
curso vocês tenderão a dizer, senhoras e senhores psicanalistas da França, da
América Latina, da Europa, do mundo. O que vão ter que dizer é o que vão fazer:
Onde vão se localizar? Em que jaula querem estar/ser [être] presos? Como vão
jogar suas cartas discursivas e clínicas, em um processo tão importante como
este?
E mais, lhes peço alguns minutos de atenção, se
vocês podem ainda, escutar ainda, o gênero não binário, e conceder-lhe um
potencial de razão e de verdade.
Em primeiro lugar, senhoras e senhores e outros, o
regime da diferença sexual que vocês conhecem e consideram como universal, e
quase metafísico, sobre os que se apoiam e se articulam em todas as teorias
psicanalíticas, não é uma realidade empírica nem uma ordem simbólica fundadora
do inconsciente. Não é mais uma epistemologia do vivente, uma cartografia
anatômica, uma economia política do corpo e uma gestão coletiva desta energia
reprodutiva.
Se trata de uma epistemologia histórica que se
constrói em relação a uma taxonomia racial, tanto como do desenvolvimento
mercantil e colonial europeu, e que se cristaliza na segunda metade do século
XIX.
Esta epistemologia, longe de ser a representação de
uma realidade, é uma máquina performativa que produz e legitima uma ordem política
e econômica específica: o patriarcado hétero-colonial. Antes do século XIX, o
corpo e a subjetividade feminina não eram reconhecidos como sujeitos políticos.
A mulher e as mulheres não existiam nem anatomicamente, nem politicamente, como
subjetividade soberana antes do século XIX.
No regime patriarcal, anterior ao século XIX,
somente o corpo masculino e a sexualidade masculina eram reconhecidos como
soberanos. O corpo feminino e a sexualidade eram subalternos, dependentes e
minoritários.
É interessante pensar que a psicanálise freudiana,
como teoria do aparato psíquico, como prática clínica, aparece precisamente no
momento onde se cristalizam as noções centrais da epistemologia da diferença
sexual: o homem e a mulher definidos como anatomicamente diferentes e
complementares por sua potência reprodutiva, como figuras potencialmente
paternais e maternais, respectivamente, na instituição familiar, colonial,
burguesa; mas também a heterossexualidade e a homossexualidade pensadas como
normal e patológica, respectivamente.
A psicanálise, vista desde o ângulo da história do
corpo abjeto, da história do monstro da sexualidade normativa, e a ciência do
inconsciente, patriarcal e colonial. Lhes peço, por favor, não tentar negar a
complexidade... perdão, a cumplicidade... e a complexidade, as duas, se vocês
querem... a complexidade, assim como a cumplicidade, da psicanálise com a
epistemologia da diferença sexual heteronormativa. Lhes ofereço a possibilidade
de uma terapia política de vossa instituição. [aplausos]
Obrigado.
Mas esse processo não pode fazer-se sem uma análise
exaustiva destes pressupostos. Não os refoulent pas, não os neguem, não os
reprimam, não os desloquem. Não me digam que a diferença sexual não é crucial
na experiência da estrutura do aparato psíquico em psicanálise.
Todo o edifício freudiano está pensado a partir da
posição da masculinidade patriarcal do corpo masculino, heterossexual,
entendido como um pênis eréctil, penetrante e ejaculatório. É por isso que as
mulheres em psicanálise, esses animais estranhos entre as flores, com útero
reprodutor e clitóris, são sempre e, todavia, um problema. É por isso que vocês
têm a necessidade, todavia, no início do século XIX, de uma jornada para falar
das mulheres em psicanálise. [aplausos]
Mas não me digam que a instituição psicanalítica
não tem considerado, e não considera ainda, a homossexualidade como um desvio
em relação à norma. Do contrário, como explicar que até faz muito pouco tempo
não haviam psicanalistas podendo publicamente identificar-se como homossexuais?
Lhes pergunto: quantos de vocês se definem hoje, inclusive aqui mesmo, nesta
Escola da Causa Freudiana, publicamente, como psicanalista homossexual?
[silêncio... seguido de aplausos]
Eu não forço a revelação de posições subjetivas
privadas [risos]... de qualquer maneira, vejo que vocês não o fazem [risos],
talvez não sirva, não sirva para nada.
O que lhes peço é o reconhecimento de uma posição
de enunciação política, em um regime de poder hétero-patriarcal e colonial.
Contrariamente a o que pensa a psicanálise, não
creio que a heterossexualidade seja uma prática sexual ou uma identidade
sexual. Penso que é sim um regime político que tem reduzido a totalidade do
corpo humano, vivente, e sua energia psíquica, a um potencial reprodutivo; uma
posição de poder discursiva e institucional.
Os psicanalistas são epistemologicamente e
politicamente ainda binários e heterossexuais, até que o contrário seja dito ou
denunciado. E temos tido hoje aqui uma prova.
Eu não peço aos psicanalistas homossexuais para
sair do armário – inclusive se pensa que isso te faria bem [risos] -; são os
psicanalistas heterossexuais em vocês, a totalidade desta sala, os que devem
sair urgentemente do armário da norma.
A psicanálise freudiana começou a funcionar desde
finais do século XIX, como uma tecnologia de gestão do aparato psíquico,
encerrada na epistemologia patriarcal, colonial, da diferença sexual. Não há
tentativa na psicanálise freudiana de superar esta epistemologia, mas sim de
inventar uma tecnologia, um conjunto de práticas discursivas e terapêuticas que
permitam normalizar as posições de homens e mulheres, e suas identificações
sexuais e coloniais dominantes (...).
Nesta epistemologia hegemônica os sujeitos
patriarcais, coloniais, modernos, utilizam a maior parte de sua energia
psíquica para produzir solidariedade normativa. Angústia, alucinação,
melancolia, depressão, dissociação, opacidade, repetição, não são mais que os
custos gerados para a manutenção desta epistemologia normativa. A psicologia
não é uma crítica desta epistemologia dominante, mas sim a terapia necessária
para que o sujeito patriarcal-colonial continue funcionando, apesar dos custos
psíquicos enormes da violência indescritível deste regime. Mas esta
epistemologia da diferença sexual, com a qual a psicanálise freudiana trabalha,
mais além da crítica, lhes digo, tem entrado em crise depois da segunda guerra
mundial. E pode ser – não estou seguro disso – se vocês são totalmente
conscientes que esta epistemologia da diferença sexual, com a qual vocês
continuam trabalhando, está hoje em crise. Está em uma profunda crise desde os
anos 40.
A politização de subjetividades, de corpos
considerados como abjetos nesta epistemologia, a organização de movimentos de
luta pela soberania reprodutiva e política do corpo das mulheres e pela des-patologização
da homossexualidade, como também a invenção de novas técnicas de representação
de estruturas bioquímicas da vida, vai conduzir a uma situação sem precedentes
depois dos anos 40. Os discursos médicos e psiquiátricos parecem ter cada vez mais
dificuldades, desde os anos 40 do último século, para enfrentar a aparição de
corpos nos quais não se pode imediatamente atribuir um sexo feminino ou
masculino no nascimento.
Com as novas técnicas cromossômicas e
endocrinológicas, e a expansão da medicalização do parto, cada vez mais bebês,
antes chamados hermafroditas, aparecem. De cara para estes bebês, a comunidade
científica-médica inventou uma nova taxonomia. O psiquiatra de crianças John
Money, trabalhando na Universidade John Hopkins de Nova Iorque, deixa de lado a
noção moderna de sexo, como realidade anatômica, e inventa a noção de gênero,
para falar da possibilidade de produzir tecnicamente a diferença sexual. As
noções de intersexualidade, transexualidade, aparecem também entre 1947 e 1960.
Pela primeira vez, a medicina e a psiquiatria realizam com esforço a existência
de uma multiplicidade de corpos e de posições sexuais mais além do binário.
Mas, no lugar de mudar a epistemologia, a instituição médica, psiquiátrica,
psicológica, decide modificar os corpos, normalizar a sexualidade, retificar as
identificações.
Queria compartir, hoje, com vocês, a hipótese
segundo a qual toda a psicanálise lacaniana, que nasce precisamente depois dos
anos 40, sua re-leitura de Freud, seu rodeio pela linguística, é já uma
primeira resposta a essa crise da epistemologia da diferença sexual. Creio que
é possível dizer que Lacan tentou, como John Money, des-naturalizar a diferença
sexual; mas, como John Money, terminou por produzir um meta-sistema que é quase
mais rígido que a noção moderna de sexo e diferença anatômica. No caso de John
Money este meta-sistema introduz a gramática do gênero, pensada como construção
social e endocrinológica. Em Lacan, este meta-sistema – e vocês sabem muito
melhor que eu – não é tampouco anatômico, mas sim aquele do inconsciente
estruturado como linguagem, mas, como no caso de John Money, se trata de um
sistema de diferenças que não escapa – desafortunadamente – ao binarismo sexual
e a genealogia patriarcal do nome.
Minha hipótese é que Lacan não conseguiu
des-fazer-se do binarismo sexual, por conta de sua filiação/apego político ao
patriarcado heterossexual. Essa des-naturalização está conceitualmente em
marcha; ele mesmo, não estava pronto.
A partir de 1960, com a comercialização da pílula
anticoncepcional, depois com a des-patologização da homossexualidade, a
epistemologia da diferença sexual entra no processo de questionamento e de
mutação incontrolável. Hoje sabemos que um bebê a cada quatrocentos é
identificado como intersexual. Não pode ser reconhecido nos gêneros ordinários.
No curso dos último vinte anos, as crianças que têm sido operadas ou tratadas
como intersexual, tem se organizado para pedir o fim da mutilação genital e os
processos de reatribuição forçada. Ao mesmo tempo, que cada vez mais corpos
começam a identificar-se como não-binários. De modo diferente nos Estados
Unidos, mas também na Argentina, como vocês sabem, ou na Austrália, se
reconhece hoje os gêneros não binários como uma possibilidade política.
Tenho o prazer também de contar a vocês que tem
apenas umas semanas, minha amiga e colega, Judith Butler, se inscreveu no
registro de estado civil da Califórnia como pessoa de gênero não binário. As
identificações de heterossexualidade, homossexualidade, pensadas em relação com
a capacidade reprodutiva dos corpos de sexo oposto, parecem cada vez mais
obsoletas, de cara com a multiplicidade de técnicas de gestão da procriação
assistida. Não somente a pílula anticoncepcional ou a pílula do dia seguinte,
mas também a paternidade transexual, (...), gestação por outro, externalização
do útero, etc.
A epistemologia da diferença sexual está em plena
mutação. Assistimos a um processo de transformação na ordem da anatomia
política e sexual, comparável àquele que levou a passagem da epistemologia
geocêntrica à epistemologia heliocêntrica copernicana entre 1510 e 1730.
Nos próximos anos, deveremos elaborar coletivamente
uma epistemologia capaz de dar conta da multiplicidade de viventes, que não
reduza os corpos a sua força reprodutora heterossexual, e que não legitime a
violência hétero-patriarcal e colonial.
Quando falo de uma nova epistemologia me refiro a
começar um processo de ampliação radical do horizonte democrático, para
reconhecer como sujeitos políticos todo corpo humano vivo, sem que a atribuição
sexual ou de gênero seja a condição de possibilidade deste reconhecimento,
social ou político.
Vivemos um momento – gostaria transmitir-lhes isso
hoje – de uma importância histórica sem precedentes. A violência epistemológica
da diferença sexual posta em questão pelo movimento feminista, homossexual,
intersexual, transexual, queer, e apoiado igualmente pela confrontação de novos
dados científicos, está em trânsito de mudar. Estes processos de mudança deste
paradigma científico e político conduzirão ao reconhecimento, enquanto sujeitos
políticos soberanos, de todo um conjunto de corpos que até agora haviam sido
marcados como politicamente subalternos.
Neste contexto de transição epistêmica, honoráveis
membros da academia de psicanálise da França, e da École de la Cause
Freudienne, vocês têm uma enorme responsabilidade. Vocês têm... e têm que
saber... de que lado querem colocar-se. Se querem permanecer do lado deste
discurso patriarcal e colonial, e re-afirmar a universalidade da diferença
sexual e da reprodução sexual, heterossexual; ou entrar, conosco, os mutantes
deste mundo, em um processo crítico de invenção de outras formas de
subjetividade política. [aplausos]
Vocês não podem recorrer – já termino... vocês não
podem recorrer a cada vez aos textos de Freud e de Lacan como se estes tivessem
um valor universal, não situado historicamente; como se este texto não tivesse
sido escrito no interior deste epistemologia patriarcal da diferença sexual.
Fazer de Freud e de Lacan a lei é também absurdo, como pedir a Galileu que
retornasse aos textos de Ptolomeo ou a Einstein para seguir pensando desde a
física de Aristóteles.
Hoje os corpos, outras vezes excluídos do regime da
diferença sexual, falam e produzem um saber sobre eles mesmos. Os movimentos
transfeministas, me too, nem uma a menos, operam uma transformação crucial.
Vocês não podem seguir falando do complexo de Édipo
ou do Nome-do-Pai em uma sociedade onde as mulheres são objeto de feminicídios,
onde as vítimas da violência patriarcal se expressam por denunciar a seus pais,
maridos, chefes, namorados; onde as mulheres denunciam a política
institucionalizada de violação; ou onde milhões de corpos descem às ruas para
denunciar agressões homofóbicas, e as mortes, quase cotidianas, de mulheres
trans, assim como as formas institucionalizadas de racismo.
Não podem mais seguir afirmando a universalidade da
diferença sexual e a estabilidade das identificações heterossexuais e
homossexuais em uma sociedade onde é legal mudar de sexo, onde podemos identificar-nos,
como pessoas de gênero não binárias; em uma sociedade onde há já milhões de
crianças nascidas de famílias não heterossexuais e não binárias.
Continuar praticando a psicanálise, utilizando a
noção de diferença sexual e com instrumentos críticos como o complexo de Édipo
seria hoje tão aberrante como pretender continuar navegando no universo com um
mapa geocêntrico ptolemaico ou controlar as mudanças climáticas, ou afirmar que
a Terra é plana. [aplausos]
Hoje... – sim, já sei, já termino -...; hoje meus
queridos amigos psicanalistas, é mais importante escutar os corpos excluídos
pelo regime patriarcal colonial, que reler Freud e Lacan. Não se refugiem nos
pais da psicanálise. Vossa obrigação política é cuidar das crianças, não a de
legitimar a violência dos pais.
É chegado o momento de colocar o divã na praça e de
coletivizar a palavra, de politizar o inconsciente.
Nos enfrentamos com uma nova aliança necropolítica
do patriarcado colonial e de novas tecnologias farmacopornográficas. Sem dúvida
nenhuma, já estamos enfrentando uma nova farmacolonização crescente, (...), uma
mercantilização da indústria do cuidado.
[Sussurros... o chamam: “Paul”]
Sim, penso que é necessário que pare.
[Risos, aplausos]
A última coisa. Creio que a tarefa que nos resta
por fazer é começar um processo de des-patriarcalização,
des-heterossexualização e de-colonização da psicanálise. [Aplausos] (...) uma
psicanálise mutante ao redor desta mutação de paradigma. Talvez somente este
processo de transformação, por mais terrível e desmantelador que pareça, mereça
hoje, de novo, chamar-se psicanálise.
Fernanda Pimentel é psicanalista, doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise na UERJ
e investigas os temas relativos à psicanálise na atualidade e à clínica contemporânea
e investigas os temas relativos à psicanálise na atualidade e à clínica contemporânea
Atende em consultório em Niterói e Copacabana.