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20 de maio de 2009

O amor nosso de cada dia (Parte 1 de 3)

Minha contribuição para este número de Opção Lacaniana OnLine visa pensar o amor como um semblante que propicia um tratamento possível do real, justamente, no que ele tem de cômico e pode abrir saídas e soluções para a tragédia da castração.
Lacan relaciona amor e comédia de forma muito explícita, em O seminário livro 5: As formações do inconsciente [1957- 1958], ao dizer “quando o amor é mais autenticamente amor, que se declara e se manifesta, o amor é cômico”.
A princípio, Lacan destaca o amor no registro imaginário. O amor é engano de narcisismo. Nesse caso ele parece estar mais do lado da máscara que encobre algo. Ao final de seu ensino, porém, Lacan dá outra dimensão ao amor, aproximando-o do real. Não como máscara, mas semblante, tecido de material simbólico e imaginário que se distingue do real, como destaca Jacques-Alain Miller. O semblante não encobre nada, ele traça a linha até onde se pode ir com o jogo significante em direção ao real e seu gozo.
O amor, em vez de mera ilusão quanto à pulsão e ao gozo, ao contrário, lhes abre o acesso. Por isso dizemos que o amor se dirige ao real. Em vez de trapaça, é uma via que permite, justamente por passar pelo semblante, dar ao gozo um destino cultural, sustentar com ele uma parceria que permita o real do sexo.
Assim, o que faz rir na comédia dos sexos é o balé dos amantes que, fora da cena amorosa, parece falso. Mas, dentro da cena, e enquanto o amor dura, é o que pode haver de mais
verdadeiro.


..........................................Fotografia Annemarie Heinrich

O amor é um semblante: mais cômico quanto mais autêntico ao encapar a crueza da pulsão; mais verdadeiro quanto mais próximo ao real estiver. Afinal, trata-se apenas disso: do circuito da pulsão ao redor do objeto a – isca para o gozo que anima o corpo. Como seria o gozo sem a comédia do amor? Certamente não seria favorável ao laço social. Quanto a isso, vale lembrar o que Lacan ensinou: o amor faz o gozo condescender ao desejo. Logo, entre as histórias que nos cabe viver, bem-aventuradas as que encenam os paradoxos do gozo rimando amor e dor; que surpreendem pelos impasses do desejo de bem-me-quer ou mal-mequer. E, em especial, as que nos confrontam com a promessa de felicidade. Ainda que muito cômicas, elas nos permitem viver e inventar histórias e, às vezes, com sorte, fazer felicidade.
Que histórias os sujeitos precisam inventar para viver a parceria amorosa atualmente? Como os significantes da época se prestam a escrever sintomaticamente o gozo dos amantes? Como se acolhe hoje o que antes já foi proscrito? Que novidades podem prescrever as parcerias de nossa época? Como situar na clínica o tragicômico contemporâneo da sexuação?
Na Antigüidade, as tragédias e as comédias eram relacionadas ao falo e diferiam na forma como tratavam o real. Nas tragédias a realidade era idealizada e muito afastada do comum. As personagens enfrentavam forças avassaladoras do destino. Conseqüentemente, suas respostas para superar ou atravessar essas ameaças eram, no mínimo, heróicas. As tragédias escrevem o falo como exceção.
As comédias, ao contrário, abordam o real no cotidiano. São mais prosaicas, imputando ao falo um gozo possível e vivificante, pois extraem dele o valor absoluto e ilimitado. Elas escrevem o falo como a castração que vigora para todos, na forma conhecida e vivida pela maioria dos humanos – o amor nosso e risível de cada dia.
A tragédia visa superar a castração, a comédia o trabalho cotidiano que suporta a castração – trabalho do inconsciente, do sintoma, discurso e semblante.
“De um discurso que não seria de semblante”, é uma frase de Lacan que parece expressar que, ainda que o discurso só possa ser apreendido pelo semblante, para a psicanálise interessa o quanto ele deriva do real da castração. Para o falasser, portanto, o discurso do semblante não está aberto a toda e qualquer deriva significante. Ele se vincula ao gozo do real e, nesse sentido, obedece às leis prescritas do gozo.
Lacan concebe essas leis como uma escrita e afirma: a escrita é o gozo. Uma escrita cuja felicidade – happiness – é aprisionada – happé – pelo discurso que a fórmula fálica estabelece. Penso que podemos dizer que essa escrita é a letra do sintoma, a partir da qual os discursos dos semblantes abrem e fecham, para cada sujeito, as portas da felicidade.

.............................................................Continua...

Artigo de Heloisa Caldas, publicado na Opção Lacaniana


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