Texto da psicanalista Marie-Hélène Brousse, O sintoma como sex-symbol, sobre feminino e feminismo a partir de conceituações da psicanálise e da experiencia pessoal da autora.
O sintoma como sex-symbol
Como abordar o tema dessa
conferência? Eu hesitei muito tempo, dividida: pelos discursos, sempre
submetidos à significantes mestres, pela teoria analítica, seus debates e seus
progressos, pela Época e as tendências que ela manifesta...?
Nada disso me era conveniente. Eu já havia tratado de tudo isso
em intervenções anteriores. Havia no tema desse Simpósio de Miami, tema cuja
escolha eu havia contribuído, algo que me obrigava a ultrapassar essas
aproximações, algo que não me satisfazia.
Joan Copjeck, ontem a tarde, utilizando o método da análise dos
discursos, mostrou em sua conferência porque o discurso feminista havia
rejeitado e ainda rejeita hoje a psicanálise: Esse discurso recusa aquilo que
ela chamou de “a promiscuidade do sexo”. Eu tentaria, utilizando o método
clínico, mostrar porque o Feminismo é um modo de fazer sintoma desta mesma
“promiscuidade do sexo”.
Pois eu me rendi às evidências: havia um resto sintomático que
exigia o recurso à experiência analítica, uma vez mais, ainda. Um resto que
exigia uma espécie de controle de minha posição subjetiva. Esse resto, de onde
ele surgia? Da associação de dois termos: meu feminismo e minha relação à causa
analítica; entre os dois, um lugar vazio surgia que exigia um saber.
O controlador, por esse texto que é endereçado a você, é você.
Lacan pode dizer que, quando ele dava seu Seminário, ele estava em posição de
analisante. Sempre que se transmite algo do saber inconsciente vivo, não é
possível escapar de um retorno à essa casa de analisante.
E não é por acaso que isso se passa nos Estados Unidos, pois eu
suponho à meus interlocutores americanos um saber sobre o feminino que me é
desconhecido. Eu acredito que elas estejam em posição de precursoras em alguns
pontos, a despeito e talvez porque eu não fale a mesma língua teórica que elas.
A língua freudo-lacaniana não é a língua dos Gender Studies, nem dos Cultural
Studies, não é tampouco a língua dos diferentes feminismos americanos. Contudo,
é inegável que o real ao qual nós nos confrontamos é o mesmo. Que elas tenham
encontrado mais cedo do que nós é inegável.
Desde que eu me lembro eu era feminista. Primeiramente ao modo
de uma criança. Ser uma menina não era um problema em minhas coordenadas
familiares. Para meu pai e minha mãe, de modo diferente, era um valor. Por que
eu queria então nesse caso ser um menino, quando eu era para o Outro parental
aquilo que a psicanálise pós freudiana chamou de “girl phallus”?. Mas eu não
tardei a encontrar, no Outro, obstáculos. Eu me lembro de duas anedotas que
funcionaram como “marcas”. A primeira é a descoberta, no meio escolar católico
– que foi o de meus primeiros anos de escola – que as mulheres não podiam virar
Papa: mandei para fora o interesse pela religião e passei a ter uma rejeição
violenta a qualquer monoteísmo. Primeiro sentimento de injustiça. A segunda é
mais complexa e trata do Nome. Eu nasci logo após a segunda guerra mundial e as
conversas dos adultos sempre voltavam à isso. Em uma época em que eu batia na
obrigação feita às mulheres de trocar de sobrenome quando se casavam, portanto
de trocar de identidade ao entrar nas leis patriarcais da aliança simbólica,
alguém, evocando o destino dos judeus durante a guerra, disse que para
sobreviver os judeus haviam trocado de nome. A equação mulher=judeu=perigo de
desaparecimento foi constituída. Mais tarde eu deduzi que o destino das
mulheres, contudo, numericamente majoritárias, era paradoxalmente ligado ao das
minorias. Eu posso, portanto, dizer que o feminismo, como fenômeno de
identidade, é meu primeiro sintoma.
Como sublinhou magistralmente Miller em uma conferência feita
nos Estados Unidos, na Kent State University, o Édipo freudiano, quer dizer, o
complexo de castração, é uma máquina de produzir uma identificação e uma
escolha de objeto. Todos os trabalhos que tratam de gender devem ser colocados do lado da identificação, quer ela seja
Imaginária, Simbólica ou Real. A identidade não resolve a questão da escolha de
objeto, questão que implica a escolha do gozo. Indo direto ao ponto, minha
identidade, pelo viés do sintoma feminista, não recaía sobre a reivindicação de
possuir atributos viris (nada de penisneid).
Lacan, no Seminário V, falando do Édipo feminino, afirmava que à menina nada
falta, no sentido de penisneid, e que
o complexo de castração não tem a ver com os órgãos ou as imagens, e sim com o
sujeito em sua relação com a linguagem e à opacidade do desejo do Outro.
O que eu reivindicava, e que ainda reivindico é a
universalidade. Eu estava, portanto, em uma identificação viril, a qual Lacan,
em seu Seminário Mais, Ainda, situa do lado masculino definido pelo princípio
do “Para todo X, phi de X”. O feminismo que eu exercia, sem fazer dele um
ativismo militante, era, portanto, igualitário e jurídico. Ele se opunha à
qualquer segregação que se apoiasse no sexo biológico ou sociológico, à
qualquer segregação que viesse do discurso. Isso dá um resultado divertido se
acrescentamos que minha escolha de objeto era decididamente masculina:
identidade feminista, quer dizer, masculina no sentido da lógica da sexuação e
escolha de objeto masculino: portanto eu era “gay” e não lésbica. A questão da
identidade, sempre elaborada no Outro, situa toda uma paleta da sexualidade no
lado dos discursos do mestre, religioso, laico ou científico. Como tal, ela é
fundamentalmente um problema de lógica de conjuntos e categorias. E isso mesmo
que não se possa escapar ao fato de que o universal do “para todos” fabrica a
segregação da qual ele promete conseguir fugir. É uma das razões que fazia com
que meu sintoma feminista, que se sustentava no Pai, não pudesse dar nenhuma
carne ao feminino. Ele funcionava como defesa contra o perigo da lei do
capricho, defesa contra o inigualitarismo. Nesse ponto se tratava de um
humanismo. Mas ele funcionava igualmente como defesa contra o feminismo, isso
quando não se faz do feminino o significante simétrico do significante
masculino, se concebemos o feminino como podendo não ter nenhuma relação com o
masculino, seguindo assim o axioma do inconsciente lacaniano: a relação sexual
não existe.
Eu me lembro de minha primeira consulta ginecológica de adulto
em que eu vinha pedir uma receita para pílula, já maior. O médico me deu uma
lição de moral paterna, convencido de que graças à pílula eu iria mergulhar em
uma vida de promiscuidade sexual. E eu pensei “ah se isso pudesse ser
verdade!”, e eu lhe disse que, por conta de meus estudos de filosofia, eu não
tinha vindo lhe pedir uma lição de moral, mas que, como eu tinha o direito, eu
o utilizava como distribuidor de contraceptivos. O verdadeiro limite de minha
solução feminista eu iria, efetivamente, encontrar não na minha recusa da
segregação e sim na pesquisa dos corpos. Um limite no real, o dos encontros
amorosos e/ou sexuais fora do princípio da universalidade. O “para todos” do
universal produz a segregação e a reforça ao lutar contra ela, não deixando
outro lugar para a diferença além do lugar da exceção através do modelo “Todas
putas menos minha mãe”. O “não todo”, que Lacan desenvolve com sua “lógica de
borracha”, produz conjuntos incompletos e inconsistentes. Por aí uma outra
versão do feminino pode se impor. Eis porque, após ter lido os textos
consternadores dos psicanalistas pós-freudianos sobre o gozo feminino, e
impulsionada pela insustentável posição de um falo imaginário incapaz de
recobrir um vazio, um desaparecimento sempre que o desejo do Outro tentava
ultrapassar a barreira da imagem e a defesa pelo sintoma, eu escolhi a
psicanálise, ou seja, o desejo de Lacan.
O tratamento analítico lacaniano obteve o seguinte resultado:
substituição da psicanalista à mulher, com a mesma dificuldade de definição. O
que esta substituição modificou? Meu feminismo de início era um sintoma que se
batia pela manutenção das mulheres na estrutura do laço social, quer dizer, em
todo discurso do mestre quer fosse do passado ou ainda por vir. Eu posso é
claro constatar ainda a justiça dessa crítica e estender o campo à outros
indivíduos. Um sujeito que não se situa dentro das coordenadas do discurso do
mestre dominante está exposto a uma segregação que o põe em risco, inclusive de
sobrevivência.
Mas a escolha da prática da psicanálise implica em passar de uma
lógica da identidade a uma lógica da posição de gozo. Eu não pude, portanto,
recuar diante da análise daquela que ordenava minha posição fálica e sustentava
por esse viés o meu combate. Ao me dirigir para Miami e lendo uma revista
feminina, eu acho que era a “Elle”, eu me deparei com o seguinte título de um
artigo: “Ser uma mulher, é um esporte de combate”. O preço a pagar era, com
efeito, muito pesado. Primeiramente o combate nos leva sempre à estrutura
imaginária a/a’. Em segundo lugar esta posição fálica me ligava a uma posição
em que, dominada pelo supereu materno, todo desejo estava mortificado, todo
acesso à esse não-todo que me constituía era perigoso para a integridade de uma
feminilidade idealizada, e não real. O corpo e seus gozos ficavam submetidos a
um controle feroz. Eu era para mim mesma este objeto do fantasma pelo qual eu
desejava recobrir e dar consistência ao desejo do Outro que não existe. Em
terceiro lugar a posição de gozo não se articula com a identidade e com o
gênero, ao menos não totalmente. Os objetos pulsionais nesse caso são
dominantes na constituição de um outro tipo de identidade, pulverizada,
inclassificável. O feminino que me habita me surgiu como descontinuidade nas
manifestações, incontrolável pelo Ego, jogando com a ordem simbólica que me era
cara, sempre pronta para a ironia, chegando até esse gozo de desvanecimento e
do corte fora do sentido. Eu o encontrei sem distinção de gênero em alguns e
algumas. Enfim, o sexo biológico ou sociológico não tem nada a ver e,
sobretudo, não determina, ao menos não totalmente, a posição de gozo dos seres
que possuem seu ser de linguagem.
E o que aconteceu nessas condições com a minha questão de
infância sobre a segregação, o sentimento de perigo real que ela produzia em
mim e que possui parte de suas coordenadas na História, mas igualmente na minha
“hystoria” particular, usando o neologismo de Lacan? Isso continua como uma
questão lógica. Nas diferentes modalidades do discurso do mestre, incluindo
evidentemente as que se impõem hoje em dia, a das feministas, a dos
transgêneros, a dos homossexuais, tudo se ordena em torno do Um posto em
posição de agente do discurso, o um da ordem. Todo significante mestre é
segregador. Se vários discursos do mestre coexistem, o múltiplo não abole o
princípio da universalidade, mas como disse Lacan em sua pequena nota sobre o
Pai, multiplicam-se os fenômenos de borda, de fronteiras, entre minorias
definidas cada uma a partir de seus significantes mestre. As fronteiras
permitem que a segregação funcione como no mundo da guerra das estrelas: raças
que coexistem em uma ordem jurídica e sob legalidade democrática. Em sua
proposição sobre o Psicanalista da Escola, Lacan formula o nome do pai em suas
três dimensões: imaginária, simbólica e real. Eis o que ele diz dessa última:
“a terceira facticidade (do Édipo freudiano) ...é a que torna pronunciável o
termo de: campo de concentração... Resumamos ao dizer que o que nós vimos
emergir, para o nosso horror, representa a reação de precursores em relação ao
que virá, desenvolvendo-se como consequência dos remanejamentos dos
agrupamentos sociais pela ciência, e notadamente pela universalização que ela
introduz. Nosso futuro de mercados comuns encontrará sua balança em uma
extensão cada vez mais dura dos processos de segregação.” Os discursos dos
mestres que hoje se praticam são determinados pelos avanços da ciência que
define um universalismo fundado, não sobre o significante, mas sobre o número e
a letra. A segregação vai se modificar, se antes era um processo simbólico, ela
vai se tornar real. É possível supor que a identidade sexual será modificada,
mas não menos segregadora.
Passar do feminismo como sintoma ao sintoma analítico, é passar
do discurso do mestre ao discurso analítico. Esse último não coloca no lugar do
poder um significante, homem ou mulher por exemplo, e sim um objeto pulsional,
qualquer que seja, para um dado sujeito. O discurso analítico não gera,
portanto, grupos sociais. Ele busca os Uns, solitários. A definição do feminino
que Lacan dá em Mais, ainda é uma
tentativa de subverter o julgamento universal. É, a meu ver, a única
possibilidade de derrotar a segregação sem contudo negar a necessidade lógica.
Então, eu me tornei psicanalista, eu escuto os Uns solitários sem nunca
prejulgar sobre seus modos de gozo e de suas soluções sexuais. Meu princípio é
lacaniano, é “o ser sexuado apenas se autoriza por si mesmo”. Eu passo minha
escuta, como Lacan testemunhou ele mesmo, a escutar os seres falantes inventar
seu gênero e se submetendo à lógica de seu saber inconsciente, assumindo a
escolha de seu modo de gozar. Desagregação. Nunca é possível se desembaçar de
seu sintoma, nós o tornamos operatório.
Fernanda Pimentel é psicanalista e atualmente
cursa doutorado em Pesquisa e Clínica em Psicanálise na UERJ, pesquisando
sobre a psicanálise na atualidade e a clínica contemporânea.
Atende em consultório em Niterói e
Copacabana.
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