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4 de dezembro de 2008

Conversando com os demônios

Jorge Forbes

Artigo publicado na revista WELCOME Congonhas, setembro de 2008 - ano 2 - número 19

Mais rápido que o sarampo, a rubéola, a catapora, ou qualquer outra doença infecciosa, o vírus da desconfiança se espalhou entre todos os continentes, de forma implacável, não respeitando nenhum tipo de atestado de vacina. Se alguém ainda tinha dúvida do que é o conceito de epidemia – que ganha força entre os cientistas das humanidades - acabou de ter um exemplo primoroso com a crise econômica que assolou o mundo. Belo exemplo do que é a globalização, e de como se dão as mudanças nesses tempos, em uma velocidade estonteante, e que penetram por qualquer fresta, a partir de um tipping point, ou seja, de um ponto que, uma vez atingido, a mudança se precipita inexoravelmente.
Freud dizia que se convocarmos os demônios dos infernos devemos aproveitar para conversar com eles, antes que voltem às suas profundezas e nos esqueçamos de suas existências, em nossa comodidade cega. Falemos com eles.
A nível individual, esta crise gera uma depressão ansiosa. Deprime, pelo que a pessoa perde; angustia, pela imprevisão do futuro, pela desesperança. O ser humano tem duas bússolas fundamentais: o sexo e o poder, quando um dos dois pólos (na verdade duas faces do mesmo) fica desbalanceado, dá-se o mal estar. Essa crise econômica quebrou a agulha da bússola, o mundo ficou biruta. Será que o conserto será uma ortopedia, com o conseqüente retorno ao que era, ou será uma cirurgia renovadora, uma mudança de paradigma? Aos que não ficarem completamente imobilizados por sua repentina e difícil situação existe uma chance de se tratarem e o melhor que pode lhes ocorrer é descobrir que o sistema fálico, leia-se, aquele espelhado no poder econômico da acumulação de dinheiro, baseado da disputa matreira, não é a única possibilidade de orientação na vida. E mais, que alguém até mesmo será melhor negociante se sua identidade não tiver dependente do jogo de perde ou ganha.



Do ponto de vista do pacto social, é chegada a hora – estampada nessa crise - de reconhecer a pouca flexibilidade e os limites criativos de um sistema econômico ainda fortemente marcado pelos valores da era do mundo industrial da qual nos despedimos. Uma epidemia, na globalização, diferentemente da crise de 29, por exemplo, não tem um centro, não tem um responsável encarnado. Sua cura não se dará da forma que tratávamos nossas moléstias da era anterior, em uma suposta recuperação do prestígio de tal ou qual agente social, pessoa ou instituição. Em um mundo globalizado, estruturado em redes, o centro está em toda parte e o que se espera é que sejamos sensíveis ao cálculo coletivo, e não a gurus ou bispos de ocasião, se quisermos influir no que nos ocorre e possamos melhor conversar com os demônios. A responsabilidade é de todos.
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Artigo retirado do site do autor.
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3 de dezembro de 2008

O peso da feminilidade (parte 4 de 4)

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Isto nos leva a uma segunda hipótese sobre a diferença entre a arte produzida por homens e por mulheres, ainda que nos dois casos a feminilidade seja um vetor central. É que as mulheres que se expressam publicamente talvez não saibam - ou não queiram? - evitar a exposição pública de sua privacidade. Melhor dizendo: um artista homem, formado (como todos os homens) segundo uma tradição milenar que lhe confere um saber, um manejo de sua personalidade em público, tem mais preocupação, ou interesse, em separar-se de sua obra. Os clichês habituais sobre a poesia feminina, por exemplo, que falam do desnudamento da poeta através de seus versos , da alma que se revela na escrita, etc, sugerem que o véu que protege a intimidade de uma artista é bem mais transparente do que aquele que separa um homem criativo da obra criada.

Claro que os véus faziam sentido na obra das autoras das primeiras gerações, quando ainda era condenável que uma mulher assinasse publicamente seu nome. Mas eram véus muito frágeis, que foram dispensados logo que o preconceito que condenava as mulheres ao silêncio se dissolveu. Uma ou duas gerações separam por exemplo a poesia atrevida de Ana Cristina Cesar da delicada Cecília Meireles. Em um debate universitário, no Rio de Janeiro, na década de 70, alguém na platéia teria criticado justamente a aparente ausência de véus na poesia de Ana C., que fala de "coceiras no hímen" e nomeia insistentemente, sem eufemismos, o desejo de uma mulher (a autora? a personagem literária que ela criou?). A debatedora cobrava "mais feminilidade" na poesia de Ana Cristina, usando como referência positiva os versos mais delicados de Cecília Meireles, onde as metáforas são a brisa, a flor, as estrelas. Ao que Ana C. teria prontamente respondido: "mas Cecília é homem!"
É possível que, no que se refere à falta de pudor de diversas artistas contemporâneas, o diferencial seja realmente a mínima diferença irredutível entre homens e mulheres: a relação de uns e outras com a castração e a inevitável angústia em confrontá-la. A diferença entre o homem que se subjetiva pelo evitamento da realização de uma fantasia de castração, e a mulher que parte da constatação de um fato consumado. A diferença entre as defesas de quem se supõe capaz de evitar uma perda (já ocorrida...) e as da subjetividade que se inaugura como não tendo "nada a perder ". É compreensível que um homem saiba o ponto onde se deter, diante da angústia - o mesmo ponto a partir do qual uma mulher, ancorada na inveja (palavra feia que nos envergonha, pois sugere o pior dos pecados capitais; mas que também pode ser entendida no sentido da ambição) tenta sempre ir um pouco além.
Estas observações psicanalíticas, no entanto, só fazem sentido na presente discussão se entendermos que a dialética fálico/castrado de que a psicanálise se serve para pensar a diferença sexual é indissociável da dialética entre o público e o privado. É a representação pública da masculinidade, e a potência de que um homem dispõe no espaço público, que lhe confirma a ilusão de falicidade, ainda que imaginariamente ela se apoie sobre a posse de um pênis. É a insignificância pública das mulheres que faz valer a ilusão de sua "mais-castração", ainda que a ausência do pênis contribua para consolidar esta fantasia. Foi em razão da insignificância, da impotência milenar das mulheres no espaço público, que Freud veio a observar a confusão fantasmática de suas histéricas, que superpunham demanda de falo e demanda de pênis, e cujo único consolo era a conquista do falo/filho que as condenavam à dependência absoluta de fazer-se amar, ou pelo menos desejar, por um homem.
Assim, estas mulheres que expõem e assinam suas obras superam, ao inscrever seus nomes no campo do Outro, (nomes de mulher com sobrenomes herdados de homens, pais ou maridos...) o imaginário infantil que sustentava a dialética do falo e da castração. Ao mesmo tempo, formadas na tradição da privacidade e da domesticidade, destemidas diante da inscrição indelével de uma perda que já se realizou, talvez não se preocupem muito em evitar a exposição de sua intimidade em público. Talvez não tenham tanto a perder; talvez não saibam como fazer. Nas obras de arte criadas por mulheres, a feminilidade revela seu peso. Como no poema de Liana Timm:
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Onde estamos?
Em Qual?
Em Jamais?
Em Nunca Mais?
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Estamos em Ferida.
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Aberta, há mais de muitos anos.
Com pás, enxadas e uma vasta gama
De suores e traçados
Labirintos.
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Estamos nunca prontos.
Há a casa e seus internos. Eternos.
Há a rua e seus externos
Há o mundo. Atrás do olho.
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Vou vazar teu olho.
E remexer no estado natural da tua fala.
Nesse desejo tateante fora dos gestos.
Na pele./ Dessas formas envolventes.
Nesses meios./ Teus lençóis com cicatrizes
vão gelando a noite e meus cabelos crescem
nessa trança salva-vidas. Aí me atiro em Ícaro.
E no tapete vou.
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Buscar.
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Leveza? Onde?
O campo da arte interroga a psicanálise, desloca nossas certezas, nos obriga sempre a repensar a teoria - como escreve Jaime Betts, é importante que as questões que a obra de arte suscitam possam permanecer em aberto. Assim, encerro este prefácio afirmando que, diante da arte, seja ela obra de homem ou de mulher, todas as nossas certezas a respeito da mínima diferença que é condição do desejo sexual caem por terra. Deixemos que os artistas continuem a falar disso e a nos fazer rever a teoria. Mas saibamos também que a melhor interpretação para uma obra de arte nunca se dá no campo da teoria; a melhor interpretação para uma obra de arte há de vir, sempre, de outra obra de arte.
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Maria Rita Kehl
www.mariaritakehl.psc.br
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Veja a primeira, segunda e terceira parte deste texto.
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Nietzsche


"O homem é uma corda esticada entre o animal e o super-homem, uma corda por cima do abismo"
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Nietzsche
"Assim Falava Zaratustra"

30 de novembro de 2008

O peso da feminilidade (parte 3 de 4)

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A feminilidade não é leve e as obras das artistas que aqui se apresentam vão muito além da leveza e da delicadeza. Elas revelam, de um lado, a força de uma potência feminina - potência criativa que se afirma ao encontrar seu caminho, contra a insatisfação, o silêncio e a resignação. Potência que é também erótica e que, sublimada, permite o gozo criador do artista e o gozo estético de quem contempla a obra pronta. Revelam também que uma mulher, quando opera no registro da feminilidade ( registro que não é exclusivo das mulheres, nem as mulheres o habitam todo o tempo) ousa romper as barreiras - os véus? - que nos separam da crueldade, do horror, da morte, do inconsciente.

Resumindo: uma artista, mulher, operando no registro da feminilidade, dispõe de uma potência e de um destemor que a tornam capaz de estender o ato criativo sempre um pouco mais longe na direção do irrepresentável. A operação é perigosa, e aponta para os limites da simbolização. Este é o título, aliás, de um excelente ensaio de Ana Cecília de Carvalho em que a autora analisa casos de poetas que se suicidaram em pleno vigor produtivo. A hipótese da autora é de que mesmo a operação sublimatória pode ser insuficiente para proteger aqueles que tentam avançar muito longe na região do vazio, dominada pela pulsão de morte. Ana Cecília analisa os casos exemplares dos suicídios da poeta norteamericana Sylvia Plath e da brasileira Ana Cristina Cesar. Mas analisa também o poeta judeu alemão Paul Celan, e outros homens suicidas. Podemos evocar Gérard de Nerval. Ou, mais perto de nós, Torquato Neto. Ou Hemmingway. Fora do campo da poesia, podemos pensar nos gênios dissolutos e auto destrutivos de Antonin Artaud e Glauber Rocha. A lista é interminável. Haverá diferença entre mulheres e homens, no que toca aos perigos do gozo criador? Haverá diferença entre artistas mulheres e homens no que diz respeito à relação com a feminilidade?
Por outro lado, não nos enganemos: a sublimação e o ato criativo só são possíveis se o sujeito dispõe de algum manejo do falo. Receptividade (feminina?) e potência (masculina?) são recursos psíquicos essenciais ao artista. O manejo da castração e do falo são indissociáveis; como já escrevi em outras ocasiões: ninguém suporta viver todo o tempo na posição feminina.
Os grandes monolitos criados pela escultora paulista Laura Vinci na década de 90, de ferro pesado, bruto - objetos fálicos erguidos em direção ao céu - quem diria que foram criados por uma jovem mulher?
Quanto à dimensão da desmesura, vale perguntar: quem foi mais longe na expressão da dor, do desamparo, da angustia de existir: Auguste Rodin (em Os Burgueses de Calais, por exemplo) ou Camille Claudel (em A Suplicante, ou A Idade Madura)? Podemos arriscar, isto sim, a hipótese de que a aluna e amante de Rodin expôs mais de si mesma em suas esculturas, enquanto ele soube interpor uma distância segura entre o homem - carne, ossos, coração - e a obra. Há sofrimento, tormento, angústia, desmesura, risco, na escultura de Rodin. Pensemos em O Portal do Inferno, por exemplo. Pensemos no seu Balzac. Mas não temos, nessas obras, nenhuma chave óbvia de acesso à subjetividade do próprio Rodin. Existe uma distância segura entre a vida e a obra da maioria dos grandes artistas.
Por outro lado, muitas das esculturas de Camille Claudel parecem expor, sem véus, a intimidade da artista. Não parece indevida a observação de Paul Claudel sobre A Suplicante: E, no entanto, a mulher, ou antes, a jovem, esta alma nua, esta jovem ajoelhada (...) Deixem-me, voltando-me para dentro de mim mesmo, não ver nela senão Anima, nesta composição onde os laços são feitos de ruptura. (...) Mas, não! Esta jovem nua é minha irmã, minha irmã Camille; suplicante, humilhada, de joelhos, esta soberba, esta orgulhosa, foi assim que ela representou a si mesma.
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............................................................................Continua...
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Camille Claudel, The Implorer, 1899. Bronze. France, private collection

.Camille Claudel, The Age of Maturity, 1899. Bronze. Paris, Musée Rodin
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Confira a primeira e a segunda parte do texto...

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