Cometei da fala polêmica de Paul Preciado aqui no blog - e postei seu texto na íntegra - que critica uma posição assumida pelos psicanalíticas lacanianos atualmente no que diz respeito ao gênero e sexuação.
As criticas de Paul, sobre este tema tão atual e necessário, levantaram um debate, já que vários psicanalistas responderam à sua intervenção, alguns incisivamente contra, outros compartilhando de suas ideias.
Abaixo, segue a resposta de Maleval, psicanalista francês.
Resposta à intervenção de Paul B. Preciado na 49ª Jornada da Escola da
Causa Freudiana
Jean- Claude Maleval
Um longo comentário criticando a psicanálise,
acusada de obsolescência, nunca havia ressoado na tribuna de um congresso de
uma escola de Lacan antes do dia 17 de novembro de 2019. Não podemos duvidar
que a diatribe de Paul B. Preciado vem testemunhar uma nova conjectura
histórica.
Ele rejeita a binaridade dos sexos, considerada
patriarcal, em nome de um construtivismo do gênero, que supostamente estaria
mais comprometido com a modernidade. Ele ignora que a abordagem lacaniana da
sexuação não é essencialista. Ela se afirma tão construtivista quanto a sua
abordagem: não consideramos que o devir sexual seja determinado pela fisiologia
(1). Existem fortes identificações contrárias ao sexo biológico entre os
neuróticos. E existem suplências que passam pela transexualização.
No entanto, segundo Lacan, a escolha do sexo não
está aberta à infinita diversidade de gêneros. Ele a concebe como sendo
determinada por uma fixação de gozo em um sintoma, ao qual ele reduz a função
fálica: fixação feita “toda” pelo dito homem, e não-toda pela dita mulher. Este
é um dado histórico? É o patriarcado que gera o primado da referência fálica? A
hipótese de Lacan (2) o relaciona a um efeito de linguagem sobre o falasser.
Mortificando o vivente, o significante produz um limite que se impõe ao gozo de
cada um - parcialmente, totalmente ou de modo algum (ele pode falhar). A
conexão do gozo com a linguagem, que une a perda traumática do vivente (a)
e sua cifragem significante (S1), constitui o que Lacan designa como a função
fálica em seu último ensino (3). Embora de maneira diferente, ela vale tanto
para o homem como para uma mulher. Ela é própria ao falasser qualquer
que seja a conjuntura social na qual é construída (4). No entanto, ela leva a
abordar o gozo, destaca Jacques-Alain Miller, "pelo lado onde ele é
interditado" (5); enquanto P. B. Preciado o gostaria ilimitado.
Considerando
que "a pornografia diz a verdade da sexualidade" (6), P. B. Preciado
postula, escreve Sophie Marret-Maleval, um corpo gozante "capaz de escapar
da influência do significante", que o leva a "visar a correlação
entre verdade e gozo", na busca pela "desalienação total" (7). A
existência de um corpo biológico natural, não tocado pela linguagem, está no
início de suas hipóteses; a partir de então, ele o concebe aberto a todas as
construções possíveis. Na sua perspectiva, ele mesmo, hoje Paul, Beatriz ontem,
o gozo é mal limitado por escolhas identitárias, voluntárias, temporárias,
reversíveis e estendidas ao infinito. Por outro lado, segundo Lacan, existe um
limite com o qual é preciso compor. Na época do Outro que não existe, fica
claro que esse limite não é determinado por uma ordem simbólica. O modo de
gozo, para a maioria dos sujeitos, se encontra restrito e limitado por uma
captura contingente e singular a um significante. Disso resulta uma
constatação: um modo de gozo próprio a cada um. Uma das conclusões mais seguras
do passe, já esclarecida por Lacan, revela a produção de "esparsos
disparatados" (8) e desfaz a ilusão de uma travessia comum.
A diatribe de P. B. Preciado certamente se baseou
em uma leitura rápida de Lacan, que tendia a congelar sua abordagem em um
binário da sexuação; no entanto, sua inserção em 2019, em um congresso de
psicanálise, não pode ser considerada um evento menor. Os aplausos que
pontuaram positivamente seus comentários várias vezes atestam que eles não
deixaram de ecoar em um grande público. Por mais questionável que nos pareça
seu discurso, ele não deixa de ter uma grande repercussão sobre os sujeitos
cada vez mais numerosos que aderem a ele: ele modifica alguns de seus
comportamentos e às vezes transforma voluntariamente seus corpos.
B. Preciado iniciou sua intervenção formulando
questões que não devemos negligenciar muito rapidamente: quantos analistas da
Escola (AE) (9) são homossexuais (10)? Quantos AEs são transexuais (11) ou
transgêneros? É certo que o passe implica uma desidentificação que exclui se
apresentar sob esses significantes, mas é ele compatível com esses modos de
gozo? Como um analista que conhece hoje seu nó subjetivo não
borromeano pode abordar o passe? Como nenhum EA até agora se apresentou assim,
a escolha se reduziria para ele, em renunciar a se introduzir
na experiência ou em dar uma forma neurótica ao seu testemunho? Nos
dois casos, a investigação de Lacan sobre se tornar um analista sofre um abalo.
Não há dúvida, porém, que no século XXI os gozos que determinam a passagem ao
analista demonstram uma diversidade que vai muito além dos modos de gozo do
século passado. Por que, por exemplo, uma substituição não poderia levar a
isso?
A referência continuinista certamente forneceria
uma solução fácil: seria suficiente no passe destacar o S1 do sinthoma sem
se preocupar com as diferenças de funcionamento subjetivo. No entanto, trata-se
de não ignorar a distinção entre o sinthoma "desabonado
do inconsciente" (12) e aquele que, ao contrário, está articulado a ele.
Até então, os passes parecem tratar apenas os últimos.
Além disso, uma discussão sobre a relevância do
conceito de sinthome no autismo poderia ser evocada (13). O
que o autismo tem a ver com o passe? Lembremo-nos de Jacqueline Léger,
convidada da Primeira Jornada do Centro de Estudos e Pesquisas sobre Autismo
(CERA) (14). Ela nos disse que, após uma longa análise, trabalhou por muitos
anos como psicóloga clínica de formação analítica. Certamente ela não deu o
passo para se tornar uma analista. Mas outras pessoas autistas o farão, se já
não o tiverem feito. Quanto a saber se a prática de analistas não neuróticos
irá se deparar com limites, a questão merece ser levantada. Seria muito
ilusório, no entanto, supor que os analistas neuróticos nunca iriam se deparar
com limites - se eles fossem bem analisados.
P. B. Preciado chamou nossa atenção para a
estreiteza do modelo no qual o passe seria baseado. Devemos afirmar, contra a
experiência, que a prática analítica é reservada aos neuróticos? Isso é pouco
provável, exceto para retornar ao ato de Lacan que institui uma autorização que
se baseia em uma decisão do analista. Portanto, por que limitar a investigação
desejada por Lacan sobre tornar-se analista? Suas modalidades de ontem ainda
são as de hoje? Não se costuma dizer que o passe não pode ser a verificação de
qualquer conformidade? Levar Lacan a sério quando ele convida quem recorre à
psicanálise a "alcançar em seu horizonte a subjetividade de seu
tempo" (15) não implica uma renovação contínua do passe? - à semelhança
por exemplo de um posicionamento acolhedor do casamento para todos. Certamente,
nada proíbe um homossexual, um transexual, um transgênero, ou um autista de se
apresentar a um passe, mas na prática eles não passam por ele, não o atravessam
ou mesmo não o declaram. Pois o AE ainda não está obrigado a aderir a uma parte
da ordem simbólica?
Uma dificuldade, no entanto, P. B. Preciado não
deixou de enfatizar: os entrelaçamentos sempre persistentes da teoria
psicanalítica com o discurso da psiquiatria. Como apresentar-se ao passe dando
a entender que se é psicótico, perverso ou autista? Obviamente, o processo é
dificultado por esses significantes. A ampliação do passe leva então à premissa
de uma mutação da denominação dos funcionamentos subjetivos? Deveríamos falar
de estrutura repressiva ou substitutiva? (16) Talvez seja melhor, para produzir
uma ruptura mais radical, distinguir apenas entre o nó borromeano, o nó não
borromeano e o nó pela borda?
Todas essas questões complexas sobre o passe e
nossa terminologia hoje estão surgindo com maior força. Ainda é muito cedo para
levantá-las? Mas quando chegará o momento certo? Devemos temer que elas abram
um abismo? Ou devemos tentar entender melhor uma mutação já em andamento? A
escolha que nos é oferecida é de sufocá-las, o que não as impediria de surgir,
ou acompanhar seu progresso, sem deixar de considerá-las. Temos que ter cuidado
para não deixar de ouvir a intervenção de P. B. Preciado: ele veio lembrar a
psicanálise da necessidade de evolução permanente. Os modos de gozo são
tributários das mudanças sociais. Também Lacan nunca para de apontar que
"o inconsciente é a política" (17)!
1- São os psicanalistas que dizem se referir a
Lacan tendo uma abordagem essencialista da sexuação que fazem com que a
transexualidade seja considerada “uma loucura”: segundo Frignet: “é impossível
não ser um homem ou uma mulher. A essa primeira impossibilidade, se soma uma
segunda: a transformação exterior e o desejo pessoal do sujeito, é impossível
modificar esse pertencimento. Somente a aparência será mudada, o sujeito,
queira ou não, será para ele mesmo e para os outros, um homem ou uma mulher”
(Frignet H., Le transsexualisme, Paris, Desclée de Brouwer, 200, p.149 &
128)
2 - A abordagem lacaniana da sexuação, como
qualquer teoria, se baseia em hipóteses indemonstráveis, isso vale também para
a teoria de gênero. Invocar a experiência analítica em favor de uma, ao invés
da outra, seria recorrer ao que Lacan chamou de “carta marcada da clínica”
(Escritos, p. 815).
3- “O falo é a conjunção do que chamei de esse
parasita, ou seja, o pedacinho de pau em questão, com a função da fala”.
(Seminário 23, p.16)
4- Ganharíamos no século XX em acentuar a abordagem
lógica da função fálicas, que a reduz a uma barra sobre o gozo operado por uma
cifragem significante, a fim de destacá-la mais radicalmente de qualquer imagem
peniana.
5- J.-A. Miller, “Orientação Lacaniana, O
Partenaire-sintoma” (1997-1998) lição de 18 de março de 1998
6- Preciado, B. Testo Junkie. Sexe drogue et
biopolitique. Paris, Grasset, 2008, p. 218
7- Marret-Maleval S. “Sur Testo Junkie. Sexe drogue
et biopolitique de Beatriz Preciado”, Ornicar? 58, 2018, p. 195-198
8- Lacan, Outros Escritos, p. 569
9-AE: título concedido por três anos àqueles cujo
percurso e o fim da análise têm valor de ensino, ao final do procedimento do
passe, instituído por Lacan, por sua vez, os passadores, analisandos ainda em
análise, transmitem ao cartel do passe o testemunho do passante.
10- No que diz respeito ao sujeito homossexual,
Miller afirma que a psicanálise visa “essencialmente obter que o ideal deixe de
impedir o sujeito de praticar seu modo de gozo, [...] aliviar o sujeito de um
ideal que o oprime por ocasião e colocá-lo em posição de sustentar seu
mais-de-gozar, o mais-de-gozar que ele é capaz, o mais-de-gozar que lhe é
próprio, ter uma relação mais confortável” (Miller & Laurent, O outro que
não existe e seus comitês de ética, lição de 21 de maio de 1997, publicado em
espanhol). Não compartilhamos as opiniões dos psicanalistas que afirmam ser
capazes de identificar o normal e o patológico, tal como Charles Melman no
jornal Le monde de 01 de outubro de 2005: “Façamos uma pergunta simples, a
homossexualidade constitui uma patologia? É o que psiquiatria americana hoje
rejeita. Se admitirmos que ela está organizada por uma defesa contra a
diferença e a alteridade, neste caso, é incontestável que ela constitui”.
11- Quando a psicose ordinária é suplantada, por
exemplo por uma transexualização bem assumida, ela constitui um dos modos de
conformidade social, e nada autoriza a considerá-la como uma patologia. (ver
Maleval J.-C., « Du fantasme de changement de sexe au sinthome transsexuel »,
Repères pour la psychose ordinaire. Paris, Navarin, 2019, p. 186-208).
12- Lacan J., « Joyce le symptôme I », em Joyce
avec Lacan, Paris, Navarin, 1987, p. 24
13- Parece que a cura do autismo permite às vezes
não liberar o S1 de um sinthoma, mas sim construir um S1 como
síntese.
14- Jornada do Centro de Estudos e Pesquisas sobre
o Autismo, Paris, 10 de março de 2018.
15- Lacan J., « Fonction et
champ de la parole en psychanalyse » (1953), Écrits, Paris, Seuil, coll. Champ
Freudien, 1966, p. 321.
16 : Cf. Maleval J.-C., Repères pour la psychose
ordinaire, Paris, Navarin, 2019, p. 199-200.
17 : Lacan, Seminário 14, lição de 10 maio de 1967,
disponível no blog Lacan em .pdf
Tradução
para o português por Arryson Zenith Jr.
Versão original em francês disponível aqui
Fernanda Pimentel é psicanalista, professora e pesquisadora. Doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ
e investigas os temas relativos à psicanálise na atualidade e à clínica contemporânea.
e investigas os temas relativos à psicanálise na atualidade e à clínica contemporânea.