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2 de setembro de 2009

A relação entre paixão e criatividade

Essas duas forças intensas, capazes de romper as barreiras da razão, muitas vezes parecem caminhar juntas; o resultado dessa associação são obras de arte, música e literatura de inestimável valor não só para artistas e suas musas, mas para toda a humanidade

Pois toda essa beleza que te veste
Vem do meu coração que é teu espelho;
O meu vive em teu peito, e o teu
me deste.”
Soneto XXII – Shakespeare, 1609

“Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do seu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu.”
Eu te amo – Chico Buarque e Tom Jobim, 1980

Quantas poesias, contos e romances têm falado de amor e de dor ao longo dos tempos? Encontros ardentes e avassaladores e paixões impossíveis, permeiam o imaginário de homens e mulheres e afetam pessoas de diferentes classes sociais, em variados contextos históricos e culturais. Parece haver um paradoxo entre forças intensas capazes de romper as barreiras da razão para jogar no infinito um oceano desordenado de sentimentos que, ao mesmo tempo, inundam a alma de amor... e medo.

Quem nunca se viu, pelo menos uma vez, inesperadamente apaixonado? A condição pode parecer única àquele que a vive, mas as referências a esse estado aparecem de inúmeras formas, representadas por diferentes povos. Numa dimensão sociológica, podem-se discutir os limites entre movimentos históricos e culturais e/ou crenças como elementos propulsores de processos psíquicos inerentes a essa condição humana de “apaixonamento”.

Ao lembrar os referenciais existentes desde a Grécia Antiga, o sentido do amor vem associado a algo bom, belo e verdadeiro. Em seu livro Sem fraude nem favor (1998), o psicanalista Jurandir Freire Costa refere-se a O banquete, de Platão e define o texto como representante do amor/sentimento único, inconfundível, universal e intrínseco à natureza do ser humano; um impulso dirigido a um outro, homem ou mulher, do sexo oposto ou do mesmo sexo, “um composto afetivo feito de desejo”. Na narrativa sobre o tema, Platão cria um encontro entre amigos num banquete onde o anfitrião, Agaton, chama a todos para um debate. Em seu discurso, Aristófanes apresenta seu conceito de amor: “...Porventura é isso que desejais, ficardes no mesmo lugar o mais possível um para o outro, de modo que nem de noite e nem de dia vos separeis? Pois se é isso que desejais, quero fundir-vos e forjar-vos numa mesma pessoa, de modo que de dois vos torneis um só e, enquanto viverdes, como uma só pessoa, possais viver ambos em comum, e depois que morrerdes, lá no Hades, em vez de dois serem um só, mortos numa morte comum.”

A ideia de falta e busca da completude presentes neste texto, escrito nos idos de 360 a.C., remete aos princípios do amor romântico. Tristão e Isolda, lenda celta com alguns escritos que datam do século XI, assim como Romeu e Julieta, de Shakespeare (século XVI), também seriam exemplos das histórias do amor impossível e arrebatador, que para ser eterno conduz ao desespero e à morte.

Mas, de qual amor falamos? Discutir esta ideia traz controvérsias. Na visão do filósofo André Comte Sponville, apresentada em Pequeno tratado das grandes virtudes (1999), há três manifestações: Philia, Ágape e Eros. De forma sintética, podemos definir Philia como o amor associado à amizade, ao companheirismo e reciprocidade, enquanto Ágape traz a ideia de benevolência e caridade de forma humanitária e desinteressada. Por esta ótica, a paixão se instala onde surge Eros, um amor a serviço deste deus ciumento e possessivo. O tormento e o prazer vêm juntos, pois este desejo, às vezes incontrolável, brota da falta.

Na origem da palavra Pathos, no grego, contempla-se a ideia de sofrimento, paixão e catástrofe. O filósofo francês René Descartes (1596-1650) agrega um cunho singular ao conceito, articulando-o ao contato com o novo e associando-o ao padecer e ao agir. Diante da surpresa, somos impelidos a alguma reação que nos desacomoda. A vida, assim como a paixão, inevitavelmente pedem movimento e imperfeição. Se o que for passional sugere passividade, vê-se nessa manifestação amorosa o padecimento e algum tipo de subserviência a sentimentos intensos e também angustiantes. Afinal, o que seria de Tristão e Isolda se não houvesse uma espada a separá-los? Ou de Romeu e Julieta se não existisse a forte interdição entre as famílias? É fascinante observar (e sentir) no amor/Eros uma força inconfundível de prazer num encontro amoroso aparentemente único, carregado de momentos de plenitude, porém sempre acompanhados de forte angústia.

TEXTURA DA ILUSÃO
Quem é o objeto da paixão? Talvez aquele que traga a esperança do resgate de um elo perdido. A psicanalista Melanie Klein, inspirada em Freud, diz que o bebê, desde o seu nascimento, sofre uma angústia de morte diante de sensações como dor, fome e frio. Sua fragilidade física e biológica o leva ao desamparo emocional. O encontro com o prazer de ser acalentado e cuidado gera uma sensação de bem-estar vivida como plena. O mundo para um bebê seria traduzido por Klein em termos absolutos: a gratificação gera sensações prazerosas totalmente boas, assim como a frustração leva a sensações de dor, ameaça e sofrimento. “Bom e mau” representariam o maniqueísmo do universo psíquico do bebê em seus primeiros meses de vida.

A paixão faz reviver instabilidades deste vínculo frágil e primitivo de dependência e apego. O escolhido, objeto da paixão, geralmente, é alguém que representa a esperança de alcançar o objeto bom idealizado. Muitas vezes, a pessoa pela qual nos apaixonamos tem atributos sutis, capazes de ativar e trazer para o presente experiências afetivas de modelos da primeira infância. Detalhes como o tom de voz, a forma de olhar ou a textura da pele, por exemplo, podem ser mais importantes como elementos catalisadores da paixão do que outros atributos aparentemente bastante significativos. A imagem e as expectativas valem mais. Daí sua associação com a ilusão. Sensações de entorpecimento, carregadas de fantasias que parecem preencher por completo os enamorados, os levam a perder o apetite e o sono e a diminuir sua capacidade de concentração nas divagações quase surreais.

MEMÓRIA DA DOR
Diante da solidão e da incompletude inevitáveis da condição humana, surge a paixão com a fantasia e a promessa de uma vida plenamente feliz, numa tentativa emocional de retorno a algum estágio anterior que negue o desamparo, o medo e os limites impostos pela vida. O paradoxo, porém, está na força que acompanha o desejo – já presente nas palavras de Platão – de um encontro perfeito, onde duas metades se unem e se fundem – livrando-nos da dor. Mas só existe o desejo quando há a constatação da falta.

A paixão denuncia, tanto no adolescente quanto no adulto, a expectativa de uma vida sem dor, separação ou solidão. Este ideal de amor total emerge do vazio e do desamparo que ainda pulsa, grita e traz a memória de dor. Há nos primórdios do desenvolvimento uma lembrança do vazio, fruto da sempre dolorida separação mãe/bebê.

E como a vida surpreende, a depender das condições, é possível encontrar possibilidades, criar-se. Segundo o psicanalista Donald Winnicott, há um espaço potencial, uma espécie de área infinita de separação: o bebê, a criança, o jovem ou o adulto podem preenchê-lo criativamente com o brincar que, com o tempo, transforma-se na herança cultural. Pode-se pensar nas dores da separação como bases psíquicas para a expressão artística e para o trabalho criativo como meio de reparar e atribuir outro significado à dor. As telas de Frida Kahlo, por exemplo, retratam explicitamente seu sofrimento físico e suas perdas afetivas, assim como as obras de Pablo Picasso ou Camille Claudel expõem as angústias de amores difíceis.

Apaixonados incansáveis são os poetas, os pintores, os escritores, os músicos, ou mesmo os médicos, professores, psicanalistas... Em comum têm o fato de construírem um universo a partir de um mundo interior muitas vezes dolorido. De alguma forma, deve-se a eles toda a gratidão por terem a generosidade de expor ao mundo suas almas sofridas, num movimento criativo de reavaliação que acaba por tocar no âmago de cada um de nós, construir novos paradigmas, traçar sempre um novo olhar para as infinitas e, por vezes, impensáveis possibilidades.

Fonte: Mente&Cérebro