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30 de abril de 2008

Imagem

A imagem do corpo e o que fazemos com ele sempre foi uma questão para mim...
As cirugias plásticas, os corpos tatuados, perfurados e até os chamados body modifications (clique aqui para saber mais) caracterizam a época atual e evidenciam este corpo dolorosamente marcado. Mas o que estas marcas querem dizer?
Encontrei mum atigo muito legal na Revista Mente e Cérebro (jan/2008) da psicanalista Ana Costa, professora do programa de pós-graduação em psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), que fala exatamente sobre isso.

Marcas Invisíveis

O corpo humano apresenta traços que, apesar de muitas vezes incompreensíveis para a própria pessoa, atraem o olhar do outro; tatuagens e piercings expressam a ruptura com o determinismo exclusivamente biológico, assinalam limites e podem representar cicatrizes


...."Uma das primeiras coisas que fazemos, quando levantamos pela manhã, é nos olhar no espelho. Esse gesto – aparentemente universal e irrestrito – não surpreende ninguém, parece tão necessário quanto a ingestão matutina do café, ou mesmo os rituais que acompanham cada uma dessas ações. Saberemos dizer qual deles é o mais necessário: se o alimento, o olhar, ou mesmo os ritos diários? Formular essa pergunta faz parte da questão e me permite apresentar uma definição do que é necessidade para os humanos. Ou seja, olhar-se no espelho pode ser tão necessário quanto alimentar-se. Mais ainda: o alimento talvez nem sequer pareça atraente se não for acompanhado da mediação do olhar, já que essa forma de sustentação, impressa nas relações primárias, nunca nos abandona.
....Temos encontrado muitas análises de nosso laço social que se pautam pela crítica à sustentação em imagens, como se isso resultasse tão-somente de narcisismo exacerbado. Por vezes é atribuída a essa “inclinação narcisista” a busca por marcar o corpo com tatuagens, piercings etc. Tal análise precisa ser feita com cautela, porque de tão geral acaba perdendo seu fundamento. Se o uso das marcas corporais tivesse como explicação algo inerente exclusivamente a nossa sociedade, como entender seu uso tão milenar e abrangente?
....São curiosas as maneiras como nos representamos, em diferentes lugares e relações. Aparentemente, a casa, ou mesmo a vestimenta, traça nosso território. No entanto, não somente nesses elementos fora de nosso corpo esses recursos são usados. A pele – e muitas vezes o interior do corpo – serve como campo de expressão. Pode parecer surpreendente, mas isso sempre aconteceu, nas diferentes sociedades e em todos os tempos. De certa forma as marcas corporais expressam nossa ruptura com a natureza: nossa separação de um determinismo exclusivamente biológico. Elas traçam cicatrizes, que permanecem mais ou menos invisíveis, marcando nosso destino de seres errantes, eternamente desconfortáveis em nosso corpo, não pertencentes nem bem à natureza, nem bem à cultura.


....As marcas corporais são formas de produzir zonas e recortes que representam, ao mesmo tempo, limites e traçados. Esse funcionamento testemunha a necessidade constante de reconstituição de nossos orifícios. Estes são como bordas, que compõem a erotização resultante do funcionamento de nossas pulsões. São os limites que constituem a relação do corpo com o ambiente, com o outro e com a realidade, formando passagens interior/exterior, tanto separando como confundindo nossos limites ou permitindo ao mesmo tempo a reunião– ou comunhão – com o outro. Nosso erotismo se apóia nessa ambigüidade constante de fusão/distanciamento, por meio do exercício de nossos orifícios: boca, ânus, olhos, ouvidos...

....Apesar de já nascermos com essas bordas, sua atividade não se dá de forma natural: é impossível separarmos o que alimenta nosso organismo daquilo que alimenta, por exemplo, nosso gosto estético. A assimilação da comida também depende do que vemos. Por essa razão precisamos constantemente recortar nosso olhar, produzindo pontos de captura que pacifiquem nossa voracidade escópica.
....Assim, nossas bordas corporais não funcionam de forma natural – precisam de constantes recortes. Essa necessidade não diz respeito a um mau desempenho, mas responde à nossa condição de desnaturação, de perda de um funcionamento por ciclos biológicos, como acontece na Natureza. Nos “momentos de passagem”, situações de mudanças importantes na vida – na adolescência, por exemplo – essa necessidade torna-se maior, na medida em que há perda dos referentes de suporte corporal construídos desde a infância. Essa reconstituição das bordas corporais é o que dá suporte à circulação social do nosso corpo, para nos sentirmos “em um lugar”, representados e amparados.
....Cada sociedade constrói seus rituais culturais. Essas expressões se constituem como fundamentos da própria sobrevivência ou como “formas amenas” de expressão. Foi assim com o uso do brinco de orelha pelas mulheres, por exemplo. Até há bem pouco tempo, ninguém questionava o hábito de furar a orelha da menina recém-nascida, ainda no berçário do hospital. Com a aceitação desse gesto a sociedade reconhecia uma identidade sexual, deslocando o “olhar dos genitais”. Hoje, com a grande disseminação de piercings, o hábito se descola de um uso exclusivo.



....Com essas considerações é possível nos aproximarmos da tentativa de entender o lugar das intervenções no corpo em nossa sociedade. Podemos pensar que tatuagens e piercings visam tanto a inclusão em “tribos” urbanas, quanto a iniciativa individual de mudar de “estado”, como transposição de tristeza de amores perdidos e lugares desfeitos ou incorporação de coragem para mudar. Encontramos aqui a ocidentalização de práticas ancestrais, que tomam esse aspecto de desgarramento, tão afeito à convivência solitária das metrópoles.
....Num primeiro momento, quando deparamos com a enorme disseminação desses usos, pode parecer que se trata de algo repentino e estranho. Mas na verdade essas práticas são usadas desde os primórdios da humanidade, testemunhadas por diferentes descobertas arqueológicas. Se não podemos dar um significado único a esses usos – já que parecem ser adereços necessários ao corpo – cabe a indagação da peculiaridade de sua expansão em nosso contexto. No Ocidente, as marcações estéticas do corpo foram banidas pela religião judaico-cristã. É por essa razão que ficamos com a idéia de que seu uso era feito somente pelos considerados marginais de um tempo atrás, ou por grupos específicos, como os marinheiros. A que, então, podemos atribuir sua recente disseminação, em todos os grupos sociais?
....Na época em que a tatuagem estava banida do mundo ocidental, os marinheiros preservaram sua prática. Pensando em sua função para essas pessoas, vemos o quanto pode funcionar como busca de um lugar. O marinheiro torna-se um errante, sem fronteiras e territórios na vastidão do mar. A tatuagem pode funcionar nesse caso como possibilidade de recortar essa vastidão, de produzir uma contenção.
....Quando a tatuagem é feita por adolescentes, aparentemente designa um suporte para a circulação social do corpo. A produção dessas marcas tem a ver com a reconstituição de um circuito da pulsão, faz com que o corpo seja libidinizado, mas também, fundamentalmente, representado para o outro, principalmente na captura do olhar. A libidinização e o suporte representacional permitem dois movimentos: o de pertença a um grupo e o de expressão de um erotismo.
....No que diz respeito ao registro da pulsão é importante lembrar passagens do trabalho de Jacques Lacan. Num texto de 1966, o autor constrói uma metáfora da pulsão como um escravo, do tempo antigo, que leva uma mensagem que foi tatuada em seu couro cabeludo enquanto dormia – sem que ele soubesse. O texto, desconhecido por ele, é usado para condená-lo à morte, quando o homem chega ao seu destino. Com essa metáfora, Lacan indica um elo da pulsão com a tatuagem: nosso corpo é marcado por traços – invisíveis e incompreensíveis, apesar de se expressarem materialmente – que buscam algum destino social. Esse “endereço” se constitui tanto nos amores privados quanto nas situações que envolvem reconhecimento por parte do grupo.
....A necessidade de repetir a produção de marcas corporais se dá porque não existe uma construção de representação definitiva para o corpo humano. Por essa razão, estamos sempre fazendo passagens, traduções, interpretações. Temos sempre de inventar possibilidades de inclusão. A produção de marcas contém um elemento de erogenização: produzir prazer ao se oferecer para o olhar do outro. Mas também pode trazer um elemento de insuficiência e se tornar compulsão, levando à necessidade de repetição incessante.
....No que diz respeito ao olhar, é importante pensar na diferença entre a tatuagem e a maquiagem. A maquiagem também atrai o olhar do outro para o corpo. Mas isso não permite a suposição de algo definitivo, tem mais a ver com a possibilidade de brincar com o engano. Já a tatuagem traz em si a idéia da marca definitiva e, só de forma secundária, “convida” ao jogo do engano. (...)
....Do exposto, é possível destacar os principais elementos que situam as marcas no corpo como veículos de circulação social. Eles dizem respeito à necessidade de algo que atualize – colocando em ato – uma impressão primária. Essa impressão resulta da entrada na linguagem, quando o bebê, que ainda não fala, é introduzido num mundo discursivo que o invade, atravessando seu corpo, muito antes que ele tenha condições de se apropriar da fala. Essa impressão é composta por elementos heterogêneos e pode revelar tanto o registro corporal de um símbolo (as primeiras impressões simbólicas, por exemplo); quanto expressar a experiência corporal de prazer/desprazer, necessária à incorporação das representações.
....Se na passagem pela adolescência essa forma de marcar o corpo pode ser suporte de uma singularidade, também temos experiências sociais nas quais as marcas imprimem anonimato. Como não lembrar das tatuagens de números realizadas nos presos dos campos de concentração, durante a Segunda Guerra Mundial? O paradoxal é que um ato que costumeiramente provoca erotismo e pré-condição de singularidade tenha sido usado para produzir efeitos opostos. O que em outro contexto seria usado para constituir um corpo erotizado, que circula no coletivo, na organização nazista se caracterizou como condição necessária de deserotização, uma maneira de tirar a forma do corpo. O número tatuado privava o sujeito do suporte de um traço simbólico, fixando-o como dejeto não representável pelo circuito civilizador.

FORMAS UNIVERSAIS
....De alguma maneira, a entrada na cultura pela aquisição da linguagem, mutila, e ao mutilar produz detritos – restos impossíveis de representar. Com esses restos corporais e psíquicos se produz arte e literatura, que é uma forma de reinscrevê-los na cultura. Muitas vezes fazemos o inverso: interpretamos como detrito o nosso aparente sucesso, o nosso produto maior. Dentro disso, dor e mutilação – ou o retorno de um masoquismo primário, como propõe Freud – ocupam lugares variados na forma como cada um se organiza.
....Todas as práticas e costumes, mesmo quando mais universais, precisam ser contextualizados. Não se podem desconsiderardois elementos de grande relevância social entre nós: o domínio que a ciência – particularmente a medicina e os laboratórios – têm no nosso cotidiano mais banal e o lugar que damos ao olhar do outro. Podemos também ir mais longe, lembrando as práticas de intervenção no corpo realizadas pela medicina, que molda nossa “biologia” a um funcionamento farmacológico. Isso sem levar em conta os atos cirúrgicos, que nos parecem tão “naturais”, mesmo quando ligados à estética. Inegavelmente, as plásticas transformam até mesmo nossa expectativa de vida.
....A arte sempre expressou, de alguma maneira, a relação entre as formas sociais de uma cultura. Por formas sociais entendo aquilo que, no laço social, interpela tanto a harmonia quanto sua ruptura e o caos, presentes tanto na música, como na literatura e nas artes plásticas. Como reles mortais – ou seja, fazendo parte daqueles que não tomam a seu encargo essa interpelação – colocamo-nos como espectadores, como seres supostamente passivos em todo o processo.

FASCÍNIO DO OLHAR
....O artista é aquele que fica na fronteira entre o questionamento das formas e o espectador, precisando lutar contra a intensidade de forças que o puxam para cada um desses pólos. Parece-me que muito da arte contemporânea põe a nu essa fronteira entre espetáculo e espectador, desfazendo-a e refazendo-a constantemente. Ela lida com o fascínio, elemento sempre presente, ao longo de séculos, na captura humana, na fronteira entre o caçador e a presa.
....O fascínio traz uma particularidade em relação ao olhar. É a maneira que cada um tem de confundir-se, numa indiferenciação entre si e o outro. Contrariamente ao que se poderia imaginar, esse processo não se prende exclusivamente à boa forma – à forma perfeita. Sabemos que o horror também produz fascínio. Temos, então, elementos contraditórios: por um lado o prazer de estar compondo uma cena – como se fosse do lado “de fora”, como voyeur – mas com a sensação e a percepção do lado “de dentro” da cena. Fascínio é o elemento que faz estar, ao mesmo tempo, dentro e fora.
....Alguns trabalhos da body art, ou da body modification, ou da arte carnal interpelam a ruptura dessas fronteiras. É o caso da artista Saint Orlan, que faz do momento das intervenções cirúrgicas em seu corpo uma espécie de instalação. Ela produz uma ruptura crítica de muitas de nossas referências, presentes no nosso tradicional conceito de beleza, eternizado em obras clássicas ou, incessantemente, buscado nas cirurgias plásticas. Quando faz com que algumas partes de seu rosto sejam moldadas de acordo com obras veneradas (como a testa da Mona Lisa), ela transpõe num só gesto espaços aparentemente intransponíveis, como o que consideramos sublime e profano. Interpela essa febre contemporânea de busca de uma imagem acabada que reúne técnica e estética.



.................................Orlan - Artista plástica

....O pseudônimo que adota, Saint Orlan, reúne uma representação de santidade com a designação de uma fibra sintética (orlan). Sua obra revela que nossos limites mais seguros – dentro/ fora, sujeito/objeto, corpo/técnica, corpo/natureza – o tempo inteiro se desfazem, precisando constantemente de reconstruções. São sempre dor e olhar – ou seja, o que produz fascínio – que estão em questão nessas rupturas. Enquanto estamos fascinados, nos mantemos também submetidos. Assim, a arte que nos provoca estranhamento também diz um pouco sobre uma quebra da imagem que esperamos retornar do espelho."

.Confira todo o artigo aqui.

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29 de abril de 2008

Allors... Charles Melman.

...Seminário O que é que ele quer, o psicanalista, com Charles Melman no Hotel Glória - Rio de janeiro.

.Antônio Carlos Rocha, Charles Melman e a tradutora, no Hotel Glória, 26/04/2008

Neste último final de semana aconteceu o Seminário de Charles Melman: E o que é que ele quer, o psicanalista, oferecido pelo Tempo Freudiano no Hotel Glória, Rio de Janeiro. Tive a oportunidade de participar e só tenho elogios em relação ao evento, muito bem organizado.

Melman, psicanalista francês que trabalhou diretamente com Lacan, falou sobre a ética na psicanálise de uma maneira muito atual e clara, sempre relacionando com questões em pauta na contemporaneidade.

Não se pode deixar de comentar o excelente trabalho realizado pelos tradutores e do sempre presente Antônio Carlos Rocha - membro fundador do Tempo Freudiano.

Destaquei algumas partes de minhas anotações feitas a partir da tradução das palavras de Melman, durante os dois dias de seminário...
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Sobre a ética
"Qual a boa relação que temos que ter em relação ao pensamento dos nossos mestres? Devemos introduzir algo novo, sermos livres, obedecer nossos pensamentos? A relação de cada um com os textos fundadores é uma questão atravessada por heresias. Essas heresia podem custar caro, caro para o autor e para quem as segue.
Hoje ainda não respondemos à estas questões sobre a relação com o ensino dos mestres..."
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"Hoje não se sabe mais o que é normal e o que é anormal porque todas as éticas são aceitas. Quando um comportamento se insere numa ética ele pode ser considerado normal"
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"A ética da psicanálise é não ceder frente ao seu desejo. Porque o comportamento habitual não é não querer se liberar da castração, mas acumular proteções para não se aproximar demais do objeto de desejo. A sintomatologia atual de estar perto demais de seu desejo."
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..Antônio Carlos Rocha e Charles Melman, no Hotel Glória, 26/04/2008
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Sobre a oralidade
"As necessidades do corpo estão atreladas ao desejo. A satisfação está corrompida pelo desejo e a satisfação oral transborda pelo sempre querer mais. O orgânico não é mais suficiente. Assim, surgem sintomatologias da satisfação das necessidades. No caso da bulimia e anorexia, a satisfação de uma necessidade não encontra a resposta certa que asseguraria sua plenitude. na bulimia pode-se identificar o objeto visado, a geladeira. Na anorexia o objeto concedido é o nada. Lacan diz que 'o anoréxico quer comer o nada'. O nada é aquilo que é fundador e organizador do desejo. Dessa forma, só se pode responder com a falta de resposta. Não há resposta para aquilo que se deseja a não ser com o nada."
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Sobre a função paterna
"O significante pai não é responsável pela falta de gozo que nós encontramos. Ao contrário. Ele nos dá o exemplo para que nós mesmos sejamos fecundos e formemos os ciclos das nossas relações."

..Antônio Carlos Rocha e Charles Melman no Hotel Glória, 26/04/2008
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Sobre o inconsciente
"O inconsciente é estruturado como uma linguagem porque é constituído por uma cadeia contínua. Letras pequenas ligadas umas às outras. Cada uma delas é diferente de todas as outras e trazem sentidos e valores bem diferentes também..."
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....................................................................Fernanda Pimentel

Filosofia e Psicanálise

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O Departamento de Filosofia do CCE (Coordenação Central de Extensão) da PUC - Rio oferece o curso Psicanálise e Desconstrução: Derrida leitor de Freud.
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Confira a programação aqui.
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Informações:

CCE-PUC Rio

Tel: 0800 970 956

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28 de abril de 2008

A Dor No Mundo

O Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos organiza sua Sétima Jornada: A Dor No Mundo
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"A dor, física ou psíquica, sempre emerge como um limite; seja o limite impreciso entre o corpo e a psique, seja entre o eu e o outro, seja entre o apaziguamento e o desamparo. A dor, em si, pode não ter valor ou significado, pode simplesmente se apresentar, súbita ou imprevisível. Podemos tomar a dor como um sintoma, como a manifestação exterior e sensível de algo que nos escapa. Podemos perceber a dor como objeto ou alvo de prazer, como possibilidade última de encontro / confronto com o outro. Podemos pensar a dor como uma experiência de excesso que pode margear a morte e a loucura ou comprovar a vida e nosso poder de nos recuperarmos. Refletir sobre a dor, as condições de sua produção, seus desdobramentos e impactos na vida e na experiência psicanalítica, foi o desafio que propusemos para nossa Jornada de 2008" (EBEP)
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Informações:
Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos
Rua Barão de Ipanema nº 56, sala 1001 - Copacabana - Rio de Janeiro
Tel: (21) 2257-9454
Tel/Fax: (21) 2548-9847
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Família

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Ontem o jornal O Estado de S. Paulo publicou um artigo da psicanalista Maria Rita Kehl, que fala sobre pais e crianças, apontando questões muito importantes.
Diante da violência que parou o país nos últimos dias não tem como não pensar nessas relações e nas consequências dos desdobramentos da família contemporânea, nos pais sem autoridade e nas crianças sem limites.
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Filhos não têm como se defender da displicência, dos excessos ou da irresponsabilidade dos pais
Maria Rita Kehl*
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No momento em que escrevo este artigo ainda não há conclusões definitivas sobre o assassinato da menina Isabella. Mas desde o primeiro dia a sociedade já havia decidido condenar o casal Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá. Aos poucos a indignação popular aumentou, orquestrada inescrupulosamente pelos telejornais em disputa por audiência, até se transformar em pura sanha linchadora.
Não me disponho a tentar explicar o que teria levado um pai e uma madrasta a assassinar, ainda que acidentalmente, uma criança, e depois livrar-se do corpo de maneira tão brutal. Fora da clínica e da transferência, o psicanalista é tão leigo quanto qualquer pessoa ante os sintomas e surtos alheios. O que a experiência clínica oferece são algumas chaves para a compreensão das condições subjetivas presentes em uma sociedade, que favorecem certas manifestações aberrantes, violentas e aparentemente incompreensíveis.
Como entender essa torcida em massa para que o pai e a madrasta de Isabella sejam os culpados? Em primeiro lugar, penso que diante dos crimes domésticos as pessoas se sentem menos inseguras do que diante do fantasma da violência social generalizada que assola o país. “Se o crime foi cometido em família, isso é lá problema deles”, pensamos, na esperança de que em nossa família essas coisas não aconteçam. Em segundo lugar, a família de Isabella pertence à mesma classe média dos consumidores de jornais e revistas, público alvo dos anunciantes da televisão. No dia 20 de abril, um menino negro de 11 anos foi morto com um tiro na cabeça na favela da Vila União, em São Paulo. Até agora, não vi a imprensa acompanhar a apuração do assassinato do pequeno Jefferson Alves, considerado desinteressante pela sociedade.
É evidente que a figura mitológica da madrasta excita a imaginação popular. A personagem da madrasta má, nas histórias infantis, encobre o lado sombrio da mãe. É ela quem encarna o egoísmo, a rivalidade, a crueldade ou o descaso para com o sofrimento das crianças, de modo a manter a idealização da maternidade biológica e conservar a santa mãe em seu pedestal. No entanto, qualquer psicanalista sabe o quanto as mães são capazes de abusar de seus filhos, rivalizar com suas filhas, violentar a dignidade deles, desrespeitar seus direitos.
O colunista da Folha de S. Paulo Contardo Calligaris fez uma análise interessante sobre o ciúme que algumas madrastas sentem de suas enteadas, disputando com elas o lugar de filhas de seus companheiros. Vale lembrar que a presença do (a) enteado (a) também pode reavivar os ciúmes da madrasta em relação à mulher que a precedeu. Mas nem todas as madrastas odeiam seus enteados. Conheço casos, em meu próprio consultório, em que a presença e a intervenção de madrastas generosas e sensíveis praticamente salvou a infância de filhos maltratados ou abandonados por mães imaturas, que se vingavam do ex-marido maltratando os filhos dele. Evito embarcar em uma defesa conservadora da família “de sangue” em detrimento de outras configurações familiares.
Os crimes domésticos colocam em evidência o desamparo infantil. As crianças não têm como se defender da displicência e da irresponsabilidade dos pais, nem dos excessos de amor, de sensualidade, de ira, de gozo: pais, mães, padrastos, madrastas, avôs e avós abusam de várias maneiras, “por amor”, de crianças indefesas. Neste sentido, para a criança, a família não é um ambiente tão seguro quanto se imagina. Pesquisa da Unicef sobre a violência doméstica no Brasil revela que 44,3% dos homicídios de crianças ocorrem dentro de casa, sendo 34,4% deles cometidos por parentes das vítimas. Sem contar os casos de abuso sexual, que ocupam o primeiro lugar na lista das formas de violência familiar.
É evidente que existem famílias tranqüilas, pais e mães equilibrados e protetores. Mas a família moderna, fechada sobre si mesma, toda voltada para a produção de bem-estar, fundada nas formas mais egoístas de amor, é um canteiro propício, no mínimo, à violência psicológica. Os filhos frustram as expectativas dos pais, o amor vira moeda de barganha e chantagem mútua, a esperança de entendimento de parte a parte é freqüentemente obstruída pela culpa que cada um sente por não amar o outro tanto quanto devia.
Apesar disso, não existe nenhuma outra instituição que a substitua. Desejamos formar família, viver em família, criar condições de convívio protetoras, agradáveis. Mas é bom lembrar que se a família, em seus moldes tradicionais, fosse um mar de rosas, Freud não teria criado a psicanálise.
Se a criança é desamparada frente aos que cuidam dela, os adultos de hoje também se sentem desamparados no exercício de suas funções. A vida contemporânea está tão privatizada, tão indiferente a valores ligados ao bem comum, a sociedade tornou-se tão narcisista e infantilizada, que o bem-estar das crianças se tornou praticamente o único ideal dos adultos. Ser “bom pai” tornou-se a razão de viver de adultos que perderam as referências para saber tanto o que é ser “bom” quanto o que é ser “pai” (ou “mãe”). Se os filhos se tornam o único ideal de seus pais, estes não têm mais nada a lhes transmitir a não ser “seja feliz” - isto, numa sociedade em que felicidade se mede pela capacidade de consumo e diversão.
O desamparo do adulto diante das exigências dos filhos, a quem eles próprios prometeram dar “tudo de bom e de melhor”, tem resultados patéticos ou, no pior dos casos, trágicos. Algumas crianças, hiperestimuladas e excitadas, ficam cada vez mais insatisfeitas e agressivas enquanto os pais, incapazes de estabelecer limites para a farra que eles mesmos prometeram, vivem exasperados, culpados, impotentes - e às vezes, tão fora de controle quanto os pequenos. Um adulto que se vê incapaz de educar uma criança é capaz de confundir autoridade com violência, poder simbólico com coerção física.
Vez por outra, um desses pais incapazes de colocar limites em seus filhos também corre o risco de perder os próprios limites.
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*Maria Rita Kehl, psicanalista, escreveu Sobre Ética e Psicanálise (Companhia das Letras) e Ressentimento (Casa do Psicólogo), entre outros