.
.

8 de janeiro de 2009

Sobre depressão

Mais um texto da Maria Rita Kehl que eu gostei muito...


O tempo e a depressão
O que a teoria freudiana sobre a melancolia pode ensinar ao psicanalista sobre a clínica das depressões? Muito pouco, quase nada. No entanto, nos debates de que tenho participado recentemente em torno desse tema, assim como em textos de diversos autores sobre o mesmo assunto, não é incomum encontrar certa confusão entre as características dos quadros depressivos e melancólicos, que chegam a ser abordados, indiscriminadamente, como se fossem a mesma coisa. Não são. As características “depressivas” do melancólico – negativismo, falta de ânimo, falta de auto-estima, fantasias auto-destrutivas, distúrbios somáticos e outras tantas manifestações de dor psíquica – podem se parecer, empiricamente, com as dos depressivos. Mas assim como algumas crises histéricas e algumas construções de pensamento delirantes entre os obsessivos podem ser confundidas com sintomas psicóticos, a semelhança fenomenológica entre a tristeza e o abatimento dos melancólicos e dos depressivos não são manifestações da mesma estrutura psíquica.
Tal confusão talvez se deva ao fato de Freud, cujo texto “Luto e Melancolia” (1915) trouxe uma contribuição decisiva e inovadora para a compreensão da clínica da melancolia, não ter dedicado nenhum texto ao tema das depressões. Se as noções de depressão, estados depressivos, psicose maníaco-depressiva, ainda não terminaram de ser resgatadas do campo exclusivo da psiquiatria para o da clínica psicanalítica, o termo “melancolia” aportou em terras freudianas depois de percorrer a cultura ocidental, desde Aristóteles, carregada de signos de sensibilidade, originalidade, nobreza de espírito e outras qualidades que caracterizam o gênio criador. Tais qualidades da alma humana não se encontram entre as observações de Freud a respeito dos sintomas melancólicos. A teoria freudiana da melancolia promoveu duas rupturas simultâneas: no plano clínico, seu texto de 1915 trouxe a melancolia do campo da medicina psiquiátrica – em que era chamada de “psicose maníaco-depressiva” – para o da clínica psicanalítica. No outro plano, o da história das idéias, o texto de Freud acabou de afastar definitivamente a melancolia da longa tradição pré-moderna das representações, predominantemente sublimes, atribuídas aos homens de caráter melancólico, desde a antiguidade grega.
A teoria freudiana sobre a melancolia ocupou um lugar tão importante no pensamento clínico do início do século XX que o conceito de depressão foi praticamente englobado pelo de melancolia, quando não confundido com ela. Nos últimos trinta anos, no entanto, o crescimento a níveis epidêmicos dos diagnósticos de depressão impõe aos psicanalistas uma separação teórica mais rigorosa entre esses dois campos clínicos. É preciso empreender novos esforços conceituais para pensar a especificidade da depressão de modo a impedir que esta forma de mal estar, agravada pelas condições da vida contemporânea, seja inteiramente apropriada pela medicina e pela psicofarmacologia. A teoria da melancolia é insuficiente para subsidiar a clínica das depressões, esta forma de mal estar que a indústria farmacêutica vem tentando circunscrever exclusivamente sob seus domínios, como se o deprimido sofresse apenas desarranjos e déficits químicos em um corpo sem sujeito.
Do ponto de vista da psicanálise, a depressão resulta do empobrecimento da vida psíquica, sobretudo no que se refere ao enfrentamento de conflitos. O abuso de soluções medicamentosas acaba por ser cúmplice deste encolhimento subjetivo. Daí que o avanço mercadológico dos antidepressivos não corresponda a uma diminuição dos casos de depressão. Bem ao contrário: a supressão química do sujeito do inconsciente só faz aumentar o mal estar. A introspecção, a tristeza, o recolhimento, a contemplação – a vida do espírito, enfim – são desvios que atrapalham o rendimento de uma vida cuja qualidade se mede por critérios de eficiência, competência e disponibilidade para o consumo e a diversão.
.
.
O tempo do sujeito e o tempo do Outro
Desde 2005 venho investigando a questão das depressões do ponto de vista da relação dos sujeitos com a dimensão do tempo, ao qual ele é introduzido através das práticas do Outro materno. Meu interesse é investigar a relação dos depressivos com a delicada temporalidade psíquica, em contraste com a velocidade da vida social. Se a psiquiatria explica a lentidão depressiva como resultante de um déficit nos neurotransmissores, do ponto de vista da psicanálise ela resulta da posição do sujeito diante do Outro.
Na origem da posição depressiva, encontramos um sujeito atropelado pela urgência do Outro. O psiquismo, em Freud, é uma instância temporal que se inaugura a partir da espera de satisfação. O tempo que se inaugura com a espera de satisfação da pulsão é a primeira dimensão da falta que se apresenta ao infans, a partir da qual ele haverá de dar início ao trabalho de representação do objeto faltante. O psiquismo nada mais é do que uma rede de representações tecida sobre um fundo vazio. A pressa do Outro materno, o excesso de solicitude e/ou de ansiedade de certas mães em atender rapidamente às menores manifestações de insatisfação do infans, intercepta a temporalidade psíquica, favorecendo a posição depressiva do sujeito no fantasma.
A sociedade contemporânea vem produzindo – e sofrendo com isso – uma invasão de formas imaginárias deste Outro apressado, que não admite nenhum tempo ocioso que não seja rapidamente preenchido por ações que visam satisfação imediata. Em função disso, o recuo do depressivo ocupa o lugar do sintoma social. Ao deprimir-se, ele tenta fugir do excesso de ofertas – que do ponto de vista do sujeito em formação, são entendidas como demandas – do Outro, para se refugiar debaixo das cobertas. Este é lugar que caracteriza o recuo do depressivo em relação à vida. Segundo alguns autores , o ninho que o depressivo faz para si mesmo debaixo das cobertas, onde o tempo não passa, funciona de maneira paradoxal. “Debaixo das cobertas” o depressivo encontra tanto um esconderijo quanto um lugar de gozo, de onde tenta, mas não consegue, se proteger contra a ameaça de ser engolido pelo Outro materno. Quanto mais o depressivo recua, mais se coloca à mercê da demanda da “bocarra de jacaré”, na dramática expressão utilizada por Lacan para se referir à mãe do infans.
O tempo, como bem escreve François Julien, é “a última figura da transcendência no seio do pensamento ocidental ”. Esta última possibilidade de pensar e também de experimentar a transcendência, através da multiplicidade dos fenômenos temporais, vem se reduzindo drasticamente. O homem contemporâneo vive tão completamente imerso na temporalidade urgente dos relógios de máxima precisão, no tempo contado em décimos de segundo, que já não é possível conceber outra forma de estar no mundo que não sejam as da velocidade e da pressa.
“Aproveitar bem o tempo” é um dos imperativos da vida contemporânea. Na prática, tal mandato corresponde a uma série de possibilidades que de fato se abriram para o desfrute da vida privada, nas sociedades liberais. O indivíduo, sob o capitalismo liberal, dispõe de uma enorme variedade de escolhas quanto ao desfrute de seu tempo livre, não mais regulado pelos ritos e proibições da vida religiosa, nem limitado pelas horas de luz do dia ou pelo maior ou menor rigor das estações. Por outro lado a marcação que caracteriza o tempo do trabalho (de forma desproporcional à oferta efetiva de oportunidades de trabalho) invade cada vez mais a experiência subjetiva da temporalidade, mesmo nas horas ditas de lazer. Não me refiro ao ócio, esta forma de passar o tempo tão desmoralizada em nossos dias, mas às atividades de lazer, marcadas pela compulsão incansável de produzir resultados, comprovações, efeitos de diversão, que torna a experiência do tempo de lazer tão cansativa e vazia quanto a do tempo da produção. Nada causa tanto escândalo, em nosso tempo, quanto o tempo vazio. É preciso “aproveitar” o tempo, fazer render a vida, sem preguiça e sem descanso. A este imperativo, como veremos, o depressivo resiste com sua lentidão, seu mergulho angustiado e angustiante em um tempo estagnado – um “tempo que não passa ”.
Se existe uma relação entre o estado subjetivo que os antigos chamavam de melancolia e a percepção do tempo – chamo a atenção para a freqüência com que encontramos ampulhetas entre os instrumentos que cercam as figuras dos melancólicos, a partir do Renascimento – esta relação se expressa de maneira dramática na lentidão dos depressivos contemporâneos, incapazes de atender à urgência das demandas do Outro. Tal lentidão, que se apresenta tanto aos olhos do sujeito deprimido quanto aos dos psiquiatras como mais uma entre as muitas disfunções características da depressão, talvez tenha algo a ensinar ao psicanalista. É razoável supor que a temporalidade moderna sacrifica o sujeito a seus imperativos; vale perguntar, então, de que ordem é a recusa que a depressão impõe a alguns sujeitos desviantes dessa norma contemporânea que insiste em anunciar: o futuro já começou .
Não nos precipitemos. Ainda que, de acordo com Freud, a aniquilação seja o objeto definitivo do gozo da pulsão de morte, não devemos nos deixar fascinar, na clínica, pela negatividade dos depressivos. Se com sua recusa eles se aproximam perigosamente da verdade sobre o vazio Real que funda o psiquismo, o apego à negação dos depressivos deve ser entendido principalmente como o avesso de uma urgência. Sua lentidão encobre a inapetência característica daqueles que tiveram sua demanda antecipada pelo Outro e se vêem incapacitados para preencher este inquietante rodeio entre o nascimento e a morte, a que chamamos vida. Ao contrário do melancólico, abatido pela sombra de um objeto que não compareceu a tempo, os depressivos, preenchidos pela solicitude do Outro, foram poupados de inventar seus próprios jogos de fort-da – daí decorre o sentimento de vazio interior de que se queixam em análise.
Instalados em um tempo que lhes parece vazio, sob sua aparente imobilidade, os depressivos estão mais próximos de encontrar a temporalidade distendida da contemplação e do devaneio do que os neuróticos mais bem adaptados às condições que a vida social lhes impõe. O tempo vazio do depressivo recusa a urgência da vida contemporânea e remete a um outro modo de viver o tempo, que a modernidade recalcou ou pelo menos, reprimiu.
O psicanalista que escuta um depressivo deve ficar atento para a dimensão deste saber sobre o tempo que se encontra encoberto pela sua imobilidade angustiada. A indústria farmacêutica se empenha em oferecer ao depressivo substâncias capazes de levantar seu ânimo, colocá-lo em movimento, adaptá-lo ao tempo do Outro. A psicanálise, em contrapartida, lhe oferece a perspectiva de um percurso sem pressa, a partir do qual ele possa criar, ou redescobrir, suas próprias modalidades rítmicas de jogar com a falta, suas próprias brincadeiras de fort-da.

Veja o site da autora.
.

Seminário: Transtornos Alimentares

.

Participe!

● Objetivo: Oferecer uma discussão acerca dos Transtornos Alimentares, com o objetivo de atualizar os conhecimentos nesta área.

● Público alvo: estudantes, profissionais da área da saúde e leigos que se interessam pelos temas


.

6 de janeiro de 2009

V. Woolf

,
"Meu próprio cérebro é para mim a mais inexplicável das máquinas - sempre zunindo, sussurando, voando, rugindo, mergulhando, e depois se enterrando na lama. E por quê? Para que esta paixão?"

..........................Virginia Woolf
.

5 de janeiro de 2009

Histeria e feminilidade


Discute-se a feminilidade nos dias de hoje a partir da abertura discursiva introduzida pelos estudos sobre a histeria, de Freud. A própria definição da clínica psicanalítica é remetida às modalidades de defesa contra a posição feminina e ao que ela veicula de diferença radical, aqui associada à castração. Mediante apresentação de uma "nota" clínica, aborda-se a feminilidade frente à inscrição e à relação dos sexos, evidenciando-se a função simbólica de uma mãe. A posição feminina na transmissão é tratada pelo viés da nomeação. A pesquisa clínica sobre a histeria indica que a posição feminina submetida à castração simbólica revela-se condição da flexão do nome e produção de diferença.

Os asuntos acerca da feminilidade e histeria sempre me interessaram, desde o inicio do meu percurso na psicanalise. Recebi recentemente este texto, do psicanalista frances André Michels, publicado na Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica (v 4 n.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2001) que aborda pontos importantes quando pensamos na relacao entre a mulher e a histeria.

PALAVRA DE MULHER
Quem negaria, hoje em dia, que as relações entre homens e mulheres se transformaram profundamente há pelo menos um século? Quanto a determinar as razões e as causas, as análises divergem, algumas privilegiando os fatores econômico e social, outras considerando, antes, as implicações religiosas e, outras ainda se referindo a uma mudança da discursividade cujas raízes seriam bem mais antigas.

As lutas que desde meados do século passado tiveram por objeto a "causa das mulheres" visavam, a princípio, sua integração profissional, o direito de voto, a igualdade das chances, etc. Tais reivindicações só puderam vir à baila graças a uma transformação política ímpar, sendo a instauração de um regime democrático nos Estados Unidos da América e a Revolução Francesa apenas seus sinais anunciadores. Do ponto de vista da democracia, o Novo Mundo é, de fato, o mais antigo. Se os Estados Unidos de hoje ocupam o lugar que é o seu, é graças a suas instituições e ao funcionamento destas, tanto quanto ou até mesmo mais do que devido a seu peso econômico e militar. Se eles por acaso abusassem demais disso, como sempre tendem a fazer os poderosos do mundo, seria o prelúdio de seu declínio, como já ocorreu tantas vezes na história da humanidade. É surpreendente que seja nesse país que as mulheres tenham pela primeira vez adquirido o direito ao voto, em 1869, em um estado do Far West, o Wyoming, a leste do Grande Lago Salgado (é verdade que esse estado só se juntou à União em 1890). Também nesse país, departamentos de Women Studies foram organizados e desenvolvidos com resultados por vezes surpreendentes, mas nem sempre desprovidos de ranços ideológicos.

Foi nesse contexto da democratização — cujo movimento começou há mais de dois séculos e está longe de acabar —, portanto de uma relação diferente com a lei e com a autoridade (política e religiosa), que um questionamento da posição tradicional da mulher em nossas sociedades ocidentais se tornou possível, sem correr grandes perigos. Estes eram bem reais, se considerarmos os procedimentos brutais e os métodos expeditivos empregados pela Inquisição na Europa, desde o século XIII. Embora ela tenha sido contrariada pouco a pouco pela centralização do poder real na França e pelo advento da Reforma em outros países, a Espanha seguiu um ritmo mais lento e continuou a enviar mulheres e homens para a fogueira, até o século das luzes; suprimida inicialmente em 1813, depois restabelecida por Ferdinando VII, a Inquisição só foi abolida definitivamente em 1834 (MORELLET, 1990; BENNASAR,1979).1 Daí para Wyoming, que passo! Isso nos dá uma pequena indicação sobre o tempo que as coisas levam para evoluir, as idéias novas para abrir caminho e os hábitos para mudar. Mesmo não sendo mais perseguidas e condenadas como bruxas, as mulheres não viam seu status mudar fundamentalmente; as instâncias política, jurídica e religiosa, as disposições mentais, sobretudo, que outrora as haviam julgado, não tinham desaparecido de um dia para o outro. Os discursos dominantes souberam se manter subjetivamente, quando não institucionalmente, por muito tempo além da extinção das últimas fogueiras da Inquisição. Considerando a história recente, não é proibido fazer a aproximação com as fogueiras ainda mais terríveis que inflamaram nosso século e incendiaram e ensangüentaram o Antigo Mundo, que vomitou sua alma nos campos de extermínio da Polônia.

Chegar até a eliminação física daquelas pessoas cujas únicas armas eram o sexo e a palavra, mostra bem a que ponto elas eram consideradas ameaçadoras para a ordem estabelecida e para os discursos em vigor. Mesmo se no Ocidente as coisas tenham evoluído muito, sobretudo desde a Segunda Guerra Mundial, o mesmo não aconteceu em outras regiões do globo. Entretanto, vale ainda perguntar por que foi preciso esperar a derrota nessa guerra para que as mulheres, enfim, obtivessem o direito de voto, na França e em outros países. O lugar dado às mulheres e ao feminino é sempre sintomático de uma estrutura social, discursiva ou subjetiva. O Ocidente, até nossos dias, não se esforçou para estudar o pensamento de uma excepcional riqueza sobre o status da mulher, elaborado na discussão dos sábios do Talmude, entre os séculos II e V de nossa era. Freud (1897/1986), por sua vez, não se enganou ao reconhecer nas bruxas de pios teólogos e de zelosos juristas o papel de ancestrais e precursoras das histéricas de doutos médicos, estabelecendo, além disso, um paralelo entre a sina reservada às mulheres e o lugar atribuído aos judeus nas sociedades ocidentais (FREUD, 1909/1941). Ele se deixou ser ensinado por essas "bocas de ouro" (LACAN, 1991) que foram suas primeiras pacientes, que não teriam tido direito à palavra em nenhum dos discursos tradicionais e que a medicina de seu tempo só estava pronta para acolher com reserva. Qualificá-las de histéricas, com efeito, não deixava de ter uma conotação pejorativa; o que obrigatoriamente não mudou desde então. Apesar de tudo, tal diagnóstico, tornado freudiano, mostra-se melhor e às vezes até mesmo ostensivo. Para alguns, ele serve para designar a melhor estrutura possível (portanto relação do sujeito com o desejo) que há, para opô-la a estruturas menos nobres; outros tornaram-se verdadeiros militantes da histeria. Ponto de partida da psicanálise, ela parece também ter se tornado seu término; assim somos levados, no rastro de Lacan, a defini-la como uma histerização do discurso.



Ao término de um século de freudismo, temos o direito de nos perguntar se o termo histeria não serviu para várias gerações de psicanalistas para abordar de viés e às vezes de través a questão tão espinhosa da feminilidade, como se ela tivesse tido que tomar esse caminho desviado para se fazer ouvir. É verdade também que ela escaparia a uma abordagem por demais direta, assim como a toda tentativa de controle, conceitual ou não, já que nesse nível tudo é metáfora. Daí também a dificuldade para o historiador em localizar seus vestígios no passado, como observam Duby e Perrot (1991): ela foi relegada às margens da história, onde só irrompia acidentalmente, e passa através das redes da historiografia clássica, ligada, antes, aos fatos de guerra, aos atos políticos ou às exações religiosas. Para saber mais sobre isso, foi preciso, em primeiro lugar, que alguém desse crédito a uma palavra de mulher, considerada pouco digna de confiança, ao contrário da do homem, supostamente direita (essa palavra, bastante evocadora, mereceria ser explorada de modo mais amplo). Ela quase não teria tido chance de se fazer ouvir por um representante de um dos grandes discursos, político ou jurídico, filosófico ou teológico, que, aparentemente, no final do século passado, tinham ainda suas amarras sólidas na sua tradição metafísica. A medicina não estava melhor preparada para receber essa palavra insensata, ainda que estivesse se transformando da cabeça aos pés, graças à cientificidade nova de seus métodos de investigação que ganhou um impulso excepcional e durável graças aos trabalhos de Helmholtz e de Dubois-Reymond, em Berlim, e de Claude Bernard, em Paris. Foi através de Brücke, representante deles em Viena, que Freud foi introduzido nesse novo paradigma científico que pouco a pouco livrou a medicina de seus pressupostos e preconceitos tradicionais para lhe conferir, em compensação, um brilho e um prestígio jamais atingidos. Não é de se surpreender que esse filho de imigrantes em busca de reconhecimento tenha desejado tornar-se, por sua vez, mestre de uma disciplina ornada com tal auréola.

A Traumdeutung nos relata algo de suas esperanças e de suas decepções, os obstáculos que encontrou seu Wunsch de tornar-se professor, as dificuldades com as quais se deparou como judeu. Esse livro inaugural da psicanálise lhe permitiu fazer não apenas o luto de seu pai, como ele próprio escreveu no prefácio à segunda edição (1908), mas, também, se inscrever na transmissão universitária dessa medicina tão cobiçada e em transformação. Desse fracasso ab initio de seu iniciador e fundador, a psicanálise carrega, até hoje, as seqüelas e a marca indelével que causa, a um só tempo, sua fragilidade e sua força. Ela foi condenada, desde o início, a se situar nas margens e nos interstícios das instituições existentes e em relação às lacunas dos discursos estabelecidos. Não era essa a posição das mulheres, desde sempre, desde o tempo, ao menos, de que é possível se lembrar? Sobre isso, no entanto, não é inútil assinalar um mal-entendido tenaz que acompanhou essa nova discursividade desde seus primeiros passos: a psicanálise nunca fez sua a "causa das mulheres"; o que explica uma relação antes conflitante com o feminismo, sobretudo em sua variante militante, que comumente rejeita Freud e o freudismo concedendo ao mesmo tempo, ao menos provisoriamente, um certo crédito a Lacan e à sua teoria da sexualidade feminina.

Mesmo se o "primeiro" psicanalista não se livrou de todas as premissas da metafísica — Alexandre Koyré (1957) dizia, com bastante humor, mais ou menos a mesma coisa de Copérnico — reconheçamos sua coragem extraordinária de ter sabido estar na ponta da subjetividade de sua época, aventurando-se para além dos limites, impostos pela tradição, entre os diferentes campos do saber que seus representantes defendiam como uma aquisição que lhes caberia de direito. Freud não se apropriou da histeria como de um território a ser conquistado, mas a abordou, antes, como um discurso a ser descoberto e estudado. Deixando-se ensinar por essa palavra incômoda e inaudita, inqualificável e inclassificável, quando não no modo do opróbrio ou da exclusão, ele pôde achar aí a fonte de inspiração para a elaboração de uma nova discursividade. Esta, entretanto, não se impôs de uma só vez e Freud é, apesar de tudo — poderia ter sido de outro modo? — um filho de seu tempo. Os abalos econômico e social que se produziram ao longo do século passado, em prol da industrialização e da colonização, foram apenas meros precursores das catástrofes políticas e humanas de uma ordem bem diferente que marcou esse século, que viu surgir mestres bem mais ferozes que os antigos. Uma análise sumária veria aí como um último sobressalto dos traços mais virulentos e mais destruidores de uma virilidade, já abalada e atingida em seu status, cuja desmesura só era igual à sua fragilidade. "A mulher", quanto a ela, seria mais pacífica?2

Canetti (1960) tinha razão de atribuir à paranóia uma dimensão política, como ele expõe na última parte de sua obra princeps referindo-se particularmente ao "caso Schreber": "Encontraremos em Schreber um sistema político que nos parece ser terrivelmente familiar." ("Man wird ein politisches System bei Schreber finden, das einen unheimlich vertraut anmutet", p. 198). Ao mesmo tempo que menciona seu projeto delirante de se transformar em mulher, ele refuta, categoricamente, a tese freudiana da paranóia como defesa contra a homossexualidade: "Não é possível cometer um erro maior" ("Ein grösserer Irrtum ist kaum möglich", p. 506). O interesse para nós das "Memórias de um nevropata" (SCHREBER, 1903) é que o sistema que elas expõem realiza no plano do delírio aquilo a que a histeria acede em outro registro, o da fantasia, a saber, a submissão à posição feminina, contra a qual ele, de início, tanto se defendeu, fazendo-a sua. Alguns perversos, para chegar ao mesmo resultado, são obrigados a colocá-la em ato no real de seu cenário. O discurso ambiente lhes é favorável atualmente e conduziu o legislador, em alguns países, a tomar medidas que visam proteger sua posição e até mesmo dar-lhe um estatuto próprio, o que há bem pouco tempo teria sido literalmente impensável. Por todos esses motivos, é sobre as perversões e o que elas implicam que as questões teóricas e discursivas parecem ser as mais importantes no futuro, como foi o caso para a histeria há um século, e para as psicoses, desde os anos 1950.

Os freudianos são pegos de surpresa por uma modernidade, que eles contribuíram para modelar, e por uma feminilidade, que até então não tinha ousado se dizer e se mostrar, que estavam, no entanto, entre os primeiros a pôr em evidência; eles tinham até mesmo lhe reconhecido um lugar de destaque colocando-a no centro de seu projeto clínico e terapêutico. Eles se sentem ultrapassados ao ver exposto à luz do dia aquilo que para eles constituía um dos núcleos do recalque e se interrogam, alguns ao menos, sobre sua parte de responsabilidade nesse "retorno do recalcado", surpresos, às vezes abalados, por encontrar na primeira esquina a bissexualidade, cujo caminho eles tiveram de abrir com amargas lutas teóricas e que correspondia a suas hipóteses mais ousadas. Tratar-se-ia do disfarce/desvelamento mais recente e mais provocador da histeria jamais domada? Eles se encontram, às vezes apesar deles, no lugar do filho mais velho ou do ancestral, que, de certa maneira, eles sempre ocuparam e até mesmo reivindicaram, para assistir, impotentes, a efeitos de seu ensinamentos que eles não tinham nem previsto, nem desejado, ao menos nessa forma. Não há dúvida alguma de que uma certa modernidade se inscreve, abertamente, no avesso de seu discurso, reivindicando-a implicitamente até nos menores detalhes. Esta relação complexa não deveria lhes causar medo, já que ela constitui uma chance e uma espécie de desafio que lhes cabe indicar, talvez um "convite à viagem", que pode lhes permitir fazer novas descobertas. No entanto, eles nada têm a esperar de um puro debate das idéias, mas deveriam voltar ao que constituiu seu ponto de partida, a saber, o estudo e a pesquisa clínicos, verdadeiras marcas de sua originalidade.

A clínica psicanalítica se definiu, como indicado, segundo um leque mais ou menos amplo das modalidades de defesa contra a posição feminina e o que ela veicula e implica, quer dizer, uma diferença radical que associamos com a castração. Este último termo é um dos mais debatidos e dos mais controvertidos tanto pelos freudianos quanto por seus adversários. A seguir, vou tentar, a partir de uma nota clínica, dar minha contribuição a esse dossiê já bem extenso. Será minha maneira de homenagear essa formidável aberturadiscursiva induzida e introduzida pelos "Estudos sobre a histeria", publicados há exatamente um século. Essa abertura atraiu para a psicanálise grandes homens e mulheres, mas também teve como efeito repelir outros que em vez de consistência e univocidade só encontraram metáfora escorrendo entre os dedos, como areia, escapando assim a seu esforço de domínio ou de "apreensão" (no sentido de concipere, begreifen).

Esse novo discurso não é, no entanto, desprovido de conceitos, mas está, talvez, sempre em busca de seu estatuto. São significantes que, sem ser fixos, se inscrevem de maneira particular no tempo e continuam a significar fora do contexto de sua emergência, ao qual, todavia, é indispensável poder levá-los de volta, em última instância. Eles contribuem para determinar a especificidade de um dado campo, assim como seus limites, estabelecendo pontes com outros domínios do saber. No que toca a psicanálise, tal função só lhes cabe em sua relação privilegiada com a castração, que designa um lugar vazio situado no centro de um dispositivo terminológico. É como se a posição feminina, que entrou desde o início na textura desse discurso que ela contribuiu para tecer, mais se aproximasse dele. Daí resultou uma dificuldade própria ao discurso freudiano, que foi a de tematizar o que se encontrava em sua origem. O que se deixou "apreender" com mais facilidade é o que chamamos de histeria, tanto a do homem quanto a da mulher. Não é o menor motivo para se interessar por ela e estudá-la, não esquecendo que ela é, de início, definida como mecanismo de defesa contra a posição feminina. Não está excluído, entretanto, que tal aporia, que foi pouco evidenciada, possa conduzir a um impasse teórico.

......................................................................................
Veja o artigo na integra
.