Texto da psicanalista Julieta Jerusalinky sobre o trabalho de escuta dos psicanalistas durante o período do isolamento social e as possibilidades de saída após a pandemia.
Escutadores do sofrimento psíquico durante o confinamento e a construção de saídas coletivas após a pandemia
A
pandemia mundial de COVID-19 é uma fatalidade de ordem natural, mas que, ao
mesmo tempo, revela as consequências dramáticas de uma organização mundial que,
nas últimas décadas, se caracterizou pelo desmonte do estado do bem-estar
social.
Não temos
como viver em sociedade sem construirmos um projeto coletivo que zele pela
saúde, educação, pesquisa, informação, amparando a população vulnerável em uma
Rede de Atendimento Psicossocial. Revela-se aí a importância do SUS, da RAPS,
das bolsas de pesquisa (duramente sucateadas a partir da Emenda Constitucional
95 que congelou as verbas para saúde e educação por 20 anos). Se em momentos de
surtos de doenças infecto contagiosas, como a COVID-19, precisamos contar com
médicos, enfermeiros e auxiliares de enfermagem na linha de frente, temos
também um intenso trabalho ocorrendo na sustentação da vida pela via da
manutenção da saúde mental, duramente atingida durante a pandemia.
Nas
últimas semanas, psicólogos, psicanalistas e terapeutas implicados no
tratamento regular de pacientes - como fonoaudiólogos, psicomotricistas,
terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, musicoterapeutas, psicopedagogos e
assistentes sociais, entre outros – têm trabalhado intensamente.
À medida
em que a pandemia avança, avança também uma fragilização psíquica. Temos
escutado as pessoas falarem do medo. Medo direto da perda da própria vida ou da
de seres queridos, em particular dos mais velhos, mas também medo pela geração
seguinte, nos casos em que se trata de crianças com dificuldades, pelas quais é
preciso zelar ainda mais. Medo da perda do trabalho e dos lugares que tão
duramente se conquistaram ao longo dos anos por um imenso investimento de
esforço vital. Medo da perda do sustento para o mais mínimo da dignidade
humana: alimento, medicações, moradia.
Somos
escutadores da angústia - sentimento mais difuso que o medo, já que este, pelo
menos, é um temor de algo específico. A angústia é mais avassaladora, invade,
tira o sono, causa palpitações, toma o corpo de aflição, uma aflição da qual
não se vê a saída... traduzida na frase, muito repetida nesses dias, “senti um
aperto quando percebi que não se sabe quando isso vai acabar”.
Quando as
coordenadas simbólicas que sustentam a vida de alguém se fragilizam, torna-se
difícil imaginar o futuro. Ainda que nunca saibamos do futuro, imaginar um, é
imprescindível para sustentar o presente, senão o presente é vivido em um
continuum sem relevo, sem perspectiva. Por isso é tão importante considerar
que, ainda que não saibamos quando, isso vai acabar.
A angústia
se apresenta pela descontinuidade que se vive, já que sabemos que não sairemos
dessa para o mesmo mundo que deixamos, e essa incerteza comparece nos
pesadelos, tão narrados nesses dias, em que as pessoas se vêem atingidas por
acontecimentos imprevisíveis que as tomam de surpresa, que as pegam
despreparadas, ficando paralisadas ao se tentirem invadidas pelo terror.
Somos
escutadores da tristeza e quadros depressivos daqueles para os quais estar no
mundo já não era fácil, e agora, ao ter que ficar reclusos, esquecem até de
abrir a janela, entrando em estados crepusculares em que tudo parece se apagar,
ficar distante e difuso.
Somos
escutadores daqueles que se sentem absolutamente indefesos, expostos e
invadidos pelo risco da doença que passa a assumir um caráter persecutório, na
medida em que percebem que não há garantias absolutas de risco zero, por mais
que haja isolamento ou por mais que se lave as mãos.
Somos
escutadores da raiva e das explosões emocionais que, se não escutadas, viram
atos contra si e contra os outros -como todos têm testemunhado pelas
estatísticas que evidenciam um acréscimo exponencial de violência doméstica
durante essa pandemia.
Somos
escutadores dos efeitos psíquicos produzidos pela privação do ir e vir, pela
privação do gesto do beijo e do abraço. É uma dor para as crianças não poderem
ver os avós, é uma dor para os jovens não poderem encontrar seus namorados e
para os adolescentes não poderem conviver com seus amigos. São dores que
precisam ser escutadas para que seja possível às pessoas atravessar esse
momento sem se porem em risco.
Nesse
momento, para cuidar dos demais, é preciso se afastar fisicamente. Para exercer
a cidadania é preciso ficar em casa. Mas, para não adoecer, é preciso sentir
que estamos com os outros simbolicamente, se sentir amparado, considerado,
escutado. Refazer o sentido de viver diante do imprevisível, como uma pandemia,
é imprescindível para não adoecer psiquicamente, e esse sentido precisa ser
sustentado com os outros: amigos, familiares, colegas e também terapeutas.
Por isso
é um trabalho de escutadores esse que fazemos. Um trabalho que não aparece nas
estatísticas nem é visível. Como as tarefas domésticas, o sofrimento mental só
aparece quando o trabalho de elaboração que era para acontecer não aconteceu. Assim
como os cidadãos só costumam lembrar dos lixeiros quando eles não passam, e aí
se percebe quão fundamental esse trabalho é, os trabalhadores da saúde mental
somos recicladores do lixo psíquico, dos resíduos que produzem adoecimento.
Tratamos
escutando a dor que dilacera e, a partir dela, procuramos, na fineza e
delicadeza íntima de cada subjetividade, sustentar os fios que tornam possível
seguir adiante com a vida, encontrar esperança, cuidar de si e cuidar dos
outros, sustentando os fios soltos e tecendo com eles uma borda para a dor.
Somos
escutadores e depois bordadores do rombo da dor. Isso não é fácil em um momento
em que o tecido social que dá lugar para cada um se esgarça, e menos ainda para
aqueles que já estavam frágeis: crianças que lutam por se desenvolver diante de
um organismo que lhe impõe limites ou que lutam por estar em inclusão escolar
diante de dificuldades de aprendizagem, pais que zelam por seus filhos
acompanhados por terapeutas e que, no momento atual, não têm como compartilhar com
outros seus cuidados, casais que estão em crise e que agora precisam conviver
confinados.
Somos
escutadores e, junto com nossos pacientes, bordadores, ao fazer a borda ao que
dilacera. O mais surpreendente e animador nisso é que, ao fazermos as bordas para
uma dor, também construímos o que se deixa de dentro e o que se deixa de fora,
construímos limites ao que não deve nem pode ser tolerado, e desse modo, somos
transformadores para que, diante da dor, seja possível construir e reconstruir
novos caminhos possíveis para viver. Por isso é preciso considerar que a
humanidade já atravessou outras longas e dolorosas dificuldades e algo podemos
aprender com elas: jamais se volta ao mundo que deixamos. Por isso, em lugar de
idealizar o que perdemos, podemos interrogar se aquele mundo de antes estava
mesmo tão bom assim e interrogar em que direção desejamos prosseguir. Nisso
contam os projetos pessoais, mas também o pacto social que nos une como
sociedade.
Isso vai
acabar. Uma hora vai acabar. Mas o mundo para o qual voltaremos dependerá dos
atos que realizemos desde agora. Se para o cuidado de todos agora é preciso que
cada um fique em casa, a questão que se coloca é que projeto coletivo de
humanidade nos unirá a partir dessa pandemia. A que projeto social daremos lugar?
O que
isso tem a ver com escutar a dor de cada um durante o confinamento? Bem, não dá
na mesma sofrer só ou saber que há um coletivo social que traz amparo. A
desesperança, a vulnerabilidade social e a extrema falta de possibilidades aos
quais muitos estão expostos, não foram causadas pelo vírus.
Nesses
momentos o coro diz: esperemos que haja respiradores para todos! Mas a questão
maior que está em jogo é que haja serviços de saúde e de saúde mental para
todos. Educação para todos, alimentação, moradia e informação para todos. Para
isso é preciso que a lógica social do “salve-se quem puder”, que empurra cada
um individualmente ao risco de morte em prol das margens de lucro, essa sim,
seja sufocada por um projeto coletivo maior.
Julieta
Jerusalinsky - é mestre e doutora em psicologia clínica, professora dos cursos
de especialização em Teoria Psicanalítica (COGEAE PUC SP) e Estimulação Precoce
(Clínica Transdisciplinar de bebês (Instituto Travessias da Infância – Centro
de Estudos Lydia Coriat -SP)
Fernanda Pimentel é psicanalista, professora e pesquisadora. Doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ
Atende em consultório em Niterói e Copacabana.
Atende em consultório em Niterói e Copacabana.