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7 de agosto de 2020

Žižek: A dialética paralisada da pandemia

Para Žižek, filósofo esloveno, a reabertura gradual do comércio, apesar do crescente número de casos, denuncia que o retorno à normalidade - ou o novo normal - é um  gesto psicótico supremo, sinal de uma loucura coletiva.


A dialética paralisada da pandemia

Por Slavoj Zizek, no Blog da Boitempo

Nossa vida social não está paralisada por estarmos tendo que obedecer a regras de isolamento social e quarentena – nesses momentos de aparente paralisia, as coisas estão mudando radicalmente. A rejeição ao lockdown é na verdade uma rejeição à mudança.

O simples que é difícil de fazer

Os marxistas tradicionais costumavam estabelecer uma distinção entre o comunismo propriamente dito e o socialismo, que seria sua etapa inicial, inferior (na qual o dinheiro e o Estado ainda existiriam, os trabalhadores ainda recebem salários e assim por diante). Na União Soviética houve um debate em 1960 sobre onde eles se encontrariam nesse quesito, e a conclusão foi que embora não estivessem ainda no comunismo pleno, tampouco se encontravam na sua etapa inferior (o socialismo). O resultado foi a introdução de uma distinção adicional entre uma fase inferior e superior do próprio socialismo… Ora, será que algo semelhante não está ocorrendo agora com a epidemia da covid-19? Até cerca de um mês atrás, nossa mídia estava recheada de alertas sobre uma segunda e muito mais potente onda da epidemia que ocorreria no outono e no inverno.

Hoje, com novos picos em toda parte e números de infecção despontando mais uma vez, o que se diz é que não se trata ainda da segunda onda, mas apenas de um agravamento da primeira onda, que persiste. Essa conclusão classificatória só confirma que a situação da covid-19 está ficando grave, com o número de casos explodindo em todo o mundo novamente. Portanto passou da hora de levar a sério verdades simples tais como aquela recentemente anunciada pelo diretor geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus: “A maior ameaça diante da qual nos deparamos agora não é o vírus em si, é a falta de liderança e solidariedade a nível global e nacional. Não conseguiremos derrotar essa pandemia se permanecermos divididos enquanto mundo. A pandemia da covid-19 é um teste de solidariedade e liderança globais. O vírus floresce com a divisão, mas é aplacado quando nos unimos.” Levar essa verdade a sério significa que devemos considerar não apenas as divisões internacionais como também as divisões de classe no interior de cada país.

 “O coronavírus meramente expos a pandemia pré-existente de pobreza. A covid-19 chegou em um mundo no qual a pobreza, a desigualdade extrema e o desprezo diante da vida humana estão se alastrando, e no qual políticas econômicas e estruturas jurídicas são concebidas a fim de gerar e sustentar riqueza para os mais poderosos, não para erradicar a pobreza.”

Conclusão: é impossível conter a pandemia viral sem atacar também a pandemia da pobreza. Como? A princípio, não tem muito mistério: dispomos dos meios necessários para reorganizar adequadamente o sistema de saúde e assim por diante. No entanto, para citar a frase final do “Elogio ao comunismo”, de Brecht, presente na sua peça A mãe: “Er ist das Einfache, das schwer zu machen ist [É o simples, que é difícil de fazer]”. Há muitos obstáculos que fazem com que esse simples seja tão difícil de realizar (sobretudo a ordem capitalista global), mas quero aqui focar em um obstáculo ideológico – ideológico no sentido das posturas, preconceitos e fantasias semi-conscientes, mesmo inconscientes, que regulam as nossas vidas também (e especialmente) em tempos de crise. Ou seja, trata-se de pensar uma teoria psicanalítica da ideologia.

Nos meus livros, muitas vezes me refiro a uma série de filmes de Louis Buñuel construídos em torno do tema central recorrente da “impossibilidade não explicável da realização de um simples desejo” – as palavras são do próprio Buñuel. Em L’age d’or, o casal quer consumar seu amor, mas é repetidamente impedido de o fazer por conta de algum acidente besta. O herói do filme Ensaio de um crime quer realizar um simples assassinato, mas todas as suas tentativas fracassam. Ao final de uma noite de festa, um grupo de pessoas ricas não consegue atravessar a soleira para deixar a casa em O anjo exterminador. Em O discreto charme da burguesia, dois casais querem jantar juntos, mas complicações inesperadas sempre impedem a realização desse simples desejo. E, finalmente, em Aquele obscuro objeto do desejo, temos o paradoxo de uma mulher que, através de uma série de truques, adia repetidamente o momento final de encontro com seu amante… Será que não estaríamos testemunhando algo muito semelhante com a reação à atual pandemia? Todos nós de uma maneira ou de outra sabemos o que precisa ser feito, mas as estranhezas do destino vão nos impedindo de fazê-lo.

Agora que as infecções de covid-19 estão aumentando e as pessoas voltam a se preocupar, as novas medidas restritivas são anunciadas mas sempre junto com uma ressalva explícita ou ao menos implícita dizendo: “mas não haverá retorno a um lockdown total, a vida pública continuará…” Essa ressalva ecoa as queixas de muitas pessoas: “Eu não aguento mais [um lockdown total]. Quero minha vida normal de volta!” Por que? Terá sido o lockdown uma paralisia desprovida de dialética (para inverter o famoso tema benjaminiano da “dialética paralisada” [Dialektik im Stillstand])? Nossa vida social não está paralisada por estarmos tendo que obedecer a regras de isolamento social e quarentena – em tais momentos de (ou do que pode parecer uma) paralisia as coisas estão mudando radicalmente. A rejeição ao lockdown é na verdade uma rejeição à mudança.

Normalidade e psicose coletiva

Ignorar isso significa nada menos que um tipo de psicose coletiva. Escuto nas queixas contra o lockdown uma confirmação inesperada da afirmação de Jacques Lacan de que a normalidade é uma versão de psicose. Exigir um retorno à normalidade hoje implica um fechamento psicótico ao real do vírus – seguimos agindo como se a infecção na realidade não ocorresse. Basta reparar nos discursos mais recentes de Donald Trump: embora ele tenha consciência do verdadeiro escopo da epidemia, ele fala e age como se não soubesse de suas implicações, acusando ferozmente os “esquerdistas fascistas” de serem a principal ameaça aos EUA hoje, e por aí vai. Mas Trump aqui é muito menos uma exceção do que pode parecer – lemos regularmente na mídia e na imprensa notícias que soam algo como: “Apesar dos novos picos de infecção, a abertura continua…” De maneira insuperavelmente irônica, o retorno à normalidade torna-se assim o gesto psicótico supremo, o emblema da loucura coletiva.

Isso, é claro, não resume a verdade toda a respeito do impacto psíquico da epidemia. Em uma época de crise, o grande Outro (a ordem simbólica substancial que regula as nossas interações) está simultaneamente desintegrando, demonstrando sua ineficácia, e se fortalecendo (nos bombardeando com ordens precisas a respeito de como agir, o que fazer e o que não fazer). Isto é, o fechamento psicótico não é a única nem mesmo a mais predominante reação à epidemia. Há também a postura obsessiva.1 Muitos de nós gozamos com os rituais protetivos contra o perigo da infecção. Lavamos compulsivamente as nossas mãos, evitamos tocar nos outros e mesmo tocar a nós mesmos, esterilizarmos todas as superfícies de nossos apartamentos etc. É assim que agem os obsessivos: uma vez que o gozo objetal se encontra interditado, eles realizam uma guinada reflexiva e passam a gozar com as próprias medidas que mantêm o gozo objetal a uma distância segura.

Aqui, Jacqueline Rose levantou uma objeção crítica contra mim (durante um debate na Birkbeck Summer School): “Como você concilia a liberação de obscenidade, mesmo psicose, no espaço público com a sua explicação dos elementos progressistas do momento? Pode a ética derrotar a obscenidade? Temo que o conjunto da psicanálise sugere o contrário.” As coisas, a meu ver, são mais complexas. A obscenidade perversa não é o momento no qual o inconsciente irrompe abertamente de maneira desprovida de qualquer regulação ética a constrangê-lo. O próprio Freud chegou a escrever que na perversão, o inconsciente é o mais difícil de acessar – motivo pelo qual é quase impossível psicanalisar os perversos: primeiro eles precisam ser histericizados, é preciso que suas certezas sejam enfraquecidas pelo surgimento de questionamentos histéricos.

Mas penso que o que estamos testemunhando agora, com a epidemia se arrastando, é justamente uma gradual histericização daqueles que possuíam uma posição perversa ou mesmo psicótica. Trump e os outros novos populistas de direita estão surtando internamente, ficando nervosos, suas reações são cada vez mais inconsistentes, autocontraditórias, assombradas por uma questão. Voltando a Rose, penso que a própria obscenidade já depende de certa ética, ela se enquadra numa postura que não pode ser designada senão como ética: aqueles que agem de maneira obscena querem chocar as pessoas com seus atos e assim despertá-los de suas ilusões cotidianas. A forma de superar essa ética da obscenidade é trazer à tona suas inconsistências: aqueles que agem de maneira obscena possuem seus próprios tabus, eles nunca são tão radicais quanto pensam ser. Não há nenhum político atualmente mais constrangido pela repressão de seu inconsciente do que Trump, precisamente quando ele pretende agir e falar de maneira sincera e aberta, dizendo o que lhe der na telha.

O pessimismo de Rose se justifica, mas num nível ligeiramente diferente. Hegel não disse simplesmente que não se aprende nada da história, ele disse que única coisa que aprendemos com a história é que não há nada a se aprender com ela. É claro que “aprendemos com a história” no sentido de reagir às catástrofes do passado, de incluí-las nas narrativas de um possível futuro melhor. Digamos, depois do horror da Primeira Guerra Mundial, as pessoas ficaram completamente horrorizadas e formaram a Liga das Nações a fim de evitar futuras guerras – mas o que veio em seguida foi a Segunda Guerra Mundial. Aqui sou um pessimista hegeliano: cada trabalho de luto, cada simbolização de uma catástrofe deixa algo de fora e assim abre um caminho para uma nova catástrofe. E não adianta ter consciência do perigo que nos aguarda. Basta lembrar do mito de Édipo: seus pais sabiam o que ocorreria, e a catástrofe se realizou porque tentaram evitá-la… sem a profecia que comunicou a eles o que aconteceria, a catástrofe não teria se realizado.

Só penso que nossos atos nunca são autotransparentes, nunca sabemos o que estamos fazendo, quais serão os efeitos do que estamos fazendo. Hegel tinha plena consciência disso e aquilo que ele denominava “reconciliação” não é um triunfo da razão mas a aceitação da dimensão trágica da nossa atividade: precisamos humildemente aceitar as consequências de nossos atos mesmo que não gostaríamos que isso ocorresse. Os comunistas russos não queriam o terror stalinista, isso não fazia parte dos planos deles, mas foi o que ocorreu, e eles são de certa maneira responsáveis por ele. Será que o mesmo se dará com a epidemia do corona? E se algumas das medidas que estamos implementando para combatê-la ensejarem novas catástrofes?

O suporte fantasmático do capitalismo

É assim que devemos aplicar o idealismo de Hegel à realidade da covid-19: aqui, também, devemos ter em mente a afirmação de Lacan de que não há realidade desprovida de suporte fantasmático. As fantasias fornecem a moldura daquilo que experimentamos como realidade – a epidemia da covid-19 como fato da nossa realidade social é portanto também uma mistura do real e das fantasias: todo o arcabouço a partir do qual nós a percebemos e reagimos a à pandemia é sustentada por diferentes fantasias (sobre a natureza do próprio vírus, sobre as causas de seus impacto social e assim por diante). O próprio fato de que a covid-19 quase parou o mundo em um momento no qual muito mais pessoas vinham morrendo de poluição, fome etc, já fornece um claro indício dessa dimensão fantasmática. Temos a tendência de esquecer que há pessoas – refugiados, pessoas presas em meio a uma guerra civil – para as quais a epidemia da covid-19 representa uma preocupação menor, desprezível.

Isso significa que não há esperança? Etienne Balibar escreveu o seguinte contra mim (também no contexto de um debate na Birkbeck Summer School): “me soa um pouco infantil a ideia de que só porque a crise é uma ‘grande’ crise (concordo), todas as ‘lutas’ estão potencialmente se fundindo em um único movimento revolucionário (contanto que gritemos ‘uni-vos! Uni-vos!’ de maneira suficientemente alta)… ainda permanecem alguns obstáculos! As pessoas precisam primeiro sobreviver…” Mas penso que algo como uma nova forma de comunismo terá de surgir precisamente se quisermos sobreviver!

Se as últimas semanas demonstraram alguma coisa é que o capitalismo global não tem condições de conter a crise da covid-19. Por que não? Como observou Todd MacGowan, o capitalismo é, em seu âmago, sacrificial – em vez de imediatamente consumir o lucro, devemos reinvesti-lo, de modo que a satisfação plena é eternamente adiada.2 Em uma das últimas cenas da ópera de Mozart, Don Giovanni canta de maneira triunfal: “Giacché spendo i miei danari, io mi voglio divertir [Já que estou gastando meu dinheiro, quero me divertir]” É difícil imaginar um lema mais anticapitalista – um capitalista não gasta seu dinheiro para se divertir, mas para ganhar mais dinheiro. No entanto, esse sacrifício não é experimentado como tal, ele é ocultado: nos sacrificamos agora para lucrar lá na frente.

Com a epidemia da covid-19, a verdade sacrificial do capitalismo veio à tona. De que forma? Somos abertamente solicitados a sacrificar (parte das) nossas vidas agora a fim de manter a economia rodando. Estou me referindo aqui à maneira pela qual alguns dos seguidores de Trump, por exemplo, diretamente exigiram que pessoas maiores de 60 anos de idade deveriam aceitar morrer a fim de sustentar o “american way of life” capitalista… É claro, os trabalhadores que exercem profissões perigosas (mineradores, metalúrgicos, caçadores de baleias) já vêm arriscando suas vidas há séculos – isso sem falar nos horrores da colonização, em que quase metade da população indígena foi erradicada – mas agora o riso está direta e explicitamente formulado, e não é exclusivo aos pobres. Pode o capitalismo sobreviver a essa mudança? Penso que não: ela sobrepuja a lógica do gozo eternamente adiado que permite com que o capitalismo funcione.

O obverso desse ímpeto capitalista incessante de produzir a cada instante novos objetos são as crescentes pilhas de restos inúteis, montanhas de carros usados, sucata eletrônica e assim por diante, tal como o famoso “cemitério de aviões” no deserto de Mojave na Califórnia. Nessas pilhas cada vez maiores de “coisas” inertes, disfuncionais, que não podem senão nos provocar espanto com sua presença inútil, é possível, por assim dizer, identificar o ímpeto capitalista em estado repouso. E será que algo dessa natureza não ocorreu com todos nós quando, com a quarentena, nossa vida social se paralisou? Vimos objetos que usávamos todo dia – lojas, lanchonetes, ônibus, trens e até aviões – simplesmente em estado de repouso, fechados, desprovidos de suas funções. Não poderíamos dizer que isso foi uma espécie de epoché imposta sobre nós? Tais momentos devem nos fazer pensar: será que vale mesmo a pena voltar ao pleno funcionamento desse mesmo sistema?

O mais difícil ainda está por vir

A verdadeira provação, contudo, não é tanto o lockdown e o isolamento, ela se dará quando nossas sociedades começarem a se movimentar novamente. Em uma coluna anterior aqui no Blog da Boitempo, comparei o efeito da epidemia de covid-19 sobre a ordem capitalista à “técnica dos cinco pontos que explodem o coração” da cena final do filme Kill Bill: volume 2, de Quentin Tarantino. A técnica consiste em uma combinação de cinco golpes desferidos com a ponta dos dedos em cinco pontos de pressão diferentes no corpo do oponente. Depois de sofrer o golpe, a vítima ainda pode seguir viva contanto que não se mova. Assim que virar as costas e completar cinco passos, contudo, seu coração explode e ela desaba… Ora, não foi assim que a epidemia da covid afetou o capitalism global? É relativamente fácil manter o lockdown e o isolamento, temos consciência de que trata-se de uma medida temporária; algo como dar uma pausa. Os problemas realmente vêm à tona quando nos vemos diante do imperativo de inventar uma nova forma de vida, uma vez que fica claro que não há mais possibilidade de retorno à antiga. Em outras palavras, os tempos realmente difíceis estão chegando agora.

Em um ensaio ainda inédito intitulado “Present Tense 2020”, W. J. T. Mitchell lê a temporalidade da epidemia através das lentes da tríade da antiguidade grega composta por Chronós, Aion e Kairós. Chronós personifica o tempo linear implacável que conduz inexoravelmente à morte de todas as coisas vivas. Aion é o deus do tempo circular, das estações, do ciclo do zodíaco, da imagem da serpente devorando a própria cauda, do eterno retorno. Kairós possui um aspecto duplo de ameaça e promessa – na teologia cristã, trata-se do momento da decisão fatídica, o momento no qual “a novidade vem ao mundo”, assim como no nascimento de Cristo.

A epidemia é em larga medida lida através das lentes de Chronós ou Aion: como um acontecimento no curso linear das coisas, como uma temporada ruim, um ponto baixo que cedo ou tarde será revertido. O que eu espero é que a epidemia siga a lógica de Kairós: uma catástrofe que nos impelirá a encontrar um novo começo. Para nossos liberais, a aparição inesperada de Trump foi um momento de Kairós, algo novo que estilhaçou os fundamentos de nossa ordem estabelecida. Para mim, Trump é apenas um sintoma do que já estava errado em nossas sociedades, e ainda estamos para ver o novo surgir.

Se não inventarmos um novo modo de vida social, não será apenas um pouquinho pior, mas muito pior. Mais uma vez, minha hipótese é de que a epidemia da covid-19 anuncia uma nova época na qual teremos que repensar tudo, inclusive o significado básico do que é ser humano, e nossas ações devem ir ao encontro de nossos pensamentos. Talvez hoje devamos inverter a décima primeira tese de Marx sobre Feuerbach: no século vinte, tentamos mudar o mundo de maneira rápida demais, e agora chegou a hora de interpretá-lo de uma nova maneira.

Fonte: Blog da Boitempo


Fernanda Pimentel é psicanalista, professora e pesquisadora. Doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ
 Atende em consultório em Niterói e Copacabana.

28 de julho de 2020

Como a flexibilização da quarentena nos afeta?

Matéria da revista Elle sobre as consequências do afrouxamento das medidas de isolamento 


Há cinco meses, a pandemia do Covid-19 se impõe como a nossa nova realidade. O pânico inicial levou muitas pessoas a enxergarem o isolamento social como estratégia de mitigação do problema, mas com a flexibilização da quarentena a angústia e a raiva viraram emoções cada vez mais presentes.
A pandemia expôs as nossas desigualdades tanto materiais quanto estruturais. À medida em que o tempo em isolamento avança para aqueles que permanecem em casa — mesmo com todo o conforto e recursos — fica difícil lidar com quem descumpre o isolamento por opção própria.
Nos indignamos ao assistir via redes sociais, ou por meio dos discursos de governantes, aqueles que relativizam a crise e usufruem de pequenos-grandes privilégios em tempos de exaustão emocional. Um post compartilhado de um céu azul na beira da praia ou cenas de bares lotados para quem só enxerga a parede de sua casa há meses, pode ser a gota d'água.
De acordo com a pesquisa do Datafolha do dia 29 de junho, apenas 12% dos brasileiros seguem em isolamento, saindo somente para realizar tarefas extremamente necessárias. Paradoxalmente, explode o número de vítimas da doença, e nunca antes tememos tanto o vírus: 47% da população afirmou sentir muito medo de ser infectado.
Como podemos navegar, então, por esta fase em que se desenha uma retomada do cotidiano, mas ainda convivendo diariamente com os efeitos da pandemia?
O MAL-ESTAR QUE DECORRE DO PACTO COLETIVO
Segundo Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da USP, o isolamento social é uma espécie de pacto coletivo que criamos e que passamos a entender como uma regra em resposta ao "novo normal".
"Para interiorizar essa regra, a gente pensou que ela valia para todo mundo. Eu fiz uma renúncia, me impus severas abstinências – de planos, de afetos, de liberdade —, mas entendi esse sacrifício como um bem comum. Aquele que fura a quarentena abala o nosso processo de interiorização da regra, e é normal que a gente se sinta enganado."
Esse pacto coletivo pode ter diferentes motivações, como a nossa noção de cidadania, a nossa moral, o nosso altruísmo, a nossa capacidade de obedecer a uma ordem, de se sentir útil ou até mesmo a nossa hipocrisia. Em O Mal-estar na Cultura (1930), Freud reflete sobre as renúncias individuais que precisamos fazer para que a vida em sociedade seja possível, e expõe o quanto esse esforço também é acompanhado de um preço a ser cobrado.
"Aquele que fura a quarentena abala o nosso processo de interiorização da regra, e é normal que a gente se sinta enganado", Christian Dunker
"O que Freud chamou de mal-estar é o fato de que a renúncia toca pontos muito caros ao sujeito, como liberdade de escolha, de deslocamento, de expressão dos desejos. Não é tudo que se pode dizer e fazer, sob pena de comprometer o arranjo que permite a vida com o outro, e do qual todos podem se beneficiar", explica a psicanalista e pesquisadora em Linguística Aplicada (PUC-SP) Amanda Mont'Alvão. "É uma renúncia porque, como humanos, somos constituídos de desejos que pressionam por satisfação, e algumas destas realizações implicam no prejuízo ou até mesmo destruição de uma outra pessoa. Daí a necessidade de a sociedade possuir leis e instâncias mediadoras que estabeleçam e zelem por pactos coletivos possíveis".
Convivemos incessantemente com esse conflito e se em condições normais a renúncia individual em prol da coletividade já é desafiadora, que dirá em um contexto de muito medo e desigualdade. Do ponto de vista cognitivo, o desencontro de informações torna tudo ainda mais difícil, como explica Fabiano Moulin, neurologista da Unifesp.

"Nós precisamos de uma narrativa que contextualize o nosso sofrimento. E é aí que entram os nossos vieses, espécie de 'atalhos' que o nosso cérebro cria para facilitar os nossos processos. Dois deles, principalmente, permitem que a gente seja muito resiliente: a nossa sensação de pertencimento e o nosso senso de propósito."
No Brasil, porém, o especialista aponta que esses dois consensos foram destruídos pela forma como a pandemia foi encarada politicamente. Passamos a conviver com discursos simplistas de uma realidade complexa, resumidos a quem acredita no vírus ou não, quem espera um milagre salvador ou não, quem advoga pela retomada da economia ou não.
Mas há uma guerra simbólica que compõe a nossa realidade. À medida em que julgamos quem fura o isolamento, nos diferenciamos daqueles que preferem negar o real e nos aproximamos daqueles que defendem o discurso científico na construção de soluções para o enfrentamento da pandemia.
Apenas 12% dos brasileiros seguem em isolamento, saindo somente para realizar tarefas extremamente necessárias.
"Chegamos em um cenário que agora está mais claro: nem todos compartilham da mesma noção de realidade. Mas como você desmonta sistemas imaginários de quem nega o real? É preciso lembrar: o real se apresenta, e se reapresenta, e insiste. A Terra é realmente redonda. O vírus realmente existe. Mas a gente tem que se colocar numa posição subjetiva humilde para criar ferramentas de compreensão desse real", aponta a psicanalista e pesquisadora do Núcleo Diversitas (USP), Maria Lucia Homem. "Eu sei que gritar 'fascistas!' nas redes sociais pode trazer algum alívio, mas ainda acredito na comunicação não violenta como ferramenta para furar essa bolha de sentidos".
OS NOSSOS LIMITES EMOCIONAIS SÃO EXPOSTOS PELA PANDEMIA
Para os especialistas, durante o processo de reabertura das cidades, e de um potencial retorno à quarentena caso o nível de contaminação volte a aumentar, cada um vai precisar fazer uma avaliação individual de suas concessões. E é esperado que desse processo surjam emoções como culpa, vergonha, medo e depressão.
"Você pode até acreditar que a quarentena é importante e você pode querer cumpri-la à risca, mas todos nós temos limites psíquicos. Não somos infinitamente elásticos. A gente quebra. Precisamos ponderar a nossa moralidade versus a matéria-prima de que a gente é feito. E esse é um exercício muito difícil, porque significa que a gente precisa sair da nossa moral binária", explica Dunker.
Se até agora entendemos a quarentena como uma lei de tudo ou nada – ou você cumpre, ou você está fora dela — a situação que se impõe, sem qualquer perspectiva de acabarmos com o vírus a curto prazo, vai nos exigir uma outra racionalidade, igualmente ética.
Talvez, tenhamos que enxergar a nossa realidade com as diversas camadas que ela exige, e isso, segundo Dunker, envolve um criterioso trabalho de avaliação de riscos: quem é você, com quem sua quarentena se comunica, quais os custos disso e quais os riscos você apresenta para os outros.
É um trabalho que envolve análise de informação para sermos o mais prudente que podemos, mas também um exercício de coragem para conviver com aquilo que não conhecemos ou controlamos. No caso, o vírus.
Em tempos como o nosso, e também na pós-pandemia, muita reconstrução vai precisar ser feita. E o luto, seja de quem perdeu entes queridos ou do abandono de uma realidade que outrora existia, precisa de espaço para se estabelecer.
"Lidar com o sofrimento, com a impotência, chorar, falar sobre a finitude de nossos corpos e de nossas certezas, e também pedir ajuda. Por mais que cada um enfrente a pandemia com a sua subjetividade, precisamos tomar todas essas perdas como nossas, porque elas são. Um país que parou e perdeu mais de 60 mil vidas, muitas vezes de forma solitária, vai precisar aprender a honrá-las", reforça a psicanalista Mont'Alvão.

Fernanda Pimentel é psicanalista, professora e pesquisadora. Doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ
 Atende em consultório em Niterói e Copacabana.

2 de junho de 2020

O dia que descobri que minha mãe era gorda… Por Kasey Edwards


Kasey Edwards é uma colunista e autora australiana, que nos presenteou com esse belíssimo texto onde ela relata, em forma de carta, a experiência de presenciar a relação dolorosa de sua mãe com seu copro e seu peso. 
O texto original está neste link.



Querida mãe,
Eu tinha sete anos quando descobri que você era gorda, feia e horrorosa.
Até então, eu acreditava que você era linda – em todos os sentidos da palavra. Eu lembro de fuçar os antigos álbuns e ficar um bom tempo olhando para fotos suas no deck de um barco. Seu maiô branco, tomara que caia, parecia glamuroso como o de uma estrela de cinema. Sempre que eu tinha a chance, tirava aquele maiô maravilhoso do fundo do seu armário e ficava imaginando quando é que eu seria grande o suficiente para vesti-lo, quando é que eu seria como você.
Mas numa noite, tudo isso mudou. Estávamos todos vestidos para uma festa e você me disse:
“Olha para você, tão magra e bonita. E olha para mim, gorda, feia, horrorosa.”
De primeira, não entendi o que você quis dizer.
“Você não é gorda.” - eu disse, inocente e com sinceridade - ao que você respondeu, “Sim, eu sou, querida. Sempre fui gorda, desde criança.”
Nos dias seguintes, eu tive algumas revelações doloridas, que moldaram a minha vida toda. Concluí que:
1. você deveria ser mesmo gorda, porque mães não mentem.
2. gordo é sinônimo de feio e horroroso.
3. quando eu crescesse, seria como você e, portanto, seria gorda, feia e horrorosa também.
Passados alguns anos, eu revivi essa conversa e todas as centenas de outras que vieram depois e tive muita raiva de você. Por não se julgar atraente ou digna de atenção. Por ser tão insegura. Porque, como meu grande modelo de mulher, você me ensinou a agir assim também.
A cada careta que você fazia em frente ao espelho, a cada nova dieta do momento que iria mudar sua vida, a cada colherada culpada de “ai, eu não devia”, eu aprendia que mulheres deveriam ser magras para serem dignas e socialmente aceitas. Que meninas deveriam passar por privações porque a maior contribuição delas para o mundo era a aparência física.


Exatamente como você, eu passei a minha vida inteira me sentindo gorda – (nem sei quando foi que “gorda” se tornou um sentimento). E porque eu acreditava que era gorda, também me achava imprestável.
Mas os anos se passaram. Sou mãe. E sei que te culpar por minha péssima relação com meu corpo é inútil e injusto. Hoje entendo que você também é um produto de uma longa linhagem de mulheres que foram ensinadas a se odiar.
Olha só para o exemplo que a vovó te deu. Era uma vítima da própria aparência, e fez regime todos os dias da vida dela até morrer, aos 79 anos. Costumava se maquiar para ir ao correio, por medo de alguém vê-la de cara lavada.
Eu lembro do “suporte” que ela te deu quando você anunciou que papai tinha te deixado por outra mulher. O primeiro comentário dela foi, “Eu não entendo porque ele te deixaria. Você se cuida, usa batom. Entendo que você esteja acima do peso, mas não é muito.”
Papai também não te acalentava.
“Meu Deus, Jan”, uma vez ouvi ele te dizer. “Não é difícil. Calorias consumidas x calorias gastas. Se você quer perder peso, você só tem que comer menos.”
Aquela noite, no jantar, eu assisti você implementar essa dica milagrosa de emagrecimento do papai. Você preparou um chow mein para o jantar (se lembra como, nos anos 80, no subúrbio da Austrália, essa combinação de carne moída, repolho e shoyu era considerada o melhor da culinária exótica?). A comida de todo mundo estava em um prato comum, mas a sua estava em um pratinho de sobremesa.
Enquanto você sentava em frente a sua patética porção de carne moída, lágrimas silenciosas escorriam pelo seu rosto. Eu não disse nada. Nem quando os seus ombros começaram a curvar por causa do seu incomodo.
Ninguém te amparou. Ninguém te disse para deixar de ser ridícula e se servir um prato decente. Ninguém te disse que você já era amada, já era boa o suficiente. Suas conquistas e seu valor – como professora de crianças com necessidades especiais e mãe de três filhos – eram repetidamente reduzidos à insignificância quando comparados aos centímetros de cintura que você não conseguia perder.
Me despedaçou o coração testemunhar seu desespero, e sinto muito por não ter te defendido. Eu já tinha aprendido, àquela altura, que você ser gorda era culpa sua. Eu tinha ouvido papai falar de perder peso como um processo “muito simples” – coisa que, ainda assim, você não conseguia fazer. A lição: você não merecia comer e com certeza não merecia nenhuma compreensão.

Mas eu estava errada, mãe. Hoje eu entendo o que é crescer em uma sociedade que diz para as mulheres que a beleza delas é o que mais importa, e, ao mesmo tempo, define padrões estéticos absoluta e eternamente fora de alcance. Eu também entendo a dor que é internalizar essas mensagens. Nós acabamos nos tornando nossos próprios carcereiros e nos impomos punições sempre que não conseguimos chegar lá. Ninguém é mais cruel conosco do que nós mesmas.
Mas essa maluquice precisa acabar, mãe.
Acaba com você, acaba comigo. Acaba agora. Merecemos mais – mais que ter dias horríveis por pensamentos ligados a nossa péssima forma física, desejando que ela fosse diferente. E não é mais só sobre você e eu. É também sobre a Violet. Sua neta tem apenas 3 anos e eu não quero que esse ódio ao corpo tome conta dela e estrangule sua felicidade, sua confiança, seu potencial. Eu não quero que ela acredite que a aparência é o maior ativo que ela possui, e que vai definir o valor dela no mundo. Quando a Violet nos olha para aprender a ser uma mulher, precisamos ser os melhores modelos que pudermos. Precisamos mostrar para ela, com palavras e com as nossas ações, que as mulheres são boas o suficiente exatamente como são. E para ela acreditar, nós precisamos acreditar primeiro.
Quanto mais velhas ficamos, mais pessoas queridas perdemos, doentes ou em acidentes. A perda é sempre trágica, sempre muito precoce. Às vezes eu penso o que essas pessoas não dariam para ter mais tempo num corpo saudável. Um corpo que as permitisse viver um pouco mais. O tamanho das coxas ou os pés de galinha não importariam. Seria vivo, e portanto seria perfeito.
O seu corpo é perfeito.
Ele te permite desarmar todo mundo com seu sorriso, contaminar cada um com sua risada. Te dá seus braços para envolver a Violet e apertá-la até ela gargalhar. Cada momento que gastamos nos preocupando com a nossa forma física é um momento jogado fora, um pedaço precioso de vida que a gente não vai recuperar nunca mais.
Vamos honrar e respeitar nossos corpos pelo que eles fazem ao invés de desprezá-los pelo que eles são. Vamos manter o foco em viver vidas saudáveis e ativas, deixar nosso peso de lado e largar nosso ódio ao corpo no passado, que é onde ele merece ficar.
Quando eu olhava para aquela foto sua de maiô branco anos atrás, meus olhos inocentes de criança enxergavam a verdade. Eu via amor incondicional, beleza e sabedoria. Eu via a minha mãe.
Com amor,
Kasey.


Fernanda Pimentel é psicanalista, professora e pesquisadora. Doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ
 Atende em consultório em Niterói e Copacabana.

13 de maio de 2020

Pesquisa indica aumento de depressão e ansiedade durante o isolamento


Apesar dos índices que indicam aumento de depressão e ansiedade neste período de isolamento social, quem recorreu a análise online apresenta menos sintomas e lida melhor com algumas dificuldades típicas deste momento.

Pesquisa da Uerj indicaaumento de casos de depressão entre brasileiros durante a quarentena

As incertezas com o novo coronavírus e as mudanças impostas pelo isolamento social vêm provocando sofrimento psíquico. Logo após a decretação da quarentena por causa da pandemia de Covid-19, o professor Alberto Filgueiras, do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), iniciou uma pesquisa sobre o comportamento dos brasileiros durante o isolamento. Os resultados mostram que os casos de depressão praticamente dobraram entre os entrevistados, enquanto as ocorrências de ansiedade e estresse tiveram um aumento de 80%, nesse período.
Filgueiras coordena o estudo por meio do Laboratório de Neuropsicologia Cognitiva e Esportiva (LaNCE), em parceria com o Dr. Matthew Stults-Kolehmainen, do Yale New Haven Hospital, nos EUA.  Para a realização da pesquisa, 1.460 pessoas em 23 estados e todas as regiões do país responderam a um questionário on-line com mais de 200 perguntas, em dois momentos específicos, de 20 a 25 de março e de 15 a 20 de abril.
De acordo com os dados analisados, as mulheres são mais propensas do que os homens a sofrer com estresse e ansiedade durante a quarentena. Outros fatores de risco são: alimentação desregrada, doenças preexistentes, ausência de acompanhamento psicológico, sedentarismo e a necessidade de sair de casa para trabalhar. Já para depressão, as principais causas são idade mais avançada, ausência de crianças em casa, baixo nível de escolaridade e a presença de idosos no ambiente doméstico.
De acordo com o professor Alberto Filgueiras, os resultados sugerem um agravamento preocupante. “A prevalência de pessoas com estresse agudo na primeira coleta de dados foi de 6,9% contra 9,7%, na segunda. Para depressão, os números saltaram de 4,2% para 8,0%. Por último, no caso de crise aguda de ansiedade, vimos sair de 8,7% na primeira coleta para 14,9%, na segunda coleta”, ressalta.



Por outro lado, a pesquisa sinaliza que quem recorreu à psicoterapia pela internet apresentou índices menores de estresse e ansiedade. Da mesma forma, aqueles que puderam praticar exercício aeróbico tiveram melhor desempenho do que os que não fizeram nenhuma atividade física, ou que praticaram apenas atividade de força.Mas Filgueiras faz um alerta, pois a pressão social pode acabar impondo mais estresse às pessoas, em tempos de isolamento. “Esse período da quarentena não é o momento de mudar seus hábitos radicalmente. Isso pode gerar ainda mais angústia. Respeite seu estilo de vida e seus limites”, reforça.
Nos próximos meses, a pesquisa terá continuidade com novos ciclos de aplicação do questionário, enquanto durar a quarentena.

Fernanda Pimentel é psicanalista, professora e pesquisadora. Doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ
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4 de maio de 2020

Sobre a influência da tecnologia na subjetividade das crianças


No momento em que as crianças estão mais em suas casas é importante retomar a discussão sobre a influência da tecnologia na subjetividade e desenvolvimento da criança. 
A psicanalista Julieta JerusalinskyOrganizadora do livro “Intoxicações Eletrônicas, O Sujeito na Era das Relações Virtuais” ( Agalma, 2017), fala, para a Revista Gama, sobre o impacto da tecnologia na formação da criança e de como ‘é preciso de gente para ser gente’

"A internet é pior babá eletrônica do que foi a televisão em outros tempos. A partir do momento em que a mobilidade permitiu que cada integrante de uma família usasse uma tela para assistir ou jogar o que bem entendesse, houve a individualização de um processo que antes era coletivo. Dar um tablet para uma criança ficar quieta pode ser abrir a porta para um estado de passividade.
“A infância é um momento de estruturação em que o cérebro, o corpo e o psiquismo estão em formação. As experiências de vida são decisivas para quem a criança será no futuro, e por isso é tão importante pensar que lugar se dá para a ela em casa, na escola e na sociedade”, afirma a psicanalista Julieta Jerusalinsky, professora do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Puc-SP) e especialista em primeira infância e desenvolvimento infantil.
Organizadora do livro “Intoxicações Eletrônicas, O Sujeito na Era das Relações Virtuais” ( Agalma, 2017), em entrevista a Gama ela fala sobre o impacto das telas na criação e no desenvolvimento dos filhos e sobre como a convivência é fundamental para moldar que adultos essas crianças serão amanhã. “A gente precisa de gente para virar gente, pois é pela relação com o outro que uma criança se estrutura.”
G |Da perspectiva de pais esmagados por obrigações profissionais e domésticas, como não cair na armadilha da tela apaziguadora? Como criar filhos nesse mundo de telas? 
A questão seria a tela ou o fato de estarmos todos demasiadamente ocupados trabalhando, em um afastamento de contextos comunitários de família extensa e vizinhança, enquanto as crianças ficam sozinhas? Essa é a pergunta que a gente precisa se fazer. Porque a infância é um tempo da vida crucial para a formação, mas ela termina. Por isso precisamos pensar em como arrumar tempo e lugar para transmitir à criança aquilo que achamos que é decisivo para que ela se torne o adulto de amanhã. Dá muito trabalho, é verdade. Mas ao conviver com uma criança acabamos inventando brincadeiras e evocando passagens da nossa própria infância que, se não fosse pela criança, cairiam no esquecimento. Assim elas acabam por nos fazer um favor aos nos tirar do automatismo da vida adulta e nos convidar a construir uma brincadeira entre gerações. Costuma ser surpreendente o que pode acontecer quando desligamos as telas e abrimos lugar para o convívio.

O que mudou em relação a crianças e telas durante a quarentena? 
A quarentena tem sido um grande desafio de convívio familiar na medida em que as crianças passaram a ficar sob o cuidado dos pais 24 horas por dia, sem poder compartilhá-los com a escola, com outros familiares, com as babás ou as empregadas domésticas. Se produz assim um encontro entre pais que costumam delegar o cuidado dos filhos com crianças que estão muito acostumadas a ter atividades propostas por outros — e que em muitos casos não sabem construir suas próprias brincadeiras. Enquanto os pais estão sobrecarregados pelo home office e os cuidados com os filhos, pululam na internet mil e uma sugestões para entreter as crianças. Em vez de virar recreacionistas dos filhos, é um bom momento para compartilhar ludicamente das atividades da casa: cozinhar, estender a roupa, fazer a cama. Tais atividades estão repletas de sequências que exigem planejamento, motricidade ampla e fina, classificações centrais na construção do pensamento, bem como dotadas de grande valor simbólico capaz de fazer uma criança se orgulhar de poder “fazer sozinha” o que sempre foi feito por outros.

Existe uma dosagem saudável para o uso de TV ou internet? Ela muda com a idade? 
Há 20 anos, se discutia quanto tempo de televisão uma criança poderia assistir. Mas a televisão implicava que todos assistissem juntos, o que permitia comentários. Com uma tela individual, não há mais a conversa. A programação da televisão terminava; a internet não termina. Os pais já não sabem mais o que as crianças estão vendo, a não ser as muito pequenininhas. Outro aspecto é a passividade. Uma criança que brinca está em atividade, construindo uma história. A criança que está na frente da tela é uma espectadora, o que traz diferentes consequências em cada idade. Uma criança de zero a três anos vive um momento decisivo para a apropriação de seu corpo e entrada na linguagem. Que noção do seu corpo ela terá se está passiva e não circula pelo espaço? Que modo de entrada na linguagem terá se está exposta a um tablet que emite sons, mas que não sustenta a lógica de uma conversa? Até os três anos, a utilização das telas deveria ser zero porque nesse momento de vida é fundamental a relação com o outro.

E depois da primeira infância? 
Dos três aos dez anos é o momento da construção do faz de conta, de armar brincadeiras que impliquem em fantasiar. Brincar é algo extremamente complexo porque é preciso construir uma sequência e negociá-la conjuntamente com outro, dizendo para o companheiro de brincadeira o que se imaginou para que, a partir dessas palavras, os demais companheiros possam construir uma imagem e fantasiar junto. Nos jogos virtuais, esse trabalho é poupado. Mesmo nos mais criativos, os contextos aparecem dados, seja o cenário, a missão ou o personagem de cada um. E esse é um trabalho psiquicamente estruturante. Mais adiante isso é necessário para escrever um texto a partir de uma ideia ou interpretar o que lemos. Há tabelas que indicam um limite de tempo de uso de eletrônicos para cada idade, mas a questão crucial a se fazer é: no lugar do que isso está? Quando um adolescente de 13 ou 14 anos fica de duas a três horas por dia na internet, e se esse é o tempo que uma família tem para estar junto ao final do dia, se perde um momento irrecuperável.

Mas existe alguma medida que o uso de telas pode ser positivo? 
Não se trata de demonizar as novas tecnologias, mas de considerar que uso fazemos delas. As intoxicações eletrônicas não começam quando se larga o celular na mão de uma criança. A questão é como nós, adultos, estamos usando esses aparelhos. Com a internet móvel, não temos mais divisão entre o tempo de trabalho e de lazer. Um pai chega em casa e senta para brincar com seu filho, enquanto olha para as mensagens no celular. Ao ficarmos o tempo inteiro disponíveis aos que não estão ali, perdemos a importância da presença dos que estão ali conosco. Para as crianças, que dependem radicalmente do lugar que os pais lhes dão, isso tem consequências muito mais contundentes.

Você organizou um livro sobre as intoxicações eletrônicas. O que é isso exatamente? 
Para elaborar o que acontece na vida, as crianças precisam produzir, ativamente, suas representações no lugar de ficarem como espectadoras passivas de um entretenimento digital. Fazer um desenho, uma escultura de massinha, uma encenação na brincadeira ou produzir narrativas com acontecimentos ficcionais ou biográficos permite a elaboração do que é vivido, transformando acontecimentos em experiências sobre as quais se produziu algum saber. Mas quando todo intervalo passa a ser preenchido por outro e mais outro conteúdo digital suprime-se o tempo necessário para poder até mesmo evocar isso que foi vivido. É aí que um efeito tóxico se instaura, já que essa exigência de estar sempre atualizado e online torna-se um excesso que suprime o lugar e o tempo para a elaboração subjetiva que dá significado à vida.

Como se identifica que uma criança está intoxicada? 
Nos últimos anos, principalmente a partir do advento da internet móvel, começamos a receber pequenas crianças que, em vez de brincar, conversar, fazer perguntas, compartilhar atividades com adultos, explorar o espaço ou simplesmente observar o entorno, ficavam absortas em jogos eletrônicos. Para os bebês de menos de três anos, isso se traduzia em um desinteresse de estar com os outros, apresentando linguagens com repetição de fragmentos de jogos eletrônicos e aplicativos, algumas vezes em língua estrangeira, em lugar de sustentar um diálogo ou compartilhar uma brincadeira. Muitas vezes os tablets ou celulares passaram a ser entregues na mão de pequenas crianças como “chupetas eletrônicas”. Um bebê precisa explorar o espaço para encontrar os perigos reais do mundo e ser advertido simbolicamente das regras de convívio. A partir do momento em que entra essa chupeta eletrônica, ele deixa de fazer um registro do seu próprio corpo no espaço. E isso tem uma consequência.

O que os pais que permitiram o uso de eletrônicos pelas crianças se deram conta de que há problemas e querem restringi-lo podem fazer? 
Dizer “não” não basta. Em primeiro lugar é preciso pensar o que se propõe à criança. Em segundo lugar é preciso considerar o que o próprio adulto faz. Muitas vezes, as crianças convivem com um adulto que está de corpo presente, mas psiquicamente ausente olhando para uma janela virtual. As crianças não aprendem simplesmente pelo que os adultos lhes dizem, mas pelo cruzamento disso com o que eles mesmo fazem. Há bebês que, siderados por eletrônicos, podem acabar caindo em diagnósticos de transtorno do espectro do autismo. Não estou dizendo que o autismo é causado pelos eletrônicos, mas que muitas crianças com intoxicações eletrônicas são colocadas nessa valeta diagnóstica, ou em outra grande valeta diagnóstica da contemporaneidade que é o déficit de atenção e hiperatividade.

Crianças que não têm contato com telas podem ter algum tipo de distância cultural das que as utilizam? 
Não existe uma única maneira de educar — existem várias e os pais não devem se eximir de transmitir aos filhos aquilo em que acreditam, mesmo que isso implique impor limites diferentes dos que estão acostumados a ver nos colegas. É uma ilusão entregar a elas aparelhos achando que vão prepará-las para o futuro. A era digital traz uma possibilidade de acesso à informação sem precedentes, mas as crianças precisam de outros seres humanos, pais, professores, para construir suas perguntas e seus percursos de investigação.
Fonte: Revista Gama

Fernanda Pimentel é psicanalista, professora e pesquisadora. Doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ
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