Hoje Freud completaria 164 anos!
Para celebrar, recomendo a leitura do texto "Sobre a Transitoriedade", de 1916, onde Freud aborda a finitude, a morte e a decadência. Apesar dos termos, não se trata de um teto pessimista, ao contrário, pois o que ele destaca é que é justamente a transitoriedade das coisas, da beleza e da vida, que nos faz dar valor a elas...
“Sobre a Transitoriedade” (1916/1915)
Não faz muito tempo empreendi, num dia de verão, uma caminhada através de campos sorridentes na companhia de um amigo taciturno e de um poeta jovem mas já famoso. O poeta admirava a beleza do cenário à nossa volta, mas não extraía disso qualquer alegria. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava fadada à extinção, de que desapareceria quando sobreviesse o inverno, como toda a beleza humana e toda a beleza e esplendor que os homens criaram ou poderão criar. Tudo aquilo que, em outra circunstância, ele teria amado e admirado, pareceu-lhe despojado de seu valor por estar fadado à transitoriedade.
Não faz muito tempo empreendi, num dia de verão, uma caminhada através de campos sorridentes na companhia de um amigo taciturno e de um poeta jovem mas já famoso. O poeta admirava a beleza do cenário à nossa volta, mas não extraía disso qualquer alegria. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava fadada à extinção, de que desapareceria quando sobreviesse o inverno, como toda a beleza humana e toda a beleza e esplendor que os homens criaram ou poderão criar. Tudo aquilo que, em outra circunstância, ele teria amado e admirado, pareceu-lhe despojado de seu valor por estar fadado à transitoriedade.
A propensão de tudo que é belo e perfeito à decadência, pode, como sabemos, dar margem a dois impulsos diferentes na mente. Um leva ao penoso desalento sentido pelo jovem poeta, ao passo que o outro conduz à rebelião contra o fato consumado. Não! É impossível que toda essa beleza da Natureza e da Arte, do mundo de nossas sensações e do mundo externo, realmente venha a se desfazer em nada. Seria por demais insensato, por demais pretensioso acreditar nisso. De uma maneira ou de outra essa beleza deve ser capaz de persistir e de escapar a todos os poderes de destruição.
Mas essa exigência de imortalidade, por ser tão obviamente um produto dos
nossos desejos, não pode reivindicar seu direito à realidade; o que é penoso
pode, não obstante, ser verdadeiro. Não vi como discutir a transitoriedade de
todas as coisas, nem pude insistir numa exceção em favor do que é belo e
perfeito. Não deixei, porém, de discutir o ponto de vista pessimista do poeta
de que a transitoriedade do que é belo implica uma perda de seu valor.
Pelo contrário, implica um aumento! O
valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da
possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era
incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza
interferisse na alegria que dela derivamos. Quanto à beleza da Natureza, cada
vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, do modo que, em
relação à duração de nossas vidas, ela pode de fato ser considerada eterna. A
beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas
próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhes empresta renovado encanto.
Um flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela. Tampouco
posso compreender melhor por que a beleza e a perfeição de uma obra de arte ou
de uma realização intelectual deveriam perder seu valor devido à sua limitação
temporal. Realmente, talvez chegue o dia em que os quadros e estátuas que hoje
admiramos venham a ficar reduzidos a pó, ou que nos possa suceder uma raça de
homens que venha a não mais compreender as obras de nossos poetas e pensadores,
ou talvez até mesmo sobrevenha uma era geológica na qual cesse toda vida
animada sobre a Terra; visto, contudo, que o valor de toda essa beleza e
perfeição é determinado somente por sua significação para nossa própria vida
emocional, não precisa sobreviver a nós, independendo, portanto, da duração
absoluta.
Essas considerações me pareceram incontestáveis, mas observei que não causara
impressão quer no poeta quer em meu amigo. Meu fracasso levou-me a inferir que
algum fator emocional poderoso se achava em ação, perturbando-lhes o
discernimento, e acreditei, depois, ter descoberto o que era. O que lhes
estragou a fruição da beleza deve ter sido uma revolta em suas mentes contra o
luto. A ideia de
que toda essa beleza era transitória comunicou a esses dois espíritos sensíveis
uma antecipação de luto pela morte dessa mesma beleza; e, como a mente
instintivamente recua de algo que é penoso, sentiram que em sua fruição de
beleza interferiam pensamentos sobre sua transitoriedade.
O luto pela perda de algo que amamos ou admiramos se afigura tão natural ao
leigo, que ele o considera evidente por si mesmo. Para os psicólogos, porém, o
luto constitui um grande enigma, um daqueles fenômenos que por si sós não podem
ser explicados, mas a partir dos quais podem ser rastreadas outras
obscuridades. Possuímos, segundo parece, certa dose de capacidade para o amor –
que denominamos de libido – que nas etapas iniciais do desenvolvimento é
dirigido no sentido de nosso próprio ego. Depois, embora ainda numa época muito
inicial, essa libido é desviada do ego para objetos, que são assim, num certo
sentido, levados para nosso ego. Se os objetos forem destruídos ou se ficarem
perdidos para nós, nossa capacidade para o amor (nossa libido) será mais uma
vez liberada e poderá então ou substituí-los por outros objetos ou retornar
temporariamente ao ego. Mas permanece um mistério para nós o motivo pelo qual
esse desligamento da libido de seus objetos deve constituir um processo tão
penoso, até agora não fomos capazes de formular qualquer hipótese para
explicá-lo. Vemos apenas que a libido se apega a seus objetos e não renuncia
àqueles que se perderam, mesmo quando um substituto se acha bem à mão. Assim é
o luto.
Minha palestra com o poeta ocorreu no verão antes da guerra. Um ano depois, irrompeu o conflito que lhe
subtraiu o mundo de suas belezas. Não só destruiu a beleza dos campos que
atravessava e as obras de arte que encontrava em seu caminho, como também
destroçou nosso orgulho pelas realizações de nossa civilização, nossa admiração
por numerosos filósofos e artistas, e nossas esperanças quanto a um triunfo
final sobre as divergências entre as nações e as raças. Maculou a elevada
imparcialidade da nossa ciência, revelou nossos instintos em toda a sua nudez e
soltou de dentro de nós os maus espíritos que julgávamos terem sido domados para
sempre, por séculos de ininterrupta educação pelas mais nobres mentes.
Amesquinhou mais uma vez nosso país e tornou o resto do mundo bastante remoto.
Roubou-nos do muito que amáramos e mostrou-nos quão efêmeras eram inúmeras
coisas que consideráramos imutáveis.
Não pode surpreender-nos o fato de que nossa libido, assim privada de tantos
dos seus objetos, se tenha apegado com intensidade ainda maior ao que nos
sobrou, que o amor pela nossa pátria, nossa afeição pelos que se acham mais
próximos de nós e nosso orgulho pelo que nos é comum, subitamente se tenham
tornado mais vigorosos. Contudo, será que aqueles outros bens, que agora
perdemos, realmente deixaram de ter qualquer valor para nós por se revelarem
tão perecíveis e tão sem resistência? Isso parece ser o caso de muitos de nós;
só que, na minha opinião, mais uma vez, erradamente. Creio que aqueles que
pensam assim, de e parecem prontos a aceitar uma renúncia permanente porque o
que era precioso revelou não ser duradouro, encontram-se simplesmente num estado
de luto pelo que se perdeu. O luto, como sabemos, por mais doloroso que possa
ser, chega a um fim espontâneo. Quando renunciou a tudo que foi perdido, então
consumiu-se a si próprio, e nossa libido fica mais uma vez livre (enquanto
ainda formos jovens e ativos) para substituir os objetos perdidos por novos
igualmente, ou ainda mais, preciosos. É de esperar que isso também seja verdade
em relação às perdas causadas pela presente guerra. Quando o luto tiver
terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da
civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos
tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais
duradoura do que antes.
Fernanda Pimentel é psicanalista, professora e pesquisadora. Doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ
Atende em consultório em Niterói e Copacabana.
Atende em consultório em Niterói e Copacabana.