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8 de agosto de 2018

XXII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano


O XXII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano vai acontecer no Rio de Janeiro em novembro desse ano trazendo um tema super atual: a queda do falocentrismo.
Confira o texto de apresentação de Marcus André Vieira, coordenador da comissão organizadora do Encontro. 
Mais informações no site: http://encontrobrasileiro2018.com.br/


A queda do falocentrismo
Consequências para a psicanálise
XXII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano

Quem mandou? Quem mandou brincar na chuva, sair à noite? Quem mandou ir atrás, trair, amar demais, dormir de menos? Quem? Algo em mim, mais forte que eu – diria cada um de nós quando percebe que talvez tenha ido longe demais no caminho do desejo.
O querer não costuma seguir o bom senso, insiste e mira no que em nós, sem limite ou descanso, quer mais – o que J. Lacan denominou gozo. A expressão “Quem mandou?” porém, enfatiza apenas os perigos do desejo, como se sempre, mais cedo ou mais tarde, tivéssemos de pagar a fatura de seus excessos. Nem sempre, ao menos para Lacan que situa a psicanálise exatamente na arte de encontrar a composição singular entre falta e excesso, desejo e gozo, que dê a cada um a medida de seu destino.
A expressão situa-se, assim, no avesso de uma análise por supor que há quem mande melhor, na justa medida. “Isso não se faz” é o que enunciaria a tradição, nos convencendo de que se assim sempre foi é porque assim deve ser. Seu poder, encarnado por Freud no pai é em grande medida virtual, uma vez que ninguém sabe quem escreveu as regras da cartilha. Seguindo-a, no entanto, assumimos práticas que constituem e organizam nossos corpos, repartindo até nosso prazer: de um lado, o “masculino”, tido como localizado e vigoroso; de outro, o “feminino”, dito abrangente e sensível. Falo foi o nome freudiano para o ícone mais comum desta cartilha que, juntando a fome com a vontade de comer, define inclusive nossa natureza sexuada, estipulando complementariedades: para uma mulher um homem, para um pai um filho e assim por diante.
Ocorre que a tradição se sustenta na continuidade. Quando a tecnociência e o mercado dão as cartas, porém, quando o sentimento de que não há mais limites ao que se possa fazer ou vender generaliza-se, as coisas mudam. Se trinta anos na praça como taxista valem nada diante do GPS, para que as prescrições do pai? Se o Google parece ler nosso pensamento ao nos sugerir onde comprar produtos que apenas tínhamos começado a procurar, se o Spotify e seus podcasts sem autor nos deliciam sem que tenhamos que escolher o que ouvir, como crer em uma determinação maior?
O ocaso da crença no universal do pai acompanha-se da queda do falocentrismo. Sem a avenida principal da tradição, abre-se um sem número de vias para o gozo, para uma cultura de galáxias plurais no lugar de sistemas ordenados. Quais seus efeitos em nossos corpos e cidades? Há os que se aferram à tradição, mas, perdida sua eficácia natural, tornam-se pais severos de uma violência sem par; há os que, sonhando com a diversidade, se notam às voltas com o retorno de velhos dualismos ou individualismos ali onde parecia crescer a pólis do poliamor.
É possível querer sem o que transgredir? Seremos, no prazer, condenados aos desejos e gozos do binarismo e à sua superação? E na política, nada mais haverá além do poder do chefe e sua corrupção? Quem escolher quando a representação está em frangalhos e nossos eleitos vivem para gozar? A que se dedicar quando o desempenho vale mais que a ação eficaz? Quando somos empreendedores ou consumidores, nunca mais trabalhadores?
Enquanto isso, o querer segue em desassossego, promove ocupações, movimentos slow, saraus, intervenções, gozos trans, se encanta com os ininteligíveis, ignora os likes, vibra com a comunidade da comunidade sem exército, dá artes de sobrevida a nossos jovens negros em tempos de genocídio. Não teria lugar a psicanálise nestes espaços? Quais condições lhe favorecem ou fazem obstáculo hoje?
Nossa comunidade, psicanalistas e não psicanalistas que compartilham da mesma orientação lacaniana, constitui-se de trabalhadores decididos a enfrentar o desafio de abordar as questões envolvendo a queda do falocentrismo, a partir do que sua prática lhes ensina. Seremos, psicanalistas, suficientemente queers para estarmos à altura das soluções ao mal-estar de nossos dias com as quais nos deparamos em nosso trabalho clínico? De que modo seguiremos promovendo a surpresa de uma fala que encontra sua singularidade como sintoma? E que, com ele, enfrenta o próprio destino e disto faz acontecimento?
Nosso Encontro Brasileiro do Campo Freudiano repartirá estes horizontes em três eixos: Poderes, Eróticas e Sintomas. Interrogaremos nossa prática a partir da ênfase nos poderes sem pai, na vida amorosa quando a falta e o falo não dão mais as cartas e na pluralidade de novos sintomas que os dias atuais descortinam. Contaremos com os flashes e reflexões da prática psicanalítica, assim como com a bússola fundamental que nos fornecem, por meio dos testemunhos de passe, as análises levadas às últimas consequências. Poderemos, assim, examinar as “consequências para a psicanálise” das soluções e impasses subjetivos de nosso tempo.
Marcus André Vieira
(Coordenador da Comissão Científica do XXII EBCF)









Fernanda Pimentel é psicanalista e atualmente cursa doutorado em Pesquisa e Clínica em Psicanálise na UERJ, pesquisando sobre a psicanálise na atualidade e a clínica contemporânea.

20 de janeiro de 2014

3 minutos com Bauman: as relações sociais na contemporaneidade e as amizades do facebook

Zygmunt Bauman, filósofo polonês, faz uma reflexão sobre os laços humanos nos dias de hoje e chama atenção para a facilidade de nos desconectarmos de nossas "amizades online".

3 minutos com Bauman

Sociólogo polonês preocupado em compreender a sociedade pós-moderna, Zygmunt Bauman, 87 anos, autor de vários livros em que explica as relações sociais na contemporaneidade, comenta em 3 minutos, em uma de suas conferências que foi concedida para o Fronteiras do Pensamento, porquê nossas relações de amizade no facebook são tão atrativas, fáceis e superficiais.


Leia o trecho:
"Um viciado em facebook me confessou - não confessou, mas de fato gabou-se - que havia feito 500 amigos em um dia. Minha resposta foi: eu tenho 86 anos, mas não tenho 500 amigos. Eu não consegui isso! Então, provavelmente, quando ele diz 'amigo', e eu digo 'amigo', não queremos dizer a mesma coisa, são coisas diferentes. Quando eu era jovem, eu não tinha o conceito de redes, eu tinha o conceito de laços humanos, comunidades... esse tipo de coisa, mas não de redes.
Qual a diferença entre comunidade e rede?
A comunidade precede você. Você nasce em uma comunidade. De outro lado temos a rede, o que é uma rede? Ao contrário da comunidade, a rede é feita e mantida viva por duas atividades diferentes: conectar e desconectar.
o-ZYGMUNT-BAUMAN-facebook.jpg
Eu penso que a atratividade desse novo tipo de amizade, o tipo de amizade de facebook, como eu a chamo, está exatamente aí: que é tão fácil de desconectar. É fácil conectar e fazer amigos, mas o maior atrativo é a facilidade de se desconectar.
Imagine que o que você tem não são amigos online, conexões online, compartilhamento online, mas conexões off-line, conexões reais, frente a frente, corpo a corpo, olho no olho. Assim, romper relações é sempre um evento muito traumático, você tem que encontrar desculpas, tem que se explicar, tem que mentir com frequência, e, mesmo assim, você não se sente seguro, porque seu parceiro diz que você não têm direitos, que você é sujo etc., é difícil.
Na internet é tão fácil, você só pressiona "delete" e pronto, em vez de 500 amigos, você terá 499, mas isso será apenas temporário, porque amanhã você terá outros 500, e isso mina os laços humanos."

Fonte: Obvious



Fernanda Pimentel é psicanalista, tem mestrado em Psicanálise pela UERJ  e pesquisa sobre a psicanálise na atualidade e a clínica contemporânea.
 Atende em consultório em Niterói e Copacabana.

10 de dezembro de 2013

Rara entrevista de Clarice Lispector, para comemorar a data em que a autora completaria 93 anos

Hoje Clarice Lispector completaria 93 anos! 
Para comemorar a data, vale a pena conferir a entrevista concedida em 1977 ao repórter Júlio Lerner, da TV Cultura. É curioso lembrar que depois de gravada, Clarice pediu que a entrevista só fosse divulgada após sua morte. Ela foi ao ar dez meses depois, quando Clarice morreu em dezembro de 1977, aos 57 anos...


Clarice Lispector, local desconhecido, 1975, época do lançamento 
de seu livro "Visão do Esplendor", uma coletânea de textos sobre Brasília

"De minha sala até o saguão dos estúdios tenho que percorrer cerca de 150 metros. Estou tão aturdido com a possibilidade de entrevistá-la que mal consigo me organizar naquela curta caminhada. Talvez falar sobre “A Paixão Segundo G.H”… Ou quem sabe sobre “A Maçã no Escuro” e “Perto do Coração Selvagem”… Vou recordando o que Clarice escreveu. Será que li tudo? Em apenas cinco minutos consegui um estúdio para entrevistá-la. São quatro e quinze da tarde e disponho de apenas meia hora. Às cinco entra ao vivo o programa infantil e quinze minutos antes terei de desocupar o estúdio. Estou correndo e antes mesmo de vê-la a pressão do tempo começa a me massacrar. Não terei condições de preparar nada antes, nem mesmo conversar um pouco. Não poderei sequer tentar criar um clima adequado para a entrevista. Eu odeio a TV brasileira! Só meia hora para ouvir Clarice. O pessoal da técnica foi novamente generoso e se empenhou para conseguir essa brecha. Olho o relógio, não consigo me organizar, estou correndo, olho novamente o relógio. Estou desconcertado, atinjo o saguão dos estúdios e a vejo ali, dez metros adiante, Clarice de pé ao lado de uma amiga, perdida no meio do vaivém dos cenários desmontados, de diversos equipamentos e de técnicos que falam alto, no meio de um grande alvoroço..."


Fonte: Revista Bula



Fernanda Pimentel é psicanalista, tem mestrado em Pesquisa e Clínica pela UERJ e escreve este blog nas horas vagas.
 Atende em consultório em Niterói e Copacabana.

21 de setembro de 2012

A prevalência das mulheres nas redes sociais: “democratização” da representação feminina


Facebook, o novo espelho de Narciso
As mulheres estão se tornando maioria nas redes interativas; a vaidade e a necessidade de afirmação da identidade podem explicar o interesse feminino por esse recurso tecnológico


As mulheres gastam mais do que o dobro do tempo dos homens no Facebook: três horas por dia, enquanto eles gastam uma hora, em média. Entrar na rede social é a primeira ação diária de muitas delas, antes mesmo de irem ao banheiro ou escovarem os dentes. Uma atividade cumprida como um ritual todos os dias – e noites. Em um estudo, 21% admitiram que se levantam durante a noite para verificar se receberam mensagens. Dependência? Cerca de 40% delas já se declaram, sim, dependentes da rede. Elas são a maioria não só no Facebook (onde representam 57% dos usuários); também têm mais contas do que os homens em 84% dos 19 principais sites de relacionamentos.


Essas são algumas revelações da pesquisa feita pelas empresas Oxygen Media e Lightspeed Research, que analisou os hábitos on-line de 1.605 adultos ao longo de 2010. Mas cabe ainda perguntar: que motivos levam as mulheres a ficar tanto tempo na frente do computador? Vaidade? Necessidade de reconhecimento? Seria esse fenômeno uma nova forma de autoafirmação? Uma maneira de desenvolver sua individualidade aliada ao reconhecimento do outro? Será essa uma nova forma de buscar sociabilização? 


Mais do que procurar uma resposta fácil, cabe, antes, compreender por que a auto-representação é mais importante para as mulheres que para os homens. Historicamente as representações femininas foram fabricadas por motivações sociais diversas: míticas, religiosas, políticas, patriarcais, estéticas, sexuais e econômicas. E, há mais de vinte séculos, essa fabricação esteve sob o poder masculino. As mulheres não produziam suas próprias imagens, eram retratadas. 


Em obras de arte célebres vemos inúmeras Vênus adormecidas, (como as de Giorgione, 1509; Ticiano, 1538 e Manet, 1863); Madonas castas (nas imagens religiosas das catedrais católicas como as pintadas por Giotto, no século13, e Botticelli, no 15) ou mulheres burguesas no espaço doméstico cuidando da cozinha e da educação dos filhos (como as pintadas por Rapin e Backer no século 19). Eram cenas “pedagógicas”, que ensinavam o valor da maternidade, da castidade, da beleza e da passividade.


O pano de fundo dessas produções artísticas era uma tentativa masculina de “gerenciar” o imaginário feminino, transmitindo sugestões sobre a conduta social desejada até uma estética sexual e familiar. Como enfatiza a historiadora Anna Higonnet “os arquétipos femininos eram muito mais do que o reflexo dos ideais de beleza; eles constituíam modelos de comportamento”. Sua capacidade de persuasão era ativada pelo contexto cultural. Um exemplo pontual, mas significativo, pode ilustrar essa hipótese. O nu é quase sinônimo do “nu feminino”. Do Império Romano, passando pelo Renascimento, pela Modernidade e até os dias de hoje, o corpo da mulher reflete os ideais estéticos predominantes.

vênus adormecida, óleo sobre tela, giorgione, 1508-10, galeria dos grandes mestres da pintura
A estética feminina foi estabelecida, durante muitos séculos, pelo olhar masculino; as obras de arte tinham cunho “pedagógico”, com a intenção de ensinar como as mulheres deveriam ser

A historiadora francesa Michelle Perrot chegou a afirmar que “a mulher é, antes de tudo, uma imagem”. Aqui sua ênfase é irônica. Refere-se a uma forma de retratar que associava os cuidados com o corpo, os adornos, as vestimentas e a beleza em geral à atividade, ou melhor, à ociosidade tipicamente feminina”, enquanto os homens deveriam se ocupar de tarefas consideradas sérias: política, economia e trabalho.


Quando a era moderna pareceu, enfim, trazer a emancipação da mulher, a conquista revelou-se contraditória. Estar na moda, ser magra, bem-sucedida e boa mãe tornou-se uma exigência. Com a ajuda do photoshop, top models, estrelas de televisão e cantoras exibem nos meios de comunicação o êxito que conquistaram em todos os aspectos do sucesso – o que, na prática, nem sempre é verdade. Elas, em geral, são tão “irreais” quanto a Vênus grega. A verdade é que a mídia veicula uma série de estereótipos sobre como agir que se tornam um peso para a mulher. Não devemos nos esquecer de que quem assume o comando é o mercado interessado em vender roupas, revistas e produtos destinados ao público feminino – e não propriamente a mulher. Assim, mesmo no século 20, quando pareciam ganhar “autonomia”, elas passaram a ser atormentadas por padrões estabelecidos por outra base imaginária: a do consumo.


O que muda no século 21 para as mulheres que utilizam as redes sociais? Quanto à importância da imagem, nada. Ela -continua a ter papel central para a identidade social feminina, confundindo-se com ela. Por outro lado, vivemos, sim, uma revolução: pela primeira vez a mulher passa a se autorrepresentar, a produzir representações de si publicamente. Essa produção não está mais sob o domínio exclusivo dos homens, nem restrita a um grupo de mulheres como as artistas (atrizes, fotógrafas, cineastas, pintoras, escultoras etc.) ou as modelos. As mulheres comuns tornam-se protagonistas de sua vida. Chegam a dispensar a ajuda de outra pessoa para tirar a própria foto: estendem o braço e miram em sua própria direção. Algumas marcas de câmeras fotográficas desenvolveram inclusive um visor frontal para que a pessoa possa ajustar o foco caso use o equipamento para se fotografar.


A mulher “hipermoderna” reivindica algo novo: o seu protagonismo público e sua “autenticidade”. O que se soma, agora, à revolução tecnológica da sociedade capitalista. Com acesso facilitado a câmeras digitais, a telefones móveis que dispõem desse equipamento e à rede, além da existência de uma plataforma que dá suporte ao armazenamento e oferece possibilidades ao usuário para compartilhar essas imagens pela internet, a mulher passa a se autofotografar nas mais diversas ocasiões, de situações corriqueiras a viagens. Nas palavras do filósofo Gilles Lipovetsky: “O retrato do indivíduo hipermoderno não é construído sob uma visão excepcional. Ele afirma um estilo de vida cada vez mais comum, ‘com a compulsão de comunicação e conexão’, mas também como marketing em de si, cada um lutando para ganhar novos ‘amigos’ para destacar seu ‘perfil’ por meio de seus gostos, fotos e viagens. Uma espécie de autoestética, um espelho de Narciso na nova tela global”.

Nesse novo ambiente o artificialismo e a mistificação da imagem passam a ser “out”. Deusas etéreas cedem espaço a mulheres que querem ser vistas como “reais”: escovam os dentes, fazem caretas para a câmera, dirigem seu carro e não se importam em ser fotografadas em momentos que antes estariam à margem da esfera pública. Tanto que 42% das usuárias do Facebook admitem a publicação de fotos em que estejam embriagadas e 79% delas não veem problemas em expor fotos em que apareçam beijando outra pessoa. A regra é: quanto mais caseiro, “mais natural”; melhor. O que não significa que essa imagem seja, efetivamente, “natural”, mas que há agora um “gerenciamento da espontaneidade”.


O imperativo da representação feminina nas redes sociais é: “seja espontâneo”. Uma norma paradoxal, assim como a afirmação “seja desobediente, é uma ordem”, escreve o sociólogo Régis Debray. Ele faz uma interessante leitura do que poderíamos chamar de “ditadura da espontaneidade”. Segundo o autor, abandonamos o culto da morte, vivido pelas sociedades tradicionais e religiosas, para vivermos o “culto da vida pela vida” – uma espécie de “divinização do que é vivo” que se apoia no eterno presente e não mais em uma crença no além.


Vemos emergir mulheres que cultuam o que veem no espelho e postam, “religiosamente”, novas imagens de seu cotidiano – sem que tal culto resulte em algum tipo de censura externa ou de autocensura moral. Em outro contexto, como durante o período em que a religião católica era dominante, esse “culto de si
 e ao corpo seria considerado um dos sete pecados: a vaidade. Esse imaginário, aliás, é muito bem representado por um quadro do séc. 15, de Hieronymus Bosch, no qual o demônio segura um espelho para que uma jovem se penteie.


Hoje o novo espelho global não é marcado pela vigilância moral. Ao contrário, há um contínuo incentivo da cultura para que as mulheres “se valorizem”, busquem sua singularidade e não se baseiem mais em modelos inalcançáveis (como as top models e outras famosas). E para que percebam em si mesmas uma possibilidade legítima e singular de ser no mundo.
A própria familiaridade e aproximação da mulher com o universo da produção de auto-representações pode levá-la a questioná-las. As mulheres já estão, como escreve Lipovetsky em seu livro A tela global, “cultivadas” pela mídia. Educadas em sua gramática, sabem que o photoshop, a produção e a edição das imagens criam uma mulher irreal e passam a ver essas representações “entre aspas”, distanciando-se criticamente delas. Elas aprendem com recursos autoexplicativos a modelar sua iconografia, a alterá-la, brincar com ela ou melhorá-la (possibilidades, antes, restritas aos profissionais).


Mas a consagração do “culto de si” não significou um isolamento da mulher. Os álbuns publicados nas redes sociais conciliam, contra todas as expectativas, o individualismo e as trocas. Um se alimenta do outro. Há um ciclo: exponho minha individualidade, acompanho a do outro e ele a minha e, assim, somos incentivados a produzir e expor, cada vez mais, as nossas imagens. Trata-se do nascimento de uma “identidade coletiva”, em que a individualidade não elimina a interação, mas é seu motor. Nesse sentido, a identidade coletiva não é produto apenas de uma adesão grupal e sim uma forma de negociação de posições subjetivas – esse é o paradoxo identitário a ser considerado.


Fotos pessoais e “amigos” virtuais (ou não) ditam o ritmo desse espaço interativo. Quanto mais caseiro, mais cotidiano, mais espontâneo, maior o número de relações entre as pessoas, que passam a valorizar a autenticidade e a vida de quem é “próximo”, “real”. Há, na base desse fenômeno, uma democratização dos desejos de expressão individual na medida em que as mulheres buscam conquistar espaços de autonomia pessoal – que traduzem a necessidade de escapar à simples condição de consumidoras daquilo que outros produzem. Elas querem colocar seu rosto no mundo. Aparecer ou não na “tela global” passa a ser uma questão de existência. Por essa razão, ter visibilidade e oferecer sua identidade publicamente é conferir importância à própria existência. O que é, também, uma forma de poder. Nesse ponto a mídia – como campo de visibilidade – passa a ter papel central para entendermos a luta simbólica pelo reconhecimento.


No entanto, essa “democratização” da auto-representação feminina não deve ser tomada como sinônimo do fim da competição estética e ética entre as mulheres. O que tudo indica, o que presenciamos não é a instauração de uma igualdade, mas a ampliação do número de mulheres na disputa por visibilidade e poder. Amplia-se, assim, a arena para buscar um poder que não está dado de antemão, mas que deve ser conquistado e manejado pela apresentação e representação de suas singularidades, de suas diferenças. Um agir que se manifesta na criação, no controle e no poder simbólico de sua própria imagem no espaço público, que só se realiza com o reconhecimento do outro nas interações sociais, associativas e na ampliação dos círculos de reconhecimento que estão dentro e fora do espaço de produção da imagem.

 

17 de setembro de 2012

Documentário "Um encontro com Lacan" (Rendez Vous Chez Lacan - 2011)

Já está disponível no YouTube o documentário Rendez Vous Chez Lacan, (2011), dirigido por Gérard Miller.
A obra conta com a participação dos psicanalistas Eric Laurent, Jacques-Alain Miller e Judith Miller, entre outros, além de depoimentos de antigos analisandos.

Sinopse: 
"Nascido com o século XX, em uma família católica e de classe média, Jacques Lacan se formou como Psiquiatra. Teve a amizade de Picasso, Levi-Strauss e Sartre. Destacou-se no exercício prático e teórico da psicanálise e gerou polêmica entre os colegas de profissão. 
Com a ajuda de seu irmão Jacques-Alain, um dos maiores pupilos de Lacan, Gérard Miller tenta destrinchar a personalidade deste que até hoje é considerado um dos mais instigantes e controversos pensadores da história da psicanálise."








28 de agosto de 2012

Jornadas Clínicas da EBP - Rio: Horizontes do Feminino na Psicanálise.


 

A escuta freudiana revelou a importância psíquica da diferença sexual anatômica.
Não existem dois sexos complementares, pois no inconsciente só há um sexo:
o masculino. O feminino não encontra uma representação significante e a diferença
morfológica não é suficiente para localizar o Outro sexo, de tal modo que para os
psicanalistas a questão sobre o sexo não é a questão do gênero. O desejo
da mulher está em jogo na relação com o parceiro sexual, seja homem ou
mulher. A surpreendente expressão de Lacan “A mulher não existe” denota
o impossível da proporção entre os sexos. O feminino é não-todo regulado
pela lógica da castração edipiana que permite a assunção do próprio sexo.
Quais são as manifestações desse “não-todo” hoje?
Há uma dimensão do feminino que vem se tornando pregnante na nossa
cultura e que é preciso levar em conta na direção dos tratamentos. Isso diz
respeito, por um lado, a uma tendência à infinitização do gozo em alguns
sintomas contemporâneos que refletem uma patologia da ordem da adição.
Por outro lado, há um aspecto do feminino na atualidade que se verifica na
criatividade das soluções singulares, que não decorrem de uma norma para
todos, para lidar com o real.

As XXI Jornadas clínicas da EBP-Rio, em parceria com o ICP-RJ, apresentarão
as contribuições dos psicanalistas de nossa comunidade em relação aos eixos
 temáticos propostos.


Local
Centro de Convenções Bolsa do Rio
Praça XV, N. 20, Centro, Rio de Janeiro

Convidada internacional: Silvia Salman
Coordenação Geral
Angela C. Bernardes e Rodrigo Lyra Carvalho
Comissão Científica
Cristina Duba (Coordenadora) | Ana Lucia Lutterbach Holck | Angélica Bastos
Glória Maron | Ruth Cohen
Comissão Organizadora
Adriana Lipiani | Angélica Tironi (coordenação de infraestrutura)
Lydia Vasconcellos | Magda Delecave | Monica Rolo | Roberta Assunção
Rodrigo Fraga | Ronaldo Fabião (coordenação de tesouraria)
Sandra Landim | Sarita Gelbert (coordenação de comunicação)
Vanda Assumpção Almeida (coordenação de comunicação)
Vânia Gomes (coordenação de infraestrutura)


14 de junho de 2012

Pink Floyd, loucura, Lacan & Rock n' Roll

Texto de Christian Ingo Lenz Dunker (psicanalista, professor do Instituto de Psicologia da USP) sobre a loucura na produção artistica marcada pela ruptura, delírio, descompasso e estranhamento radical. Exatamente o que experimentamos ao escutar Pink Floyd.

Eu queria que você estivesse aqui 

Pink Floyd está para a música como Joyce está para a literatura: suas obras são marcadas por rupturas de pensamento e uma espécie de “loucura produtiva”

Quando se pensa em rock a primeira associação costuma ser com ruptura, rebeldia e contracultura. Desde seu início esse tipo de música tenta pensar o futuro antes que ele chegue. Pink Floyd é uma banda anômala em seu gênero, uma experiência musical sobre a impossibilidade de esquecer e sobre o custo devastador que um coletivo deve pagar para continuar tornando-se o que é. Pink Floyd é uma banda em torno de um personagem ausente e ao mesmo tempo onipresente. Quatro alunos de arquitetura na Londres do final dos anos 1960 são acolhidos por um intelectual de esquerda decidido a dar expressão ao comunitarismo emergente. Dos quatro, foi Syd Barrett quem escreveu todas as letras dos dois primeiros álbuns. Insistindo na importância da equivalência entre força dramatúrgica e dimensão musical, introduzindo máquinas de retorno e ressonância nos shows e valorizando a experiência da luz e da iluminação. Não é uma coincidência que The wall – O filme tenha sido a única produção relevante na passagem do rock para o cinema.



Depois de um ano de estrada Syd Barrett enlouqueceu. Olhar perdido, impossibilidade de reconhecer seus colegas, sentimento de perseguição: o alheamento tão comum em outros astros que permanecem “produzindo rock” no interior de sua loucura deu lugar a notas fora de lugar dedilhadas durante os shows e desafinamentos. Permanecia sentado no palco durante toda a apresentação. Muitas bandas se viram privadas de seu gênio fundador, mas mesmo com a gradual entrada de Dave Gilmour o lugar de Syd jamais pôde ser esquecido. O “verdadeiro” Pink Floyd não está nem na formação original, nem nas sucessivas tentativas de se tornar independente, ora sob liderança de Roger Waters, ora sob domínio de David Gilmour – mas na impossibilidade de escapar do “I wish you were here” (Eu queria que você estivesse aqui).



Para um leitor de Jacques Lacan é fácil perceber que Pink Floyd está para a música como Joyce está para a literatura. Nos dois casos a produção artística é marcada por flutuação narrativa, rupturas de pensamento, descompasso entre música e letra, neologismos, experiências de radical estranhamento em relação ao corpo, com à linguagem e o outro. Aparecem epifanias, sentimentos de irrealidade, divergência entre saber e crença, sem falar nas alucinações e nos delírios. A psicose é “reapropriada” por uma forma de loucura produtiva.



Quando Barrett trouxe sua última composição Have you got it yet? (Já pegou?), cada vez que o grupo tentava executá-la Syd alterava a progressão de acordes e o ritmo, de tal forma que a própria performance definia-se por esta exclusão, deixando Roger Waters, Nick Mason e Richard Wright com a impressão de que não tinham “pego” a música. Have you got it yet? é uma dessas interpelações alusivas, tão frequentemente presentes na psicose, que nos fazem perguntar: “Mas pegar o que mesmo?”. E diante de nossa estúpida pergunta verificar que “ainda não pegamos”. É assim que Barrett está fora do discurso – mas não fora da linguagem. É assim que ele pode fazer parte de Pink Floyd como experiência de inclusão social da psicose, registro vivo de que há diferenças que não valem a pena serem esquecidas.



E aqui não se trata apenas da perda, da culpa e do luto pela incapacidade de mantê-lo como membro funcional de um grupo de rock, mas da pergunta radical que diz respeito ao que devemos fazer com as questões colocadas pelo que se inscreve em uma época, em uma cultura, em uma história, em uma banda. Pink Floyd mostra, tal como o caso de Antígona e das tragédias em geral, que há algo de universal nesta experiência particular de loucura. Algo que nossas leis e nossa forma de vida ainda não conseguem reconhecer, mas que acima de tudo precisa ser posto em toda extensão de sua contraditoriedade, criando o limite da liberdade, sem a qual ficamos mais pobres.

Texto publicado na Mente&Cérebro