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11 de dezembro de 2008

A psicopatologia na pós-modernidade - As alquimias no mal-estar da atualidade (Parte 2 de 4)

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III. O paradigma das neurociências

Assim, uma terceira característica da psicopatologia atual é a sua pretensão em ter um fundamento biológico. A biologia é o fundamento incontestável da psicopatologia na atualidade. As neurociências fornecem os instrumentos teóricos que orientam a construção da explicação psiquiátrica. Por este viés, pois, a psicopatologia pretende ter encontrado finalmente a sua cientificidade, de fato e de direito. Além disso, a nova psicopatologia acredita ter se encontrado enfim com a sua vocação médica, num processo iniciado no início do século XIX, à medida que se fundaria no discurso biológico.
Como se sabe, a psiquiatria sempre se encontrou numa posição incômoda no campo da medicina, pois pretendendo ser uma especialidade médica nunca conseguiu se fundamentar com os saberes advindos da racionalidade médica. O discurso do anátomo-clínica,1 base epistemológica da dita medicina científica, não encontrava legitimidade no campo da psiquiatria.2 A psiquiatria buscava as causas físicas dos distúrbios mentais e apenas encontrava, desde Pinel e Esquirol, as causas morais. Em contrapartida, o tratamento moral era a base da terapêutica psiquiátrica – em níveis individual e institucional –, que se afastava então de maneira decisiva dos cânones do saber médico.3 Enfim, a psiquiatria era uma falsa medicina, uma pseudo-medicina, já que não se fundamentava pelos saberes que fundavam a medicina.
A psicofarmacologia possibilitou, desde os anos cinqüenta, a construção de uma outra identidade para a psiquiatria, que pôde se aproximar, então, dos cânones da medicina. O desenvolvimento recente das neurociências possibilitou a reconstrução da medicina mental, aproximando esta, finalmente, da medicina somática. Completou-se, com isso, o sonho do saber psiquiátrico de se trans-formar não apenas numa ciência, mas numa especialidade médica.
Pode-se depreender disso o que existe de antigo e de novo na psicopatologia da atualidade, como afirmei inicialmente. Com efeito, ao se fundamentar no discurso das neurociências, a psicopatologia consegue se realizar como uma modalidade de saber médico, se encontrando com a sua antiga pretensão originária de pertencer ao campo da medicina. Nada mais antigo, pois, que a novidade apresentada pela psicopatologia contemporânea, que encontra finalmente as suas origens e seus mitos fundadores, legitimando a sua identidade médica.
Ao se fundamentar nos discursos das neurociências a psicopatologia atual pôde questionar a causalidade moral das perturbações do espírito, para nos valermos da linguagem do discurso psiquiátrico originário,4 onde se opunham as causas morais e físicas das perturbações mentais. Isso porque as neurociências têm a pretensão de fundamentar as funções do espírito, de maneira autônoma e independente. Vale dizer, as neurociências pretendem construir uma leitura do psiquismo, de base inteiramente biológica. Com isso, o funcionamento psíquico seria redutível ao funcionamento cerebral, sendo este representado numa linguagem bioquímica. Enfim, a economia bioquímica dos neurotransmissores poderia explicar as particularidades do psiquismo e da subjetividade.
Esta transformação epistemológica produziu mudanças terapêuticas imediatas. A psicofarmacologia se transformou no referencial fundamental da terapêutica psiquiátrica, dado que as neurociências pretenderam fundar uma leitura do psiquismo. Com isso, a medicação psicofarmacológica pretende ser a modalidade essencial da intervenção psiquiátrica. Em conseqüência disso, a psicoterapia tende a ser eliminada do dispositivo psiquiátrico, transformando-se num instrumento totalmente secundário face à intervenção psicofarmacológica. A psicoterapia passa a ser representada como uma peça de museu, sendo colocada como periférica no dispositivo psiquiátrico da atualidade.
Com este deslocamento das psicoterapias para a periferia da intervenção psiquiátrica se constituiu uma inversão significativa entre a psicanálise e a psiquiatria, como veremos agora.
IV. Inversões
Assim, pela pretensão realizada de ter se transformado numa "ciência" e numa especialidade médica "respeitável", a psiquiatria não quer ter mais qualquer proximidade com a psicanálise. Seria preciso afastar a psicanálise do campo psiquiátrico, não misturar mais, em qualquer hipótese, aquela com a psicopatologia, pois isso acarretaria o risco de afetar a identidade médica e "científica" da psiquiatria.
Aconteceu aqui algo espantoso, da perspectiva histórica. Diria mesmo surpreendente. E isso de um duplo ponto de vista, a serem considerados de maneira esquemática. Desta forma, poderemos aquilatar a inversão a que me referi acima.
Devemos evocar aqui, inicialmente, que até os anos 70 a psiquiatria era fundada no discurso psicanalítico. A psicanálise era o saber de referência fundamental da psiquiatria, não obstante o desenvolvimento progressivo da psicofarmacologia desde os anos 50. É evidente que já se constituíra então a oposição entre dois grandes paradigmas do campo da psicopatologia: o primeiro centrado na psicanálise e, o segundo, na psicofarmacologia. Contudo, o discurso psicanalítico ocupava uma posição estratégica no campo psiquiátrico, detendo a hegemonia no discurso psicopatológico.
Com isso a psiquiatria era essencialmente psicanalítica, regulada que era pelos cânones psicanalíticos. Esta presença podia ser verificada tanto nas tradições francesa, quanto na inglesa e na norte-americana. Contudo, nos anos 70 tudo isso se transformou. O paradigma biológico da psiquiatria se impôs, reconstituindo o discurso psicopatológico em novas bases. Conseqüentemente, a psicanálise perdeu o lugar de hegemonia no campo da psiquiatria, ficando, pois, numa posição secundária e subalterna.
Este processo histórico de reconstrução do campo psicopatológico já era evidente nos Estados Unidos no início dos anos 70, num processo irreversível iniciado nos anos 60.5 Na França, este processo de autonomização da psiquiatria face à psicanálise iniciou-se nos anos 80 e está em curso. No Brasil e na América Latina pode-se reconhecer o mesmo rumo nas novas relações entre a psiquiatria e a psicanálise.
Porém, todo este processo apresenta ainda uma outra face, que é tão fundamental quanto a primeira. Com efeito, a psicanálise não perdeu apenas a hegemonia no campo da psicopatologia, sendo substituída pelo paradigma biológico, mas, além disso, tem mostrado um interesse crescente pelos modelos biológicos das neurociências. Vale dizer, a psicanálise passa a incorporar no seu discurso os referenciais teóricos do discurso psiquiátrico. Tudo isso des-caracteriza, evidentemente, o discurso psicanalítico.
Pode-se perceber isso não apenas no registro das novas publicações em psicanálise, como também nas linhas de pesquisa de laboratórios avançados de psicanálise na universidade. Isso se passa não apenas na Europa e nos Estados Unidos, como também na América Latina. A medicalização da psicanálise atingiu um outro limite, absolutamente novo, do que já conhecíamos de outros momentos da história do movimento psicanalítico.
Nesta inversão de lugares e de posições estratégicas, a psicanálise fica numa posição agora secundária no campo da psicopatologia. Além disso, o discurso psicanalítico começa a fazer bricolagens com os discursos das neurociências e do cognitivismo, silenciando a sua especificidade. A inversão, enfim, é total, no horizonte histórico que estamos inscritos, entre a psicanálise e a psiquiatria.

Joel Birman
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Para ler a parte 1 clique aqui.

Entrevista: Roudinesco - Parte 2

Mais uma parte da entrevista de Elisabeth Roudinesco no Saia Justa



Veja a parte 1 aqui.

10 de dezembro de 2008

Cinema e Psicanálise

O que há nessa cidade que permite um paralelo com a contemporaneidade?
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Vi Dogville (2003), filme do diretor Lars Von Trier, há alguns meses atrás. Confesso que achei cansativo, além de um incômodo que senti o filme inteiro. Mas esse incômodo, causado propositalmente pelas cenas duras e cenários crus, minimalistas, não deixou o filme sair da minha cabeça.
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Movida por algumas questões que ficaram abertas, fui pesquisar na net algo que pudesse falar mais dessa obra cheia de nuances e simbolismos. Assim, encontrei um artigo da psicanalista Heloisa Caldas, apresentado na jornada da EBP Seção Rio sobre A política do medo e o dizer do psicanalista que eu achei nota 10.

Que cidade é essa? – Dogville
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Minha contribuição para as jornadas da Seção Rio sobre A política do medo e o dizer do psicanalista gira em torno de Dogville, filme ambientado num vilarejo norte-americano nos anos 30 da recessão.
O cenário – esquemático, teatral, no qual as paredes e divisões são linhas pintadas no chão – causa impacto. A cidade tem o aspecto de um projeto de construção. Os objetos são escassos, o mínimo necessário para a montagem de uma cena; apenas no final surge na tela uma série de fotos de cidades, que dão enfim, ao cenário de Dogville, um corpo. Elas poderiam ter sido tiradas de inúmeras cidades do mundo. O arrojado cineasta Lars Von Trier conclui assim seu enredo, deixando-nos perplexos diante da questão: “Que cidade é essa?”
Como situar Dogville no tempo e no espaço é a questão proposta pela escolha do cenário minimalista e da época recuada em relação à nossa. Somos levados, então, a pensar qual a relação de um lugar assim com os que habitamos hoje. O que há nessa cidade que permite um paralelo com a contemporaneidade?
Assim como Tom, um dos personagens principais, Von Trier usa seu filme para ilustrar. Porém, ao contrário de Tom, seu exemplo não se propõe educativo. Tom, misto de filósofo, pastor e artista, quer ilustrar para sua comunidade, com exemplos práticos, aquilo que pregava: a aceitação. Enquanto Tom quer ensinar a aceitar, Von Trier é mais cético, demonstrando ao longo do filme que não há dose nem medida para a aceitação. Estamos regidos pela lógica do desmesurado, do absurdo, do infinito e do cínico.
Dessa forma, é colocada no filme a questão que perpassa a política mundial, motivo de tantas discussões, acordos, desacordos, atentados: a tolerância. Questão antiga, pois está no cerne da construção da identidade na qual o diferente constitui o negativo. É na esteira dessa operação pela qual a civilização se afirmou como oposto à barbárie que, ao longo da história, vamos encontrar as determinações do que é ou não bárbaro, segundo a ótica de quem nomeia e, conseqüentemente, exclui. Foi sobre esse pano de fundo que Freud pôde assinalar que a linha divisória, longe de se restringir às fronteiras entre países, povos ou costumes, é riscada sobre o corpo do próprio sujeito do inconsciente. Para fazer frente ao estranho mal de si mesmo, a defesa mais comum é localizá-lo e tratá-lo como estando fora. E de fato ele está, se com Lacan situamos o inconsciente como Outro, alteridade absoluta de um corpo que se desconhece como gozo.
A princípio os personagens de Dogville parecem civilizados. Pouco a pouco, porém, vários aspectos permitem chamá-los de bárbaros: a falta de bons modos, de vergonha, de compromisso com as leis, de cumprimento da palavra.
Não há respeito pelo saber, o bem ou o belo. Tudo é valorizado apenas por seu utilitarismo. Não há limite racional diante da luta pela sobrevivência e perde-se o sentimento humanitário. Os valores da civilização tradicional não mais predominam.


Essa não é a novidade. O interessante é que, se antes o bárbaro era identificado como o estranho à cidade, em contraste com o urbano de trato civilizado, hoje é a própria cidade que se apresenta como cenário da barbaridade. E nisso, Dogville, que tinha tudo para ser uma cidade pacata, de habitantes em bons termos de vizinhança, desponta como a selva das cidades em que vivemos e das cidades dentro das cidades em que nos agrupamos.
Tudo começa quando Grace chega. Não sabemos que problemas a comunidade tinha antes. O clima é de tédio, monotonia, hostilidade surda, defesa acirrada de cada um na cidadela de seu sintoma social. A cidade parece mergulhada em depressão, assim como se chamaram aqueles anos. Grace é, para Tom, o exemplo que ele esperava para ilustrar o que pregava: um “rearmamento moral”, uma espécie de re-educação. Tom busca um limite, uma boa dosagem de modus vivendi. Ele pretende organizar os contratos. Busca uma bússola que guie os habitantes da cidade e, com isso, seu próprio desejo.
Grace é a novidade que chega fugindo dos mafiosos. Para ela, a cidade é a única alternativa diante de um beco sem saída: ou voltava e encarava os mafiosos, ou se arriscava na travessia das montanhas de escarpas e abismos, ou seja, ou a cidade ou a morte. Um cão é o primeiro que a ameaça quando ela, faminta, tenta lhe roubar o osso, e dá o alerta de sua presença.
Os moradores da cidade, tipos humanos tão amáveis para com a estranha que quer saber o que eles precisam, que lhes oferece seu trabalho em troca de acolhimento, provocados pela demanda de gozo que essa mesma oferta dispara, transformam, pouco tempo depois, essa amabilidade em exploração. No filme, sem nenhuma grandeza, tudo tende ao infinito e à repetição, ao infinito infinitesimal como a cronologia dos períodos dos serviços que Grace prestava aos habitantes da vila. Ela trabalhava mais e mais e, quando não havia mais tempo possível, mudaram o regime de rodízio, dividiram o período dedicado a cada casa em duas partes, para que se mudasse a aparência e se pensasse que ela estava dando o dobro de sua atenção.
A conta é tão ambígua quanto as que regem o paradoxo do trabalho atual: trabalha-se mais e mais e, inexoravelmente, se ganha cada vez menos. Se não for em valores absolutos sempre o é em valores relativos, pois o compromisso com o consumo está na raiz do consumidor: quanto mais ganha, mais gasta. Deslumbrante na pele da atriz Nicole Kidman, Grace é em si a questão sobre o bem e o mal. Ela representa com sua beleza e bondade inquebrantáveis a barreira ao mal que Freud comenta em “Mal-estar na cultura”.
Só que, para a cultura da cidade atual, o bem e o belo parecem fracassar na sua função de barreira. Não há mais ideais e, portanto, limite para as exigências, os abusos e os caprichos. Até a submissão de Grace parece não ter ponto de detenção.
Quando finalmente ela decide fugir é, mais uma vez, aprisionada na malha infernal da cidade. Sua beleza só aumenta o impacto do sofrimento. Foi esse o mesmo impacto que causou a foto difundida pelo mundo inteiro da bela mãe russa diante do corpo de sua filha, no recente massacre à escola de Beslam. Sua beleza chocou pelo contraste com o horror da cena e em nada serviu para aliviar a feiúra desta. Pelo contrário, a beleza estava ali quase como que sublinhando a fragilidade da linha de demarcação ultrapassada.
Quando uma cena inconcebível e impossível de viver se torna real, deparamonos com a falência da função própria à fantasia: uma montagem obscena, uma fantasia de que isso possa ocorrer só aos outros, um pesadelo do qual se acorde apenas ofegante, algo a temer e a tratar de evitar.
Em Dogville também não há fronteiras que possam definir o Um e o Outro. Não há “em si” nem “estrangeiro”. Não há, conseqüentemente, aceitação possível.
O resultado é um enorme mal-estar que desce da tela para o coração do espectador. A princípio, a narrativa comove pelo calor humano com que Grace é recebida na cidade, tão bela e tão vítima da gangue de mafiosos. Ela seduz a todos e inunda o espectador de ternura com a ilustração da solidariedade. A identificação deles à condição de vítima dela é fácil.
Filha dissidente do chefe mafioso, ela fugia de seu pai, buscando outra versão deste. Ela queria o amor e o bem. Porém o cachorro, seu primeiro interlocutor, é o único que se manteve, na relação com ela, fiel a seus princípios: a posse do osso que mata a fome, a demarcação de seu pequeno e medido território.
Parece que seria simples para o cachorro: para ele o osso é seu alimento e ponto. O limite claro de seu gozo, do que lhe importa. Os demais, os humanos, não sabiam o que pedir, dar, exigir, infligir a Grace e, do amor e do bem, passam ao mal.


A exploração desmedida, os seguidos e instituídos estupros a que Grace é submetida, os estratagemas não-tolos de Tom que pretende encontrar formas de salvá-la e acaba por fazer apenas patetices, a vingança mesquinha dele, narciso ferido, ao denunciar Grace aos mafiosos porque ela lhe apontara sua fraqueza moral – o medo de ser tão humano. Tudo isso leva o espectador a se armar até os dentes e, é duro ter que admitir, contagiar-se com o gozo da vingança que Grace, divina e caprichosa, aplica aos moradores de Dogville.
Ela, enfim, se concilia com sua versão paterna e, autorizada por este, ordena aos capangas de seu pai o assassinato de todos. Só não matam o cachorro. É esse o aspecto patético do filme. O espectador, aprisionado em uma armadilha estética, pode muito bem achar que o massacre em Dogville foi a mais correta justiça e que a única exceção digna de sobrevivência, há pelo menos uma, é, de fato, o cachorro. Trata-se de uma armadilha, pois apenas inverte as posições: o mocinho torna-se bandido e vice-versa. A lógica continua a mesma.
De fato, o cachorro representa no filme uma espécie de exceção. Curiosa exceção para tempos regidos pelo imperativo de gozo. No entanto, é uma exceção diferente da que o pai de Grace ocupava: um mafioso todo poderoso.
Não se trata exatamente do contrário. Não é que o cachorro seja o ao menos um que não se corrompe pelo gozo. Ele tem um gozo que o concerne. Um gozo com limite, o que não parece existir no gozo daquelas pessoas, nem na bondade e amor infinitos que Grace pretendia. O gozo do cachorro é um gozo nomeado: um osso. Seu valor de nomeação é singular; não vale para todos.
Trata-se da circunscrição de um nome de gozo, criando-se com isso uma borda que evita o escape incessante do gozo não-todo.
Com essa história absurda, como tantas e reais, mais do que ilustrar a aceitação como impossível na lógica contemporânea, Von Trier nos provoca como sujeitos. Ele nos coloca, pouco a pouco, no ponto exato em que vacilamos na época, desculpem o bordão, do Outro que não existe. Época de dúvidas quanto aos valores, pois nada está livre de questionamento. Como tem dito Miller, falta bússola e nada mais parece poder funcionar como instrumento eficiente de justa medida. Daí a procura desenfreada pela normalização da estatística numa manifestação quase patética de apelo ao pai da lei – que haja algum, ainda que este seja o da curva normal.
Nas situações vividas no cotidiano, considerem as mais triviais, nenhuma consegue se desenrolar sem deixar a descoberto propósitos cínicos de gozo. Assim como a falta de paredes do cenário, vivemos num mundo em que a sordidez é visível e o melhor que podemos fazer, no mais das vezes, é fingir que não a vemos. Nossa resposta mais comum é o medo: vivemos com medo ou desejando um cachorro que queira só um osso. Mas os objetos que a contemporaneidade oferta para os humanos são tantos, como nomear apenas um osso?
Dogville é uma cidade que sofre dessa carência: para cada um falta uma nomeação que tenha valor único. É uma cidade contemporânea. Somos todos como Grace, humanos que fogem do passado, que buscam amedrontados uma saída para a engrenagem na qual nasceram e que se confrontam, desiludidos, com um beco sem saída. Há saída para os sujeitos da contemporaneidade? Quanto a isso, recorro a algumas considerações de Lypovetsky sobre o sujeito hipermoderno. Esse pensador, a quem J.-A. Miller fez referência recentemente, propõe que, desde a pós-modernidade, o sujeito se confronta com um paradoxo inerente à lógica do individualismo. Por um lado, ganhou mais autonomia, poder de escolha, responsabilidade; por outro, sua independência o torna mais livre para o desregramento e a irresponsabilidade. São duas faces do mesmo processo que, com seu acirramento, transformam os tempos de pós-modernos em hipermodernos. Tudo é submetido à lógica da urgência e elevado à potência superlativa do hiper – hiperconsumo, hipercapitalismo e hiperterrorismo. Duas dimensões se entrecruzam: o tempo do cada vez “mais rápido” e a intensidade regida pelo “ainda mais”. Coabitam assim, nos diz ele, duas tendências: “a que acelera os ritmos tende à desencarnação dos prazeres; a outra, ao contrário, leva à estetização dos gozos, à felicidade dos sentido, à busca da qualidade no agora”.
Desse paradoxo resulta que a emancipação não nos leva ao prazer sem nos colocar em risco. Do imperativo “goze sem limite” passamos ao “tenha medo das conseqüências”. A política do medo pode ser, assim, o efeito desse beco sem saída em que a hipermodernidade nos coloca: quanto mais se pode, mais isso nos custa. A disparidade de um sujeito confrontado com a pressa e o excesso. Nada o detém.
Que cidade é essa? – Dogville é aqui.

In Latusa digital – N° 10 – ano 1 – outubro de 2004.
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Veja o trailer do filme.
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Entrevista: Roudinesco - Parte 1

Tive a oportunidade de assistir a psicanalista e historiadora Elizabeth Roudinesco numa conferência este ano e passei a admirá-la mais ainda com sua clareza e facilidade de abordar assuntos tão complexos e difíceis.

Nessa entrevista para o Saia Justa, programa da GNT, ela mostra seu trabalho com o livro A Parte Obscura de Nós Mesmos (veja mais aqui) e dá um show falando sobre perversão.

Confira o video, que foi dividido em 4 partes.

8 de dezembro de 2008

A psicopatologia na pós-modernidade - As alquimias no mal-estar da atualidade (Parte 1 de 4)

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A intenção deste estudo é a de circunscrever a especificidade da psicopatologia na pós-modernidade. Para isso, procura-se demonstrar as relações daquela com a medicina e as neurociências, assim como a sua recusa da psicanálise. Além disso, pretende-se mostrar como o interesse atual da psiquiatria nas pesquisas sobre as depressões, as toxicomanias e a síndrome do pânico pode ser interpretado a partir dos modelos de subjetividade promovidos pelo mundo pós-moderno.

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I. A clínica na atualidade
Se examinarmos, até mesmo sem muito cuidado, as publicações recentes dos campos da psicopatologia e da psiquiatria clínica, pode-se reconhecer certas características bem particulares. Trata-se de uma velha e antiga psicopatologia, por um lado, e de uma nova psicopatologia, em contrapartida, pelo outro. É bom que se diga, logo no início, que as idéias de novidade e de antiguidade devem ser consideradas aqui de uma maneira totalmente contextual e conjuntural. Contudo, o fato de sublinhar a relevância do contexto e da conjuntura não se opõe ao relevo que se confere à idéia de história, isto é, a uma leitura histórica dos discursos psicopatológico e psiquiátrico. Ao contrário, as noções de contexto e de conjuntura apenas podem ser bem apreendidas quando inscritas na trama de uma temporalidade histórica, à medida que apenas assim a especificidade do discurso psicopatológico atual pode ser bem evidenciado. É necessário, pois, circunscrever devidamente este campo, porque a nitidez e a consistência da interpretação que será aqui avançada e proposta estão na dependência estrita desta delimitação teórica e histórica.
Vamos delinear aqui, então, este campo atual da psicopatologia, sublinhando aquilo que é valorizado no registro das publicações es-pecializadas, antes de mais nada. Estou me referindo às publicações advindas dos mundos anglo-saxônico e brasileiro, mas acredito, pela pesquisa que realizei, que o mesmo se possa dizer da psicopatologia francesa. Assim, o que se pode depreender da leitura, mesmo superficial, das revistas especializadas?
Antes de mais nada, as publicações são centradas em três enfermidades, ou síndromes, como vocês quiserem nomear tais perturbações do espírito, que dominam o espaço destas revistas e a preocupação de seus editores. Assim, o que os periódicos valorizam sempre, de maneira progressiva, são as depressões, as toxicomanias e a dita síndrome do pânico. Como se pode depreender, as duas primeiras foram anunciadas no plural e a última no singular, por razões que ainda comentaremos adiante. Independente disso, contudo, existe uma estranha preocupação dos pesquisadores com estas perturbações psíquicas, de uma maneira bastante específica.
É preciso recordar, no entanto, por uma questão de respeito e até reconhecimento pela verdade histórica, que o interesse da psiquiatria e da psicopatologia por estas perturbações do espírito é apenas recente e pontual. Este não é o caso, absolutamente. Trata-se de um processo histórico iniciado já há vinte anos mais ou menos. Desde o final dos anos 70 podemos registrar a emergência destas preocupações teóricas na literatura especializada. Além disso, não pretendo afirmar, bem-entendido, que o interesse particular da psicopatologia naquelas perturbações psíquicas, implique num silêncio absoluto em relação às outras perturbações do campo psiquiátrico. Não se trata disso. Porém, o investimento do discurso psicopatológico nestas outras perturbações é não apenas menor em relação ao passado psiquiátrico, mas também bem menor em relação às depressões, às toxicomanias e à síndrome do pânico. É no campo deste duplo relativismo que é preciso empreender o interesse da atual psicopatologia nestas três formas de perturbação do espírito, o que evidencia devidamente a dimensão histórica do dispositivo psiquiátrico em questão.
É preciso reconhecer, em seguida, que não é evidente o interesse revelado pela psicopatologia por tais perturbações mentais. Isso é óbvio, venhamos e convenhamos. Porém, isso precisa ser não apenas mostrado, mas também demonstrado. De qualquer maneira, é preciso dar lugar ao espanto que este interesse provoca, para que se possa interpretar a sua construção histórica. Com efeito, pode-se até mesmo afirmar que existe algo de estranho e de enigmático nestas escolhas da psicopatologia recente. Tudo isso é bastante espantoso, seguramente.
Por que afirmo isso?
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II. Enigmas?
Antes de mais nada, não se pode dizer que o interesse da psicopatologia por aquelas perturbações mentais seja uma decorrência direta do aumento destas, no sentido estritamente epidemiológico. Não se trata disso. Com efeito, não existe um aumento daquelas perturbações de uma maneira homogênea. Pode-se afirmar seguramente que existe, no Ocidente, um crescimento significativo das toxicomanias nas últimas décadas. Além disso, se constituíram novas modalidades de toxicomanias, anteriormente inexistentes. Isso é perfeitamente constatável pelas pesquisas epidemiológicas e pela experiência clínica. Em contrapartida, o mesmo não acontece nem com as depressões nem com a síndrome do pânico. Existe, pois, uma assimetria evidente, do estrito ponto de vista epidemiológico, entre as toxicomanias e as depressões e a síndrome do pânico, à medida que as primeiras aumentam de forma significativa e o mesmo não se pode dizer das demais.
A questão que se levanta aqui é, para mim, evidente. Por que as pesquisas psiquiátricas investem tanto nestas três modalidades clínicas de perturbações do espírito, quando apenas as toxicomanias revelam uma transformação significativa de suas taxas de incidência e de prevalência? Evidencia-se com isso, então, um registro inicial, para o meu espanto, com as escolhas empreendidas pelo discurso psicopatológico.
Em seguida, a outra questão que levanto aqui, sobre isso, é a da repetição em série destas três perturbações do espírito no discurso psicopatológico. Vale dizer, estas diferentes perturbações aparecem sempre como um conjunto, no contexto das publicações especializadas e no imaginário atual da psicopatologia. Isso também não é evidente, absolutamente, para mim. A indagação que coloco aqui, pois, concerne agora à relação imaginária que foi estabelecida entre estas três perturbações do espírito. Isso porque existe uma relação secreta e enigmática entre estas diferentes formas de perturbações psíquicas, que não é algo óbvio ao nível da descrição clínica e psicopatológica. Com efeito, a fenomenologia clínica destas perturbações não permite e não autoriza esta aproximação e esta seriação.
O que implica em afirmar que é preciso uma operação de deciframento para que se possa dar conta desta repetição em série e da configuração deste conjunto psicopatológico, pois nada as reúne do ponto de vista estritamente clínico. Deve-se perguntar agora, se não existiria uma articulação interna entre estas três formas de perturbação mental, algo a ser evidenciado, que não é absolutamente claro no registro das descrições clínicas e fenomenológica de seus sintomas. Procurar responder a isso, de uma forma ao mesmo tempo consistente e legítima, será a minha segunda questão neste artigo.
Porém, para que o deciframento deste enigma e da relação nebulosa entre estas perturbações do espírito possa se realizar, é preciso anunciar os traços epistemológicos do novo discurso psicopatológico. É o que farei em seguida.
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Joel Birman
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Quem foi Jacques Lacan?

Um trechinho da entrevista do psicanalista Jorge Forbes no programa Por Dentro da Mídia.
Não gostei muito do entrevistador... Mas vale a pena assistir.