.
III. O paradigma das neurociências
Assim, uma terceira característica da psicopatologia atual é a sua pretensão em ter um fundamento biológico. A biologia é o fundamento incontestável da psicopatologia na atualidade. As neurociências fornecem os instrumentos teóricos que orientam a construção da explicação psiquiátrica. Por este viés, pois, a psicopatologia pretende ter encontrado finalmente a sua cientificidade, de fato e de direito. Além disso, a nova psicopatologia acredita ter se encontrado enfim com a sua vocação médica, num processo iniciado no início do século XIX, à medida que se fundaria no discurso biológico.
Como se sabe, a psiquiatria sempre se encontrou numa posição incômoda no campo da medicina, pois pretendendo ser uma especialidade médica nunca conseguiu se fundamentar com os saberes advindos da racionalidade médica. O discurso do anátomo-clínica,1 base epistemológica da dita medicina científica, não encontrava legitimidade no campo da psiquiatria.2 A psiquiatria buscava as causas físicas dos distúrbios mentais e apenas encontrava, desde Pinel e Esquirol, as causas morais. Em contrapartida, o tratamento moral era a base da terapêutica psiquiátrica – em níveis individual e institucional –, que se afastava então de maneira decisiva dos cânones do saber médico.3 Enfim, a psiquiatria era uma falsa medicina, uma pseudo-medicina, já que não se fundamentava pelos saberes que fundavam a medicina.
A psicofarmacologia possibilitou, desde os anos cinqüenta, a construção de uma outra identidade para a psiquiatria, que pôde se aproximar, então, dos cânones da medicina. O desenvolvimento recente das neurociências possibilitou a reconstrução da medicina mental, aproximando esta, finalmente, da medicina somática. Completou-se, com isso, o sonho do saber psiquiátrico de se trans-formar não apenas numa ciência, mas numa especialidade médica.
Pode-se depreender disso o que existe de antigo e de novo na psicopatologia da atualidade, como afirmei inicialmente. Com efeito, ao se fundamentar no discurso das neurociências, a psicopatologia consegue se realizar como uma modalidade de saber médico, se encontrando com a sua antiga pretensão originária de pertencer ao campo da medicina. Nada mais antigo, pois, que a novidade apresentada pela psicopatologia contemporânea, que encontra finalmente as suas origens e seus mitos fundadores, legitimando a sua identidade médica.
Ao se fundamentar nos discursos das neurociências a psicopatologia atual pôde questionar a causalidade moral das perturbações do espírito, para nos valermos da linguagem do discurso psiquiátrico originário,4 onde se opunham as causas morais e físicas das perturbações mentais. Isso porque as neurociências têm a pretensão de fundamentar as funções do espírito, de maneira autônoma e independente. Vale dizer, as neurociências pretendem construir uma leitura do psiquismo, de base inteiramente biológica. Com isso, o funcionamento psíquico seria redutível ao funcionamento cerebral, sendo este representado numa linguagem bioquímica. Enfim, a economia bioquímica dos neurotransmissores poderia explicar as particularidades do psiquismo e da subjetividade.
Esta transformação epistemológica produziu mudanças terapêuticas imediatas. A psicofarmacologia se transformou no referencial fundamental da terapêutica psiquiátrica, dado que as neurociências pretenderam fundar uma leitura do psiquismo. Com isso, a medicação psicofarmacológica pretende ser a modalidade essencial da intervenção psiquiátrica. Em conseqüência disso, a psicoterapia tende a ser eliminada do dispositivo psiquiátrico, transformando-se num instrumento totalmente secundário face à intervenção psicofarmacológica. A psicoterapia passa a ser representada como uma peça de museu, sendo colocada como periférica no dispositivo psiquiátrico da atualidade.
Com este deslocamento das psicoterapias para a periferia da intervenção psiquiátrica se constituiu uma inversão significativa entre a psicanálise e a psiquiatria, como veremos agora.
IV. Inversões
Assim, pela pretensão realizada de ter se transformado numa "ciência" e numa especialidade médica "respeitável", a psiquiatria não quer ter mais qualquer proximidade com a psicanálise. Seria preciso afastar a psicanálise do campo psiquiátrico, não misturar mais, em qualquer hipótese, aquela com a psicopatologia, pois isso acarretaria o risco de afetar a identidade médica e "científica" da psiquiatria.
Aconteceu aqui algo espantoso, da perspectiva histórica. Diria mesmo surpreendente. E isso de um duplo ponto de vista, a serem considerados de maneira esquemática. Desta forma, poderemos aquilatar a inversão a que me referi acima.
Devemos evocar aqui, inicialmente, que até os anos 70 a psiquiatria era fundada no discurso psicanalítico. A psicanálise era o saber de referência fundamental da psiquiatria, não obstante o desenvolvimento progressivo da psicofarmacologia desde os anos 50. É evidente que já se constituíra então a oposição entre dois grandes paradigmas do campo da psicopatologia: o primeiro centrado na psicanálise e, o segundo, na psicofarmacologia. Contudo, o discurso psicanalítico ocupava uma posição estratégica no campo psiquiátrico, detendo a hegemonia no discurso psicopatológico.
Com isso a psiquiatria era essencialmente psicanalítica, regulada que era pelos cânones psicanalíticos. Esta presença podia ser verificada tanto nas tradições francesa, quanto na inglesa e na norte-americana. Contudo, nos anos 70 tudo isso se transformou. O paradigma biológico da psiquiatria se impôs, reconstituindo o discurso psicopatológico em novas bases. Conseqüentemente, a psicanálise perdeu o lugar de hegemonia no campo da psiquiatria, ficando, pois, numa posição secundária e subalterna.
Este processo histórico de reconstrução do campo psicopatológico já era evidente nos Estados Unidos no início dos anos 70, num processo irreversível iniciado nos anos 60.5 Na França, este processo de autonomização da psiquiatria face à psicanálise iniciou-se nos anos 80 e está em curso. No Brasil e na América Latina pode-se reconhecer o mesmo rumo nas novas relações entre a psiquiatria e a psicanálise.
Porém, todo este processo apresenta ainda uma outra face, que é tão fundamental quanto a primeira. Com efeito, a psicanálise não perdeu apenas a hegemonia no campo da psicopatologia, sendo substituída pelo paradigma biológico, mas, além disso, tem mostrado um interesse crescente pelos modelos biológicos das neurociências. Vale dizer, a psicanálise passa a incorporar no seu discurso os referenciais teóricos do discurso psiquiátrico. Tudo isso des-caracteriza, evidentemente, o discurso psicanalítico.
Pode-se perceber isso não apenas no registro das novas publicações em psicanálise, como também nas linhas de pesquisa de laboratórios avançados de psicanálise na universidade. Isso se passa não apenas na Europa e nos Estados Unidos, como também na América Latina. A medicalização da psicanálise atingiu um outro limite, absolutamente novo, do que já conhecíamos de outros momentos da história do movimento psicanalítico.
Nesta inversão de lugares e de posições estratégicas, a psicanálise fica numa posição agora secundária no campo da psicopatologia. Além disso, o discurso psicanalítico começa a fazer bricolagens com os discursos das neurociências e do cognitivismo, silenciando a sua especificidade. A inversão, enfim, é total, no horizonte histórico que estamos inscritos, entre a psicanálise e a psiquiatria.
Joel Birman
......................................................................Continua...
.Para ler a parte 1 clique aqui.
III. O paradigma das neurociências
Assim, uma terceira característica da psicopatologia atual é a sua pretensão em ter um fundamento biológico. A biologia é o fundamento incontestável da psicopatologia na atualidade. As neurociências fornecem os instrumentos teóricos que orientam a construção da explicação psiquiátrica. Por este viés, pois, a psicopatologia pretende ter encontrado finalmente a sua cientificidade, de fato e de direito. Além disso, a nova psicopatologia acredita ter se encontrado enfim com a sua vocação médica, num processo iniciado no início do século XIX, à medida que se fundaria no discurso biológico.
Como se sabe, a psiquiatria sempre se encontrou numa posição incômoda no campo da medicina, pois pretendendo ser uma especialidade médica nunca conseguiu se fundamentar com os saberes advindos da racionalidade médica. O discurso do anátomo-clínica,1 base epistemológica da dita medicina científica, não encontrava legitimidade no campo da psiquiatria.2 A psiquiatria buscava as causas físicas dos distúrbios mentais e apenas encontrava, desde Pinel e Esquirol, as causas morais. Em contrapartida, o tratamento moral era a base da terapêutica psiquiátrica – em níveis individual e institucional –, que se afastava então de maneira decisiva dos cânones do saber médico.3 Enfim, a psiquiatria era uma falsa medicina, uma pseudo-medicina, já que não se fundamentava pelos saberes que fundavam a medicina.
A psicofarmacologia possibilitou, desde os anos cinqüenta, a construção de uma outra identidade para a psiquiatria, que pôde se aproximar, então, dos cânones da medicina. O desenvolvimento recente das neurociências possibilitou a reconstrução da medicina mental, aproximando esta, finalmente, da medicina somática. Completou-se, com isso, o sonho do saber psiquiátrico de se trans-formar não apenas numa ciência, mas numa especialidade médica.
Pode-se depreender disso o que existe de antigo e de novo na psicopatologia da atualidade, como afirmei inicialmente. Com efeito, ao se fundamentar no discurso das neurociências, a psicopatologia consegue se realizar como uma modalidade de saber médico, se encontrando com a sua antiga pretensão originária de pertencer ao campo da medicina. Nada mais antigo, pois, que a novidade apresentada pela psicopatologia contemporânea, que encontra finalmente as suas origens e seus mitos fundadores, legitimando a sua identidade médica.
Ao se fundamentar nos discursos das neurociências a psicopatologia atual pôde questionar a causalidade moral das perturbações do espírito, para nos valermos da linguagem do discurso psiquiátrico originário,4 onde se opunham as causas morais e físicas das perturbações mentais. Isso porque as neurociências têm a pretensão de fundamentar as funções do espírito, de maneira autônoma e independente. Vale dizer, as neurociências pretendem construir uma leitura do psiquismo, de base inteiramente biológica. Com isso, o funcionamento psíquico seria redutível ao funcionamento cerebral, sendo este representado numa linguagem bioquímica. Enfim, a economia bioquímica dos neurotransmissores poderia explicar as particularidades do psiquismo e da subjetividade.
Esta transformação epistemológica produziu mudanças terapêuticas imediatas. A psicofarmacologia se transformou no referencial fundamental da terapêutica psiquiátrica, dado que as neurociências pretenderam fundar uma leitura do psiquismo. Com isso, a medicação psicofarmacológica pretende ser a modalidade essencial da intervenção psiquiátrica. Em conseqüência disso, a psicoterapia tende a ser eliminada do dispositivo psiquiátrico, transformando-se num instrumento totalmente secundário face à intervenção psicofarmacológica. A psicoterapia passa a ser representada como uma peça de museu, sendo colocada como periférica no dispositivo psiquiátrico da atualidade.
Com este deslocamento das psicoterapias para a periferia da intervenção psiquiátrica se constituiu uma inversão significativa entre a psicanálise e a psiquiatria, como veremos agora.
IV. Inversões
Assim, pela pretensão realizada de ter se transformado numa "ciência" e numa especialidade médica "respeitável", a psiquiatria não quer ter mais qualquer proximidade com a psicanálise. Seria preciso afastar a psicanálise do campo psiquiátrico, não misturar mais, em qualquer hipótese, aquela com a psicopatologia, pois isso acarretaria o risco de afetar a identidade médica e "científica" da psiquiatria.
Aconteceu aqui algo espantoso, da perspectiva histórica. Diria mesmo surpreendente. E isso de um duplo ponto de vista, a serem considerados de maneira esquemática. Desta forma, poderemos aquilatar a inversão a que me referi acima.
Devemos evocar aqui, inicialmente, que até os anos 70 a psiquiatria era fundada no discurso psicanalítico. A psicanálise era o saber de referência fundamental da psiquiatria, não obstante o desenvolvimento progressivo da psicofarmacologia desde os anos 50. É evidente que já se constituíra então a oposição entre dois grandes paradigmas do campo da psicopatologia: o primeiro centrado na psicanálise e, o segundo, na psicofarmacologia. Contudo, o discurso psicanalítico ocupava uma posição estratégica no campo psiquiátrico, detendo a hegemonia no discurso psicopatológico.
Com isso a psiquiatria era essencialmente psicanalítica, regulada que era pelos cânones psicanalíticos. Esta presença podia ser verificada tanto nas tradições francesa, quanto na inglesa e na norte-americana. Contudo, nos anos 70 tudo isso se transformou. O paradigma biológico da psiquiatria se impôs, reconstituindo o discurso psicopatológico em novas bases. Conseqüentemente, a psicanálise perdeu o lugar de hegemonia no campo da psiquiatria, ficando, pois, numa posição secundária e subalterna.
Este processo histórico de reconstrução do campo psicopatológico já era evidente nos Estados Unidos no início dos anos 70, num processo irreversível iniciado nos anos 60.5 Na França, este processo de autonomização da psiquiatria face à psicanálise iniciou-se nos anos 80 e está em curso. No Brasil e na América Latina pode-se reconhecer o mesmo rumo nas novas relações entre a psiquiatria e a psicanálise.
Porém, todo este processo apresenta ainda uma outra face, que é tão fundamental quanto a primeira. Com efeito, a psicanálise não perdeu apenas a hegemonia no campo da psicopatologia, sendo substituída pelo paradigma biológico, mas, além disso, tem mostrado um interesse crescente pelos modelos biológicos das neurociências. Vale dizer, a psicanálise passa a incorporar no seu discurso os referenciais teóricos do discurso psiquiátrico. Tudo isso des-caracteriza, evidentemente, o discurso psicanalítico.
Pode-se perceber isso não apenas no registro das novas publicações em psicanálise, como também nas linhas de pesquisa de laboratórios avançados de psicanálise na universidade. Isso se passa não apenas na Europa e nos Estados Unidos, como também na América Latina. A medicalização da psicanálise atingiu um outro limite, absolutamente novo, do que já conhecíamos de outros momentos da história do movimento psicanalítico.
Nesta inversão de lugares e de posições estratégicas, a psicanálise fica numa posição agora secundária no campo da psicopatologia. Além disso, o discurso psicanalítico começa a fazer bricolagens com os discursos das neurociências e do cognitivismo, silenciando a sua especificidade. A inversão, enfim, é total, no horizonte histórico que estamos inscritos, entre a psicanálise e a psiquiatria.
Joel Birman
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