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8 de dezembro de 2008

A psicopatologia na pós-modernidade - As alquimias no mal-estar da atualidade (Parte 1 de 4)

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A intenção deste estudo é a de circunscrever a especificidade da psicopatologia na pós-modernidade. Para isso, procura-se demonstrar as relações daquela com a medicina e as neurociências, assim como a sua recusa da psicanálise. Além disso, pretende-se mostrar como o interesse atual da psiquiatria nas pesquisas sobre as depressões, as toxicomanias e a síndrome do pânico pode ser interpretado a partir dos modelos de subjetividade promovidos pelo mundo pós-moderno.

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I. A clínica na atualidade
Se examinarmos, até mesmo sem muito cuidado, as publicações recentes dos campos da psicopatologia e da psiquiatria clínica, pode-se reconhecer certas características bem particulares. Trata-se de uma velha e antiga psicopatologia, por um lado, e de uma nova psicopatologia, em contrapartida, pelo outro. É bom que se diga, logo no início, que as idéias de novidade e de antiguidade devem ser consideradas aqui de uma maneira totalmente contextual e conjuntural. Contudo, o fato de sublinhar a relevância do contexto e da conjuntura não se opõe ao relevo que se confere à idéia de história, isto é, a uma leitura histórica dos discursos psicopatológico e psiquiátrico. Ao contrário, as noções de contexto e de conjuntura apenas podem ser bem apreendidas quando inscritas na trama de uma temporalidade histórica, à medida que apenas assim a especificidade do discurso psicopatológico atual pode ser bem evidenciado. É necessário, pois, circunscrever devidamente este campo, porque a nitidez e a consistência da interpretação que será aqui avançada e proposta estão na dependência estrita desta delimitação teórica e histórica.
Vamos delinear aqui, então, este campo atual da psicopatologia, sublinhando aquilo que é valorizado no registro das publicações es-pecializadas, antes de mais nada. Estou me referindo às publicações advindas dos mundos anglo-saxônico e brasileiro, mas acredito, pela pesquisa que realizei, que o mesmo se possa dizer da psicopatologia francesa. Assim, o que se pode depreender da leitura, mesmo superficial, das revistas especializadas?
Antes de mais nada, as publicações são centradas em três enfermidades, ou síndromes, como vocês quiserem nomear tais perturbações do espírito, que dominam o espaço destas revistas e a preocupação de seus editores. Assim, o que os periódicos valorizam sempre, de maneira progressiva, são as depressões, as toxicomanias e a dita síndrome do pânico. Como se pode depreender, as duas primeiras foram anunciadas no plural e a última no singular, por razões que ainda comentaremos adiante. Independente disso, contudo, existe uma estranha preocupação dos pesquisadores com estas perturbações psíquicas, de uma maneira bastante específica.
É preciso recordar, no entanto, por uma questão de respeito e até reconhecimento pela verdade histórica, que o interesse da psiquiatria e da psicopatologia por estas perturbações do espírito é apenas recente e pontual. Este não é o caso, absolutamente. Trata-se de um processo histórico iniciado já há vinte anos mais ou menos. Desde o final dos anos 70 podemos registrar a emergência destas preocupações teóricas na literatura especializada. Além disso, não pretendo afirmar, bem-entendido, que o interesse particular da psicopatologia naquelas perturbações psíquicas, implique num silêncio absoluto em relação às outras perturbações do campo psiquiátrico. Não se trata disso. Porém, o investimento do discurso psicopatológico nestas outras perturbações é não apenas menor em relação ao passado psiquiátrico, mas também bem menor em relação às depressões, às toxicomanias e à síndrome do pânico. É no campo deste duplo relativismo que é preciso empreender o interesse da atual psicopatologia nestas três formas de perturbação do espírito, o que evidencia devidamente a dimensão histórica do dispositivo psiquiátrico em questão.
É preciso reconhecer, em seguida, que não é evidente o interesse revelado pela psicopatologia por tais perturbações mentais. Isso é óbvio, venhamos e convenhamos. Porém, isso precisa ser não apenas mostrado, mas também demonstrado. De qualquer maneira, é preciso dar lugar ao espanto que este interesse provoca, para que se possa interpretar a sua construção histórica. Com efeito, pode-se até mesmo afirmar que existe algo de estranho e de enigmático nestas escolhas da psicopatologia recente. Tudo isso é bastante espantoso, seguramente.
Por que afirmo isso?
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II. Enigmas?
Antes de mais nada, não se pode dizer que o interesse da psicopatologia por aquelas perturbações mentais seja uma decorrência direta do aumento destas, no sentido estritamente epidemiológico. Não se trata disso. Com efeito, não existe um aumento daquelas perturbações de uma maneira homogênea. Pode-se afirmar seguramente que existe, no Ocidente, um crescimento significativo das toxicomanias nas últimas décadas. Além disso, se constituíram novas modalidades de toxicomanias, anteriormente inexistentes. Isso é perfeitamente constatável pelas pesquisas epidemiológicas e pela experiência clínica. Em contrapartida, o mesmo não acontece nem com as depressões nem com a síndrome do pânico. Existe, pois, uma assimetria evidente, do estrito ponto de vista epidemiológico, entre as toxicomanias e as depressões e a síndrome do pânico, à medida que as primeiras aumentam de forma significativa e o mesmo não se pode dizer das demais.
A questão que se levanta aqui é, para mim, evidente. Por que as pesquisas psiquiátricas investem tanto nestas três modalidades clínicas de perturbações do espírito, quando apenas as toxicomanias revelam uma transformação significativa de suas taxas de incidência e de prevalência? Evidencia-se com isso, então, um registro inicial, para o meu espanto, com as escolhas empreendidas pelo discurso psicopatológico.
Em seguida, a outra questão que levanto aqui, sobre isso, é a da repetição em série destas três perturbações do espírito no discurso psicopatológico. Vale dizer, estas diferentes perturbações aparecem sempre como um conjunto, no contexto das publicações especializadas e no imaginário atual da psicopatologia. Isso também não é evidente, absolutamente, para mim. A indagação que coloco aqui, pois, concerne agora à relação imaginária que foi estabelecida entre estas três perturbações do espírito. Isso porque existe uma relação secreta e enigmática entre estas diferentes formas de perturbações psíquicas, que não é algo óbvio ao nível da descrição clínica e psicopatológica. Com efeito, a fenomenologia clínica destas perturbações não permite e não autoriza esta aproximação e esta seriação.
O que implica em afirmar que é preciso uma operação de deciframento para que se possa dar conta desta repetição em série e da configuração deste conjunto psicopatológico, pois nada as reúne do ponto de vista estritamente clínico. Deve-se perguntar agora, se não existiria uma articulação interna entre estas três formas de perturbação mental, algo a ser evidenciado, que não é absolutamente claro no registro das descrições clínicas e fenomenológica de seus sintomas. Procurar responder a isso, de uma forma ao mesmo tempo consistente e legítima, será a minha segunda questão neste artigo.
Porém, para que o deciframento deste enigma e da relação nebulosa entre estas perturbações do espírito possa se realizar, é preciso anunciar os traços epistemológicos do novo discurso psicopatológico. É o que farei em seguida.
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Joel Birman
...................................................................Continua...
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