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8 de janeiro de 2009

Sobre depressão

Mais um texto da Maria Rita Kehl que eu gostei muito...


O tempo e a depressão
O que a teoria freudiana sobre a melancolia pode ensinar ao psicanalista sobre a clínica das depressões? Muito pouco, quase nada. No entanto, nos debates de que tenho participado recentemente em torno desse tema, assim como em textos de diversos autores sobre o mesmo assunto, não é incomum encontrar certa confusão entre as características dos quadros depressivos e melancólicos, que chegam a ser abordados, indiscriminadamente, como se fossem a mesma coisa. Não são. As características “depressivas” do melancólico – negativismo, falta de ânimo, falta de auto-estima, fantasias auto-destrutivas, distúrbios somáticos e outras tantas manifestações de dor psíquica – podem se parecer, empiricamente, com as dos depressivos. Mas assim como algumas crises histéricas e algumas construções de pensamento delirantes entre os obsessivos podem ser confundidas com sintomas psicóticos, a semelhança fenomenológica entre a tristeza e o abatimento dos melancólicos e dos depressivos não são manifestações da mesma estrutura psíquica.
Tal confusão talvez se deva ao fato de Freud, cujo texto “Luto e Melancolia” (1915) trouxe uma contribuição decisiva e inovadora para a compreensão da clínica da melancolia, não ter dedicado nenhum texto ao tema das depressões. Se as noções de depressão, estados depressivos, psicose maníaco-depressiva, ainda não terminaram de ser resgatadas do campo exclusivo da psiquiatria para o da clínica psicanalítica, o termo “melancolia” aportou em terras freudianas depois de percorrer a cultura ocidental, desde Aristóteles, carregada de signos de sensibilidade, originalidade, nobreza de espírito e outras qualidades que caracterizam o gênio criador. Tais qualidades da alma humana não se encontram entre as observações de Freud a respeito dos sintomas melancólicos. A teoria freudiana da melancolia promoveu duas rupturas simultâneas: no plano clínico, seu texto de 1915 trouxe a melancolia do campo da medicina psiquiátrica – em que era chamada de “psicose maníaco-depressiva” – para o da clínica psicanalítica. No outro plano, o da história das idéias, o texto de Freud acabou de afastar definitivamente a melancolia da longa tradição pré-moderna das representações, predominantemente sublimes, atribuídas aos homens de caráter melancólico, desde a antiguidade grega.
A teoria freudiana sobre a melancolia ocupou um lugar tão importante no pensamento clínico do início do século XX que o conceito de depressão foi praticamente englobado pelo de melancolia, quando não confundido com ela. Nos últimos trinta anos, no entanto, o crescimento a níveis epidêmicos dos diagnósticos de depressão impõe aos psicanalistas uma separação teórica mais rigorosa entre esses dois campos clínicos. É preciso empreender novos esforços conceituais para pensar a especificidade da depressão de modo a impedir que esta forma de mal estar, agravada pelas condições da vida contemporânea, seja inteiramente apropriada pela medicina e pela psicofarmacologia. A teoria da melancolia é insuficiente para subsidiar a clínica das depressões, esta forma de mal estar que a indústria farmacêutica vem tentando circunscrever exclusivamente sob seus domínios, como se o deprimido sofresse apenas desarranjos e déficits químicos em um corpo sem sujeito.
Do ponto de vista da psicanálise, a depressão resulta do empobrecimento da vida psíquica, sobretudo no que se refere ao enfrentamento de conflitos. O abuso de soluções medicamentosas acaba por ser cúmplice deste encolhimento subjetivo. Daí que o avanço mercadológico dos antidepressivos não corresponda a uma diminuição dos casos de depressão. Bem ao contrário: a supressão química do sujeito do inconsciente só faz aumentar o mal estar. A introspecção, a tristeza, o recolhimento, a contemplação – a vida do espírito, enfim – são desvios que atrapalham o rendimento de uma vida cuja qualidade se mede por critérios de eficiência, competência e disponibilidade para o consumo e a diversão.
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O tempo do sujeito e o tempo do Outro
Desde 2005 venho investigando a questão das depressões do ponto de vista da relação dos sujeitos com a dimensão do tempo, ao qual ele é introduzido através das práticas do Outro materno. Meu interesse é investigar a relação dos depressivos com a delicada temporalidade psíquica, em contraste com a velocidade da vida social. Se a psiquiatria explica a lentidão depressiva como resultante de um déficit nos neurotransmissores, do ponto de vista da psicanálise ela resulta da posição do sujeito diante do Outro.
Na origem da posição depressiva, encontramos um sujeito atropelado pela urgência do Outro. O psiquismo, em Freud, é uma instância temporal que se inaugura a partir da espera de satisfação. O tempo que se inaugura com a espera de satisfação da pulsão é a primeira dimensão da falta que se apresenta ao infans, a partir da qual ele haverá de dar início ao trabalho de representação do objeto faltante. O psiquismo nada mais é do que uma rede de representações tecida sobre um fundo vazio. A pressa do Outro materno, o excesso de solicitude e/ou de ansiedade de certas mães em atender rapidamente às menores manifestações de insatisfação do infans, intercepta a temporalidade psíquica, favorecendo a posição depressiva do sujeito no fantasma.
A sociedade contemporânea vem produzindo – e sofrendo com isso – uma invasão de formas imaginárias deste Outro apressado, que não admite nenhum tempo ocioso que não seja rapidamente preenchido por ações que visam satisfação imediata. Em função disso, o recuo do depressivo ocupa o lugar do sintoma social. Ao deprimir-se, ele tenta fugir do excesso de ofertas – que do ponto de vista do sujeito em formação, são entendidas como demandas – do Outro, para se refugiar debaixo das cobertas. Este é lugar que caracteriza o recuo do depressivo em relação à vida. Segundo alguns autores , o ninho que o depressivo faz para si mesmo debaixo das cobertas, onde o tempo não passa, funciona de maneira paradoxal. “Debaixo das cobertas” o depressivo encontra tanto um esconderijo quanto um lugar de gozo, de onde tenta, mas não consegue, se proteger contra a ameaça de ser engolido pelo Outro materno. Quanto mais o depressivo recua, mais se coloca à mercê da demanda da “bocarra de jacaré”, na dramática expressão utilizada por Lacan para se referir à mãe do infans.
O tempo, como bem escreve François Julien, é “a última figura da transcendência no seio do pensamento ocidental ”. Esta última possibilidade de pensar e também de experimentar a transcendência, através da multiplicidade dos fenômenos temporais, vem se reduzindo drasticamente. O homem contemporâneo vive tão completamente imerso na temporalidade urgente dos relógios de máxima precisão, no tempo contado em décimos de segundo, que já não é possível conceber outra forma de estar no mundo que não sejam as da velocidade e da pressa.
“Aproveitar bem o tempo” é um dos imperativos da vida contemporânea. Na prática, tal mandato corresponde a uma série de possibilidades que de fato se abriram para o desfrute da vida privada, nas sociedades liberais. O indivíduo, sob o capitalismo liberal, dispõe de uma enorme variedade de escolhas quanto ao desfrute de seu tempo livre, não mais regulado pelos ritos e proibições da vida religiosa, nem limitado pelas horas de luz do dia ou pelo maior ou menor rigor das estações. Por outro lado a marcação que caracteriza o tempo do trabalho (de forma desproporcional à oferta efetiva de oportunidades de trabalho) invade cada vez mais a experiência subjetiva da temporalidade, mesmo nas horas ditas de lazer. Não me refiro ao ócio, esta forma de passar o tempo tão desmoralizada em nossos dias, mas às atividades de lazer, marcadas pela compulsão incansável de produzir resultados, comprovações, efeitos de diversão, que torna a experiência do tempo de lazer tão cansativa e vazia quanto a do tempo da produção. Nada causa tanto escândalo, em nosso tempo, quanto o tempo vazio. É preciso “aproveitar” o tempo, fazer render a vida, sem preguiça e sem descanso. A este imperativo, como veremos, o depressivo resiste com sua lentidão, seu mergulho angustiado e angustiante em um tempo estagnado – um “tempo que não passa ”.
Se existe uma relação entre o estado subjetivo que os antigos chamavam de melancolia e a percepção do tempo – chamo a atenção para a freqüência com que encontramos ampulhetas entre os instrumentos que cercam as figuras dos melancólicos, a partir do Renascimento – esta relação se expressa de maneira dramática na lentidão dos depressivos contemporâneos, incapazes de atender à urgência das demandas do Outro. Tal lentidão, que se apresenta tanto aos olhos do sujeito deprimido quanto aos dos psiquiatras como mais uma entre as muitas disfunções características da depressão, talvez tenha algo a ensinar ao psicanalista. É razoável supor que a temporalidade moderna sacrifica o sujeito a seus imperativos; vale perguntar, então, de que ordem é a recusa que a depressão impõe a alguns sujeitos desviantes dessa norma contemporânea que insiste em anunciar: o futuro já começou .
Não nos precipitemos. Ainda que, de acordo com Freud, a aniquilação seja o objeto definitivo do gozo da pulsão de morte, não devemos nos deixar fascinar, na clínica, pela negatividade dos depressivos. Se com sua recusa eles se aproximam perigosamente da verdade sobre o vazio Real que funda o psiquismo, o apego à negação dos depressivos deve ser entendido principalmente como o avesso de uma urgência. Sua lentidão encobre a inapetência característica daqueles que tiveram sua demanda antecipada pelo Outro e se vêem incapacitados para preencher este inquietante rodeio entre o nascimento e a morte, a que chamamos vida. Ao contrário do melancólico, abatido pela sombra de um objeto que não compareceu a tempo, os depressivos, preenchidos pela solicitude do Outro, foram poupados de inventar seus próprios jogos de fort-da – daí decorre o sentimento de vazio interior de que se queixam em análise.
Instalados em um tempo que lhes parece vazio, sob sua aparente imobilidade, os depressivos estão mais próximos de encontrar a temporalidade distendida da contemplação e do devaneio do que os neuróticos mais bem adaptados às condições que a vida social lhes impõe. O tempo vazio do depressivo recusa a urgência da vida contemporânea e remete a um outro modo de viver o tempo, que a modernidade recalcou ou pelo menos, reprimiu.
O psicanalista que escuta um depressivo deve ficar atento para a dimensão deste saber sobre o tempo que se encontra encoberto pela sua imobilidade angustiada. A indústria farmacêutica se empenha em oferecer ao depressivo substâncias capazes de levantar seu ânimo, colocá-lo em movimento, adaptá-lo ao tempo do Outro. A psicanálise, em contrapartida, lhe oferece a perspectiva de um percurso sem pressa, a partir do qual ele possa criar, ou redescobrir, suas próprias modalidades rítmicas de jogar com a falta, suas próprias brincadeiras de fort-da.

Veja o site da autora.
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