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28 de abril de 2008

Família

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Ontem o jornal O Estado de S. Paulo publicou um artigo da psicanalista Maria Rita Kehl, que fala sobre pais e crianças, apontando questões muito importantes.
Diante da violência que parou o país nos últimos dias não tem como não pensar nessas relações e nas consequências dos desdobramentos da família contemporânea, nos pais sem autoridade e nas crianças sem limites.
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Filhos não têm como se defender da displicência, dos excessos ou da irresponsabilidade dos pais
Maria Rita Kehl*
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No momento em que escrevo este artigo ainda não há conclusões definitivas sobre o assassinato da menina Isabella. Mas desde o primeiro dia a sociedade já havia decidido condenar o casal Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá. Aos poucos a indignação popular aumentou, orquestrada inescrupulosamente pelos telejornais em disputa por audiência, até se transformar em pura sanha linchadora.
Não me disponho a tentar explicar o que teria levado um pai e uma madrasta a assassinar, ainda que acidentalmente, uma criança, e depois livrar-se do corpo de maneira tão brutal. Fora da clínica e da transferência, o psicanalista é tão leigo quanto qualquer pessoa ante os sintomas e surtos alheios. O que a experiência clínica oferece são algumas chaves para a compreensão das condições subjetivas presentes em uma sociedade, que favorecem certas manifestações aberrantes, violentas e aparentemente incompreensíveis.
Como entender essa torcida em massa para que o pai e a madrasta de Isabella sejam os culpados? Em primeiro lugar, penso que diante dos crimes domésticos as pessoas se sentem menos inseguras do que diante do fantasma da violência social generalizada que assola o país. “Se o crime foi cometido em família, isso é lá problema deles”, pensamos, na esperança de que em nossa família essas coisas não aconteçam. Em segundo lugar, a família de Isabella pertence à mesma classe média dos consumidores de jornais e revistas, público alvo dos anunciantes da televisão. No dia 20 de abril, um menino negro de 11 anos foi morto com um tiro na cabeça na favela da Vila União, em São Paulo. Até agora, não vi a imprensa acompanhar a apuração do assassinato do pequeno Jefferson Alves, considerado desinteressante pela sociedade.
É evidente que a figura mitológica da madrasta excita a imaginação popular. A personagem da madrasta má, nas histórias infantis, encobre o lado sombrio da mãe. É ela quem encarna o egoísmo, a rivalidade, a crueldade ou o descaso para com o sofrimento das crianças, de modo a manter a idealização da maternidade biológica e conservar a santa mãe em seu pedestal. No entanto, qualquer psicanalista sabe o quanto as mães são capazes de abusar de seus filhos, rivalizar com suas filhas, violentar a dignidade deles, desrespeitar seus direitos.
O colunista da Folha de S. Paulo Contardo Calligaris fez uma análise interessante sobre o ciúme que algumas madrastas sentem de suas enteadas, disputando com elas o lugar de filhas de seus companheiros. Vale lembrar que a presença do (a) enteado (a) também pode reavivar os ciúmes da madrasta em relação à mulher que a precedeu. Mas nem todas as madrastas odeiam seus enteados. Conheço casos, em meu próprio consultório, em que a presença e a intervenção de madrastas generosas e sensíveis praticamente salvou a infância de filhos maltratados ou abandonados por mães imaturas, que se vingavam do ex-marido maltratando os filhos dele. Evito embarcar em uma defesa conservadora da família “de sangue” em detrimento de outras configurações familiares.
Os crimes domésticos colocam em evidência o desamparo infantil. As crianças não têm como se defender da displicência e da irresponsabilidade dos pais, nem dos excessos de amor, de sensualidade, de ira, de gozo: pais, mães, padrastos, madrastas, avôs e avós abusam de várias maneiras, “por amor”, de crianças indefesas. Neste sentido, para a criança, a família não é um ambiente tão seguro quanto se imagina. Pesquisa da Unicef sobre a violência doméstica no Brasil revela que 44,3% dos homicídios de crianças ocorrem dentro de casa, sendo 34,4% deles cometidos por parentes das vítimas. Sem contar os casos de abuso sexual, que ocupam o primeiro lugar na lista das formas de violência familiar.
É evidente que existem famílias tranqüilas, pais e mães equilibrados e protetores. Mas a família moderna, fechada sobre si mesma, toda voltada para a produção de bem-estar, fundada nas formas mais egoístas de amor, é um canteiro propício, no mínimo, à violência psicológica. Os filhos frustram as expectativas dos pais, o amor vira moeda de barganha e chantagem mútua, a esperança de entendimento de parte a parte é freqüentemente obstruída pela culpa que cada um sente por não amar o outro tanto quanto devia.
Apesar disso, não existe nenhuma outra instituição que a substitua. Desejamos formar família, viver em família, criar condições de convívio protetoras, agradáveis. Mas é bom lembrar que se a família, em seus moldes tradicionais, fosse um mar de rosas, Freud não teria criado a psicanálise.
Se a criança é desamparada frente aos que cuidam dela, os adultos de hoje também se sentem desamparados no exercício de suas funções. A vida contemporânea está tão privatizada, tão indiferente a valores ligados ao bem comum, a sociedade tornou-se tão narcisista e infantilizada, que o bem-estar das crianças se tornou praticamente o único ideal dos adultos. Ser “bom pai” tornou-se a razão de viver de adultos que perderam as referências para saber tanto o que é ser “bom” quanto o que é ser “pai” (ou “mãe”). Se os filhos se tornam o único ideal de seus pais, estes não têm mais nada a lhes transmitir a não ser “seja feliz” - isto, numa sociedade em que felicidade se mede pela capacidade de consumo e diversão.
O desamparo do adulto diante das exigências dos filhos, a quem eles próprios prometeram dar “tudo de bom e de melhor”, tem resultados patéticos ou, no pior dos casos, trágicos. Algumas crianças, hiperestimuladas e excitadas, ficam cada vez mais insatisfeitas e agressivas enquanto os pais, incapazes de estabelecer limites para a farra que eles mesmos prometeram, vivem exasperados, culpados, impotentes - e às vezes, tão fora de controle quanto os pequenos. Um adulto que se vê incapaz de educar uma criança é capaz de confundir autoridade com violência, poder simbólico com coerção física.
Vez por outra, um desses pais incapazes de colocar limites em seus filhos também corre o risco de perder os próprios limites.
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*Maria Rita Kehl, psicanalista, escreveu Sobre Ética e Psicanálise (Companhia das Letras) e Ressentimento (Casa do Psicólogo), entre outros

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