A imagem do corpo e o que fazemos com ele sempre foi uma questão para mim...
As cirugias plásticas, os corpos tatuados, perfurados e até os chamados body modifications (clique aqui para saber mais) caracterizam a época atual e evidenciam este corpo dolorosamente marcado. Mas o que estas marcas querem dizer?
Encontrei mum atigo muito legal na Revista Mente e Cérebro (jan/2008) da psicanalista Ana Costa, professora do programa de pós-graduação em psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), que fala exatamente sobre isso.
Marcas Invisíveis
O corpo humano apresenta traços que, apesar de muitas vezes incompreensíveis para a própria pessoa, atraem o olhar do outro; tatuagens e piercings expressam a ruptura com o determinismo exclusivamente biológico, assinalam limites e podem representar cicatrizes
...."Uma das primeiras coisas que fazemos, quando levantamos pela manhã, é nos olhar no espelho. Esse gesto – aparentemente universal e irrestrito – não surpreende ninguém, parece tão necessário quanto a ingestão matutina do café, ou mesmo os rituais que acompanham cada uma dessas ações. Saberemos dizer qual deles é o mais necessário: se o alimento, o olhar, ou mesmo os ritos diários? Formular essa pergunta faz parte da questão e me permite apresentar uma definição do que é necessidade para os humanos. Ou seja, olhar-se no espelho pode ser tão necessário quanto alimentar-se. Mais ainda: o alimento talvez nem sequer pareça atraente se não for acompanhado da mediação do olhar, já que essa forma de sustentação, impressa nas relações primárias, nunca nos abandona.
....Temos encontrado muitas análises de nosso laço social que se pautam pela crítica à sustentação em imagens, como se isso resultasse tão-somente de narcisismo exacerbado. Por vezes é atribuída a essa “inclinação narcisista” a busca por marcar o corpo com tatuagens, piercings etc. Tal análise precisa ser feita com cautela, porque de tão geral acaba perdendo seu fundamento. Se o uso das marcas corporais tivesse como explicação algo inerente exclusivamente a nossa sociedade, como entender seu uso tão milenar e abrangente?
....São curiosas as maneiras como nos representamos, em diferentes lugares e relações. Aparentemente, a casa, ou mesmo a vestimenta, traça nosso território. No entanto, não somente nesses elementos fora de nosso corpo esses recursos são usados. A pele – e muitas vezes o interior do corpo – serve como campo de expressão. Pode parecer surpreendente, mas isso sempre aconteceu, nas diferentes sociedades e em todos os tempos. De certa forma as marcas corporais expressam nossa ruptura com a natureza: nossa separação de um determinismo exclusivamente biológico. Elas traçam cicatrizes, que permanecem mais ou menos invisíveis, marcando nosso destino de seres errantes, eternamente desconfortáveis em nosso corpo, não pertencentes nem bem à natureza, nem bem à cultura.
....As marcas corporais são formas de produzir zonas e recortes que representam, ao mesmo tempo, limites e traçados. Esse funcionamento testemunha a necessidade constante de reconstituição de nossos orifícios. Estes são como bordas, que compõem a erotização resultante do funcionamento de nossas pulsões. São os limites que constituem a relação do corpo com o ambiente, com o outro e com a realidade, formando passagens interior/exterior, tanto separando como confundindo nossos limites ou permitindo ao mesmo tempo a reunião– ou comunhão – com o outro. Nosso erotismo se apóia nessa ambigüidade constante de fusão/distanciamento, por meio do exercício de nossos orifícios: boca, ânus, olhos, ouvidos...
....Apesar de já nascermos com essas bordas, sua atividade não se dá de forma natural: é impossível separarmos o que alimenta nosso organismo daquilo que alimenta, por exemplo, nosso gosto estético. A assimilação da comida também depende do que vemos. Por essa razão precisamos constantemente recortar nosso olhar, produzindo pontos de captura que pacifiquem nossa voracidade escópica.
....Assim, nossas bordas corporais não funcionam de forma natural – precisam de constantes recortes. Essa necessidade não diz respeito a um mau desempenho, mas responde à nossa condição de desnaturação, de perda de um funcionamento por ciclos biológicos, como acontece na Natureza. Nos “momentos de passagem”, situações de mudanças importantes na vida – na adolescência, por exemplo – essa necessidade torna-se maior, na medida em que há perda dos referentes de suporte corporal construídos desde a infância. Essa reconstituição das bordas corporais é o que dá suporte à circulação social do nosso corpo, para nos sentirmos “em um lugar”, representados e amparados.
....Cada sociedade constrói seus rituais culturais. Essas expressões se constituem como fundamentos da própria sobrevivência ou como “formas amenas” de expressão. Foi assim com o uso do brinco de orelha pelas mulheres, por exemplo. Até há bem pouco tempo, ninguém questionava o hábito de furar a orelha da menina recém-nascida, ainda no berçário do hospital. Com a aceitação desse gesto a sociedade reconhecia uma identidade sexual, deslocando o “olhar dos genitais”. Hoje, com a grande disseminação de piercings, o hábito se descola de um uso exclusivo.
....Com essas considerações é possível nos aproximarmos da tentativa de entender o lugar das intervenções no corpo em nossa sociedade. Podemos pensar que tatuagens e piercings visam tanto a inclusão em “tribos” urbanas, quanto a iniciativa individual de mudar de “estado”, como transposição de tristeza de amores perdidos e lugares desfeitos ou incorporação de coragem para mudar. Encontramos aqui a ocidentalização de práticas ancestrais, que tomam esse aspecto de desgarramento, tão afeito à convivência solitária das metrópoles.
....Num primeiro momento, quando deparamos com a enorme disseminação desses usos, pode parecer que se trata de algo repentino e estranho. Mas na verdade essas práticas são usadas desde os primórdios da humanidade, testemunhadas por diferentes descobertas arqueológicas. Se não podemos dar um significado único a esses usos – já que parecem ser adereços necessários ao corpo – cabe a indagação da peculiaridade de sua expansão em nosso contexto. No Ocidente, as marcações estéticas do corpo foram banidas pela religião judaico-cristã. É por essa razão que ficamos com a idéia de que seu uso era feito somente pelos considerados marginais de um tempo atrás, ou por grupos específicos, como os marinheiros. A que, então, podemos atribuir sua recente disseminação, em todos os grupos sociais?
....Na época em que a tatuagem estava banida do mundo ocidental, os marinheiros preservaram sua prática. Pensando em sua função para essas pessoas, vemos o quanto pode funcionar como busca de um lugar. O marinheiro torna-se um errante, sem fronteiras e territórios na vastidão do mar. A tatuagem pode funcionar nesse caso como possibilidade de recortar essa vastidão, de produzir uma contenção.
....Quando a tatuagem é feita por adolescentes, aparentemente designa um suporte para a circulação social do corpo. A produção dessas marcas tem a ver com a reconstituição de um circuito da pulsão, faz com que o corpo seja libidinizado, mas também, fundamentalmente, representado para o outro, principalmente na captura do olhar. A libidinização e o suporte representacional permitem dois movimentos: o de pertença a um grupo e o de expressão de um erotismo.
....No que diz respeito ao registro da pulsão é importante lembrar passagens do trabalho de Jacques Lacan. Num texto de 1966, o autor constrói uma metáfora da pulsão como um escravo, do tempo antigo, que leva uma mensagem que foi tatuada em seu couro cabeludo enquanto dormia – sem que ele soubesse. O texto, desconhecido por ele, é usado para condená-lo à morte, quando o homem chega ao seu destino. Com essa metáfora, Lacan indica um elo da pulsão com a tatuagem: nosso corpo é marcado por traços – invisíveis e incompreensíveis, apesar de se expressarem materialmente – que buscam algum destino social. Esse “endereço” se constitui tanto nos amores privados quanto nas situações que envolvem reconhecimento por parte do grupo.
....A necessidade de repetir a produção de marcas corporais se dá porque não existe uma construção de representação definitiva para o corpo humano. Por essa razão, estamos sempre fazendo passagens, traduções, interpretações. Temos sempre de inventar possibilidades de inclusão. A produção de marcas contém um elemento de erogenização: produzir prazer ao se oferecer para o olhar do outro. Mas também pode trazer um elemento de insuficiência e se tornar compulsão, levando à necessidade de repetição incessante.
....No que diz respeito ao olhar, é importante pensar na diferença entre a tatuagem e a maquiagem. A maquiagem também atrai o olhar do outro para o corpo. Mas isso não permite a suposição de algo definitivo, tem mais a ver com a possibilidade de brincar com o engano. Já a tatuagem traz em si a idéia da marca definitiva e, só de forma secundária, “convida” ao jogo do engano. (...)
....Do exposto, é possível destacar os principais elementos que situam as marcas no corpo como veículos de circulação social. Eles dizem respeito à necessidade de algo que atualize – colocando em ato – uma impressão primária. Essa impressão resulta da entrada na linguagem, quando o bebê, que ainda não fala, é introduzido num mundo discursivo que o invade, atravessando seu corpo, muito antes que ele tenha condições de se apropriar da fala. Essa impressão é composta por elementos heterogêneos e pode revelar tanto o registro corporal de um símbolo (as primeiras impressões simbólicas, por exemplo); quanto expressar a experiência corporal de prazer/desprazer, necessária à incorporação das representações.
....Se na passagem pela adolescência essa forma de marcar o corpo pode ser suporte de uma singularidade, também temos experiências sociais nas quais as marcas imprimem anonimato. Como não lembrar das tatuagens de números realizadas nos presos dos campos de concentração, durante a Segunda Guerra Mundial? O paradoxal é que um ato que costumeiramente provoca erotismo e pré-condição de singularidade tenha sido usado para produzir efeitos opostos. O que em outro contexto seria usado para constituir um corpo erotizado, que circula no coletivo, na organização nazista se caracterizou como condição necessária de deserotização, uma maneira de tirar a forma do corpo. O número tatuado privava o sujeito do suporte de um traço simbólico, fixando-o como dejeto não representável pelo circuito civilizador.
FORMAS UNIVERSAIS
....De alguma maneira, a entrada na cultura pela aquisição da linguagem, mutila, e ao mutilar produz detritos – restos impossíveis de representar. Com esses restos corporais e psíquicos se produz arte e literatura, que é uma forma de reinscrevê-los na cultura. Muitas vezes fazemos o inverso: interpretamos como detrito o nosso aparente sucesso, o nosso produto maior. Dentro disso, dor e mutilação – ou o retorno de um masoquismo primário, como propõe Freud – ocupam lugares variados na forma como cada um se organiza.
....Todas as práticas e costumes, mesmo quando mais universais, precisam ser contextualizados. Não se podem desconsiderardois elementos de grande relevância social entre nós: o domínio que a ciência – particularmente a medicina e os laboratórios – têm no nosso cotidiano mais banal e o lugar que damos ao olhar do outro. Podemos também ir mais longe, lembrando as práticas de intervenção no corpo realizadas pela medicina, que molda nossa “biologia” a um funcionamento farmacológico. Isso sem levar em conta os atos cirúrgicos, que nos parecem tão “naturais”, mesmo quando ligados à estética. Inegavelmente, as plásticas transformam até mesmo nossa expectativa de vida.
....A arte sempre expressou, de alguma maneira, a relação entre as formas sociais de uma cultura. Por formas sociais entendo aquilo que, no laço social, interpela tanto a harmonia quanto sua ruptura e o caos, presentes tanto na música, como na literatura e nas artes plásticas. Como reles mortais – ou seja, fazendo parte daqueles que não tomam a seu encargo essa interpelação – colocamo-nos como espectadores, como seres supostamente passivos em todo o processo.
FASCÍNIO DO OLHAR
....O artista é aquele que fica na fronteira entre o questionamento das formas e o espectador, precisando lutar contra a intensidade de forças que o puxam para cada um desses pólos. Parece-me que muito da arte contemporânea põe a nu essa fronteira entre espetáculo e espectador, desfazendo-a e refazendo-a constantemente. Ela lida com o fascínio, elemento sempre presente, ao longo de séculos, na captura humana, na fronteira entre o caçador e a presa.
....O fascínio traz uma particularidade em relação ao olhar. É a maneira que cada um tem de confundir-se, numa indiferenciação entre si e o outro. Contrariamente ao que se poderia imaginar, esse processo não se prende exclusivamente à boa forma – à forma perfeita. Sabemos que o horror também produz fascínio. Temos, então, elementos contraditórios: por um lado o prazer de estar compondo uma cena – como se fosse do lado “de fora”, como voyeur – mas com a sensação e a percepção do lado “de dentro” da cena. Fascínio é o elemento que faz estar, ao mesmo tempo, dentro e fora.
....Alguns trabalhos da body art, ou da body modification, ou da arte carnal interpelam a ruptura dessas fronteiras. É o caso da artista Saint Orlan, que faz do momento das intervenções cirúrgicas em seu corpo uma espécie de instalação. Ela produz uma ruptura crítica de muitas de nossas referências, presentes no nosso tradicional conceito de beleza, eternizado em obras clássicas ou, incessantemente, buscado nas cirurgias plásticas. Quando faz com que algumas partes de seu rosto sejam moldadas de acordo com obras veneradas (como a testa da Mona Lisa), ela transpõe num só gesto espaços aparentemente intransponíveis, como o que consideramos sublime e profano. Interpela essa febre contemporânea de busca de uma imagem acabada que reúne técnica e estética.
.................................Orlan - Artista plástica
....O pseudônimo que adota, Saint Orlan, reúne uma representação de santidade com a designação de uma fibra sintética (orlan). Sua obra revela que nossos limites mais seguros – dentro/ fora, sujeito/objeto, corpo/técnica, corpo/natureza – o tempo inteiro se desfazem, precisando constantemente de reconstruções. São sempre dor e olhar – ou seja, o que produz fascínio – que estão em questão nessas rupturas. Enquanto estamos fascinados, nos mantemos também submetidos. Assim, a arte que nos provoca estranhamento também diz um pouco sobre uma quebra da imagem que esperamos retornar do espelho."
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