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11 de março de 2009

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"Os ensinamentos da psicanálise baseiam-se em um número incalculável de observações e experiências, e somente alguém que tenha repetido essas observações, em si próprio e em outras pessoas, acha-se em posição de chegar a um julgamento próprio sobre ela".
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(Sigmund Freud, "Esboço de psicanálise", 1938)
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Curso na Escola Lacaniana - Rio de Janeiro

Neste último sábado começou o Curso de Introdução à Psicanálise da Escola Lacaniana (Rio). Ainda dá tempo de participar...


Veja o cronograma das aulas e palestrantes
07/03 e 14/03: A história do movimento psicanalítico.
– A constituição de um campo de saber.
– Lacan – retorno a Freud.
Maria Teresa Saraiva Melloni

28/03 e 04/04: As formações do inconsciente
– O inconsciente é estruturado como uma linguagem – a lógica do significante.
– Os sonhos, atos falhos e sintomas.
– O humor no chiste.
Sérgio Cwaigman Prestes

18/04 e 25/04: Os escritos técnicos de Freud
– O início do tratamento.
– A dinâmica da transferência.
– O conceito de Sujeito suposto Saber.
Sandra Regina Felgueiras

09/05 e 16/05: As psiconeuroses de defesa – Histeria e neurose obsessiva
– A Bela açougueira e o desejo insatisfeito.
– O Homem dos ratos e a impossibilidade do desejo.
Ana Benjó

23/05, 30/05 e 06/06: Psicologia das massas e análise do eu – a questão das identificações
– Identificação por incorporação
– O mito do Pai da Horda.
– A constituição do eu ideal e ideal do eu.
– O que é um pai em psicanálise?
– Supereu – resíduo inassimilável do pai.
Ana Claudia Bezz e Flávia Chiapetta de Azevedo

08/08, 15/08, 22/08 e 29/08: Inibição, sintoma e angústia
– Inibição – o sintoma posto no museu.
– Sintoma – .Os sintomas neuróticos.
.A entrada em análise ou a constituição do sintoma analítico.
– Angústia – .O estranho/familiar – a angústia não é sem objeto
.Acting out e passagem ao ato.
.Angústia entre desejo e gozo.
Abílio Ribeiro Alves e Luciana Abi-Chahin Saad

12/09 e 19/09: Bate-se numa criança ou A fantasia em Freud e Lacan
– Os tempos da fantasia.
– A fantasia como resposta ao Desejo do Outro
– A travessia da fantasia.
Ana Paula Gomes

26/09, 03/10, 17/10 e 24/10 : Além do princípio do prazer e a problemática do gozo
– As pulsões e seus destinos.
– A pulsão de morte – além do princípio do prazer.
– O problema econômico do masoquismo.
– A repetição.
Andrea Matheus Tavares e Monica Visco

31/10 e 07/11: Análise terminável ou além do rochedo da castração
– O rochedo da castração e o impasse freudiano.
– O final de análise e o luto do analista.
– O dispositivo do passe.
Teresa Palazzo Nazar

14/11 e 28/11: A formação do analista
– O conceito de Escola – a formação permanente.
– O tripé da formação do analista.
José Nazar

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Local: Av. Ataulfo de Paiva, 255, sala 206 – Leblon/RJ
Preços por semestre:

Profissionais: R$ 120,00/ Estudantes: R$ 60,00

9 de março de 2009

Vi no Significantes...

O INCONSCIENTE É UM SABER


Deve-se a Lacan o fato de ter ressaltado um segmento nuclear da obra de Freud, indicado já no título do escrito que, segundo ele próprio afirma, inaugura seu ensino, "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise" (1953).

De fato, tal segmento encontra sua formulação princeps no aforismo lacaniano segundo o qual "o inconsciente é estruturado como uma linguagem", por meio do qual Lacan trouxe a psicanálise de volta a seu campo específico - o da linguagem -, do qual precisamente os analistas pós-freudianos haviam se afastado. Lacan afirma aí que "a descoberta de Freud é a do campo das incidências, na natureza do homem, de suas relações com a ordem simbólica, e do remontar de seu sentido às instâncias mais radicais da simbolização no ser. Desconhecer isso é condenar a descoberta ao esquecimento, a experiência à ruína"(1).

Este segmento da obra de Freud, passível de ser isolado em seus extensos desenvolvimentos sobre a linguagem, foi chamado por Lacan de simbólico.

Partindo da evidência, embora pouco focalizada até então, de que a psicanálise opera através de um único meio, a palavra do analisando, Lacan estabelece na obra de Freud a relação ineludível entre as diversas formações do inconsciente e a linguagem, através da qual elas necessariamente se manifestam.

A esse respeito, Lacan acentua a importância de três textos freudianos iniciais - A interpretação dos sonhos (1900), A psicopatologia da vida cotidiana (1901) e Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905) -, considerando-os como "canônicos em matéria de inconsciente"(2). Esses três textos podem ser considerados como três batidas de tambor que, tal como as três sinetas do teatro, ou os três toc-toc-toc do sujeito à porta, anunciam a descoberta do inconsciente(3). Neles, o que Lacan destaca é o modo pelo qual o inconsciente opera, como Freud já pudera salientar, seja produzindo condensações e deslocamentos ao longo das palavras "sem levar em conta o significado ou os limites acústicos das sílabas"(4), seja manifestando "realmente uma preferência por palavras cujo som exprima diferentes significados"(5).

É digno de nota o fato de que a pesquisa freudiana sobre o inconsciente o leva a abordar uma série de fenômenos limítrofes: ora aqueles que até então haviam sido relegados às abordagens obscurantistas, como os sonhos; ora aqueles desprovidos de interesse para o discurso da ciência, como os chistes, atos falhos, lapsos de linguagem e esquecimento de nomes; ora ainda aqueles fenômenos incompreendidos pelo discurso médico, como os sintomas neuróticos, as alucinações e delírios psicóticos e as chamadas perversões sexuais.


...........................................Tela de Enzo Ferraz (enzosf@bol.com.br)

Para Lacan, o discurso psicanalítico renovou a questão do saber colocada por Descartes, pois "a análise veio nos anunciar que há saber que não se sabe, um saber que se baseia no significante como tal"(6). Considerando o inconsciente como um saber, Lacan afirma que o ato falho é, com efeito, um ato bem-sucedido, posto que através dele a verdade do sujeito se desvela ainda que à revelia do eu: "O que Freud suporta como o inconsciente supõe sempre um saber, e um saber falado. O mínimo que supõe o fato de que o inconsciente possa ser interpretado, é que ele seja redutível a um saber"(7).

Um saber muito particular, acrescentaria Lacan posteriormente, pois trata-se de um saber que funciona sem mestre e se dá enquanto um saber verdadeiro. É o que se pode ler na fórmula do discurso psicanalítico, único discurso no qual o saber, S2, ocupa o lugar da verdade(8). Nesse sentido, Jean-Jacques Moscovitz chama atenção para o fato de que o termo alemão que designa o inconsciente, Unbewusste, significa literalmente insabível(9) e acrescenta que o consciente seria um saber que se sabe e o inconsciente um saber que não se sabe.

São muitas as passagens em que Lacan desenvolve esta que é uma de suas idéias mais fundamentais, a de que o inconsciente é um saber. No seminário Mais, ainda, por exemplo, ele afirma que "o inconsciente é o testemunho de um saber, no que em grande parte ele escapa ao ser falante"(10) e, nesse sentido, "se o inconsciente nos ensinou alguma coisa, foi primeiro o seguinte: que em alguma parte, no Outro, isso sabe"(11) . Em uma de suas "Conferências norte-americanas", Lacan afirma igualmente que a descoberta do inconsciente "é a descoberta de um tipo muito especializado de saber, intimamente nodulado com o material da linguagem"(12). Repare-se que a mesma concepção do inconsciente como um saber Outro surge na definição lacaniana de determinados mecanismos fundamentais: o desconhecimento ativo próprio ao recalcamento designa, para Lacan, um "não querer saber de nada disso". (13)Além disso, e mais essencialmente, é preciso acrescentar que se Lacan ressalta que o inconsciente é um saber, trata-se de um saber que vem preencher a falta de saber instintual - pois o instinto animal é uma forma de saber inscrito no organismo vivo(14) -, falta essa inerente ao sujeito humano desde seu nascimento: "o ser humano manifestamente não tem nenhum saber instintual" e, nesse sentido, pode-se afirmar que "só há o inconsciente para dar corpo ao instinto"(15).


...........................................Tela de Enzo Ferraz (enzosf@bol.com.br)

Ainda em outra passagem de suas Conferências norte-americanas, Lacan esclarece a questão da relação entre o inconsciente e o instinto faltoso para o sujeito humano nos seguintes termos: "[...] o saber constitui a substância fundamental daquilo de que se trata no inconsciente. O inconsciente, nós imaginamos que é alguma coisa como um instinto, mas isto não é verdade. O instinto nos falta inteiramente, e a maneira pela qual reagimos está ligada não a um instinto, mas a um certo saber veiculado não tanto por palavras quanto pelo que eu chamo de significantes"(16).

Contudo, o saber inconsciente - o simbólico - apresenta um ponto de não-saber - real - em torno do qual toda a estrutura orbita: trata-se da diferença sexual que se recusa ao saber.

O que significa que o inconsciente é um saber que vem tentar preencher a falha instintual, mas não a preenche completamente: em termos freudianos, resta sempre a não-inscrição da diferença sexual, o que Lacan traduziu como a falta do significante do Outro sexo e escreveu com o matema S(A), considerado como uma verdadeira matriz da estrutura:

Inconsciente estruturado como uma linguagem -> Saber -> Simbólico -> A
Núcleo do inconsciente -> Não-saber instintual -> Real -> S(A)

É nesse sentido que Freud menciona, desde seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, as teorias sexuais infantis, que são tentativas da criança de produzir um saber sobre o enigma da diferença sexual, aquilo que precisamente não possui saber inscrito e escapa à possibilidade de inscrição.

Lembremos que o inconsciente - missing link - representaria, assim, um saber que veio preencher a falha deixada na espécie pela adoção da postura ereta e a conseqüente perda do vínculo instintual preponderante nos mamíferos, o olfato(17).

É bastante surpreendente averiguar que a novidade da idéia lacaniana do inconsciente como um saber já se encontra, contudo, enunciada de modo embrionário na obra de Freud, que utiliza esta expressão numa passagem do primoroso livro sobre Os chistes e sua relação com o inconsciente: "Sabemos de um sonho aquilo que, via de regra, se parece a uma lembrança fragmentária que nos ocorre depois de despertar.

Tal lembrança aparece como uma miscelânea de impressões sensoriais, principalmente visuais mas também de outros tipos, que simula uma experiência e à qual podem ser misturados processos de pensamento (o 'saber' no sonho) e expressões de afeto". Ainda em outra passagem de uma das conferências introdutórias sobre os sonhos, Freud apóia sua argumentação sobre a técnica de interpretação dos sonhos baseada nas associações do sonhador na idéia de que o sonhador sabe o que seu sonho significa, "apenas não sabe que sabe, e, por esse motivo, pensa que não sabe"(18).

O sujeito sabe sem saber que sabe - e isso constitui o saber do psicanalista mais essencial, o saber de que há sujeito do inconsciente, saber ao qual ele só pode ter tido acesso através de uma experiência de análise pessoal.

COUTINHO JORGE, Marco Antonio

Seminário: INTRODUÇÃO Á PSICANÁLISE


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Seminário: TRANSTORNOS ALIMENTARES

Clique na imagem para ampliar.
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5 de março de 2009

Automutilação - Marcas do sofrimento na pele


o que levaria uma pessoa a se ferir ?
A questão da auto-mutilação é muito mais comum do que parece e acontece por inúmeros motivos. Li uma matéria na MarieClaire que fala bem do assunto:

Os cortes que aliviam a dor da alma

Machucar a pele para aquietar a mente. Assim os praticantes da automutilação definem o transtorno que os persegue. Eles se batem, se queimam, até quebram os ossos em momentos de raiva ou tristeza profunda. Aqui você vai ler o relato e os trechos do diário de uma jovem de 25 anos que dilacerava a pele quando o sofrimento interno era insuportável. Ela diz que não se mutila há um ano e três meses, mas ainda luta para superar a depressão


A artista plástica Beatriz*, 25 anos, poderia ser uma jovem comum, dessas que gostam de ir ao cinema, namorar e sonham em construir uma carreira. Mas por baixo das roupas, ela esconde um segredo: cicatrizes de várias formas e tamanhos. Profundas, rasas, algumas pequenas, outras nem tanto. As marcas na pele de Beatriz não existem por causa de um acidente, mas porque ela mesma as provocou. Até pouco tempo atrás, cortava-se com estiletes e facas de cozinha para aliviar a dor de viver. Em outras palavras, provocar dor física, rasgando a pele, deixava a alma momentaneamente calma. Dava prazer. Mas também vergonha -que, assim como as cicatrizes, ficou até hoje. Por isso ela não revela sua identidade. 'Sempre escondi de todos que eu me cortava. A vergonha era tanta que nunca fui ao pronto-socorro dar pontos nos cortes, por mais que soubesse que eles eram necessários', diz.
Beatriz começou a se automutilar na adolescência, aos 12 anos, quando ela se frustrou profundamente com uma nota baixa (D) em uma prova de inglês. Inconformada e com raiva de si mesma, começou a bater a cabeça na parede. Era hora do recreio e a sala estava vazia. Só parou quando a cabeça latejou. O galo roxo no meio da testa trouxe calma, alívio e tranquilidade. 'Fiquei decepcionada comigo mesma. Sempre fui muito perfeccionista, tinha quer ser a melhor em tudo. Na prova seguinte tirei A.' Beatriz descobriu, então, um remédio acessível e eficiente para estancar a dor: machucar o corpo. Daquele dia em diante, começou a se dar tapas, mordidas e socos nos braços e nas pernas todas as vezes em que ficava triste ou com raiva. Dez anos mais tarde, no auge de uma crise de depressão, começou a se cortar com arames, facas, lâminas e qualquer objeto afiado que estivesse ao seu alcance. Mutilou braços, pernas, tornozelos e mãos.
Há três anos, Beatriz faz sessões de terapia com uma psicóloga e toma remédios para superar a automutilação, um transtorno emocional antigo, mas pouco estudado pela ciência. Tornou-se mais conhecido nas últimas semanas, depois do episódio da advogada brasileira Paula Oliveira. Ela foi acusada pela polícia suíça de se automutilar para conseguir indenização do governo, alegando que os cortes foram feitos por neonazistas.
Os automutilados se batem, se cortam, se queimam e até quebram os ossos quando não conseguem lidar com a angústia, a tristeza, a raiva e outros sentimentos difíceis de suportar. Eles não querem pôr fim à própria vida com os cortes. No início, desejam apenas se punir, mesmo que inconscientemente. O primeiro machucado quase sempre acontece por impulso. Muitos dão socos nas paredes, furam as mãos com a ponta do compasso, da lapiseira, com a lâmina do estilete ou um caco de vidro durante um acesso de raiva. Depois de machucados, dizem que se sentem aliviados. A dor física ameniza a emocional. Lesionar-se intencionalmente acaba se tornando a saída para os momentos dolorosos, um vício, como drogas ou álcool.
No Brasil não existem números oficiais da quantidade de pessoas que se machucam para aliviar dores psíquicas. Só no Orkut existem mais de 20 comunidades relacionadas ao assunto. As maiores têm cerca de 600 participantes. Lá, pode-se ler relatos macabros. Em um deles, um participante que se diz gay afirma ter cortado o pênis por não lidar bem com a homossexualidade. 'Cortei o que me incomoda', escreve. No site YouTube, também há vídeos sobre o transtorno, muitos deles feitos por adolescentes que exaltam a automutilação.
Nos Estados Unidos, os estudos são mais avançados. Uma pesquisa publicada em 2006 mostrou que 17% dos jovens entre 18 e 24 anos em uma universidade americana já haviam se cortado intencionalmente uma vez na vida. E 75% deles levaram a prática adiante, sem a intenção de se suicidar. Wendy Lader, presidente da clínica americana S.A.F.E. Alternatives, especializada no tratamento do transtorno, diz que apesar da falta de estatísticas, percebe um crescimento no número de pacientes. 'Em 22 anos de trabalho já tratamos três mil pessoas. Nos últimos anos passamos a ser procurados por indivíduos comuns, médicos e educadores do mundo todo interessados em mais informações. A maioria conhece o problema porque alguém próximo se machuca e logo depois nos procura.'
No Brasil, a maioria dos automutilados ainda está desamparada. O único centro de terapia por aqui é o Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso, ligado ao Hospital das Clínicas (HC), em São Paulo, que trata vários transtornos psiquiátricos, entre eles a automutilação, onde Beatriz faz terapia. 'Antes de conhecer o HC, fui a três psiquiatras que ficaram assustados com o meu problema e não sabiam o que fazer', diz. 'Saí desolada de uma consulta porque o melhor profissional que visitamos mostrou despreparo e me perguntou qual remédio deveria receitar', diz Joana*, mãe de Beatriz.
A origem do transtorno ainda é confusa para os especialistas. Uma parte dos estudiosos defende a ideia de que a autolesão é, sim, uma doença em si. Acreditam na hipótese de que os cortes liberariam mais endorfina em algumas pessoas do que em outras. Quando a substância age no cérebro, provoca sensação de bem-estar que diminui a ansiedade e a tristeza. É dessa maneira que a mutilação acaba se tornando um vício. A outra parte dos especialistas acredita que a automutilação é um sintoma de doenças emocionais, como a depressão. 'Geralmente, está associada a outros transtornos como a dependência química', diz a psiquiatra Jackeline Giusti, responsável pelo ambulatório do HC. 'A maioria das pessoas que se mutila tem dificuldade de lidar com a vida sentimental. Algumas foram abusadas sexual ou fisicamente na infância. E metade delas sofre de algum distúrbio alimentar', diz Wendy, da S.A.F.E.

O COMEÇO DO DESCONTROLE
À primeira vista, Beatriz parece uma jovem alegre. É morena, alta e tem um sorriso largo. A dificuldade em olhar nos olhos dos estranhos sugere timidez. As respostas monossilábicas comprovam. Com o passar do tempo, ela se solta, se mostra simpática e muito bem articulada. Risonha até. Mas quando discorre sobre os momentos mais difíceis da sua vida, abaixa a cabeça e o tom de voz. Silencia. Fala pouco, não faz perguntas nem sorri. Mantém o olhar fundo e distante. E até se contradiz para responder rapidamente a perguntas nitidamente incômodas. Age como quem quer se livrar da memória.
Filha única de pais separados, ela teve uma infância comum. Era boa aluna na escola e fazia aulas de inglês, teclado e natação. Morava com a mãe numa cidade do interior do estado de São Paulo e passava os fins de semana na casa do pai. A convivência familiar era harmoniosa. Ela adorava dar festas de aniversário. Mas aos 11 anos perdeu o contato com o pai por causa de brigas entre ele e sua mãe. A convivência com Leandro*, o padrasto, que viera morar em sua casa, também era difícil. Ela diz que não aceitava as ordens dadas por ele e também tinha ciúmes do padrasto com sua mãe. 'Me senti duplamente abandonada: pelo meu pai, que deixou de me ver, e pela minha mãe, que começou um relacionamento novo', diz. Por causa dos problemas familiares, Beatriz entrou na adolescência como uma menina triste e solitária. Foi se afastando dos amigos, até que os perdeu completamente. Aos 21 anos, entrou em depressão profunda.
Beatriz começou a se cortar aos 22. Estava na faculdade fazendo um trabalho com arame. Frustrada por não conseguir pôr suas ideias em prática, começou a chorar desesperadamente. Sentou no chão, pegou um fio de arame e começou a desenhar listras nos braços. Não chegou a se arranhar, mas aquilo fez com que se sentisse melhor. Beatriz levou o arame para casa. Na segunda vez, também se arranhou. Na terceira, poucos dias depois, se cortou. 'Comecei a me mutilar todas as vezes em que sentia raiva de mim mesma ou culpa de errar. Sempre fazia isso escondido. Não queria que ninguém soubesse. Às vezes era por um motivo bobo: porque eu tropeçava na rua e me sentia ridícula (eu não podia ser ridícula). Quando sentia que chateava alguém, quando brigava com a minha mãe, quando sentia saudade, quando me frustrava. Ao mesmo tempo que a mutilação era uma forma de punição, era também uma redenção. Era um sentimento ambíguo', afirma. 'Uma vez me cortei porque liguei para uma amiga para dar parabéns no seu aniversário e ela me disse, chorando, que o melhor presente que eu poderia dar era parar com a mutilação. Aquilo foi horrível para mim.'
Durante dois anos, Beatriz diz que se cortou quase todos os dias, inclusive quando estava feliz. 'No dia em que entreguei a minha pesquisa de iniciação científica, meu orientador disse que estava tudo certo, que o trabalho estava bom e me encheu de elogios. Fiquei muito feliz, mas era como se não pudesse sentir aquilo. Ao mesmo tempo, me cortar também era uma alegria. Aumentava minha felicidade. É difícil explicar... Então me cortei.' Com o tempo, as colegas de república estudantil e os amigos de faculdade descobriram que Beatriz se mutilava. Foi ela mesma quem contou para alguns deles. A reação dos mais próximos, segundo conta, foi de chegar ainda mais perto para tentar ajudar. As companheiras de apartamento vigiavam-na, faziam companhia, conversavam. 'Mas em um segundo momento as pessoas se cansaram, foram se enchendo o saco porque eu continuava com o mesmo comportamento. Não aguentaram a situação e se afastaram. E eu fiquei pior ainda. Perdi grandes amigos. E as amizades que não perdi ficaram profundamente abaladas.'
...................................................Imagem do diário de Beatriz
AS ETAPAS DO TRANSTORNO
O caminho da automutilação é semelhante ao do vício em drogas. Os cortes começam pequenos e rasos, assim como o vício pelas drogas pode começar com um pega de baseado. À medida que o tempo passa, os cortes também aumentam de tamanho e profundidade, e se tornam tão pesados e destrutivos como uma pedra de crack. 'Só parava de me cortar quando conseguia fazer o corte perfeito. Precisava ter uma simetria. Se fazia um no braço direito, tinha que fazer no mesmo lugar, no braço esquerdo. Comecei com dois cortes, um em cada braço, e cheguei a fazer 30 cortes de uma só vez', diz. 'Se não encontrava o corte perfeito, só parava quando me assustava, quando minha pele estava toda retalhada, destruída.' Variar o instrumento também é importante. 'Teve um momento em que o arame deixou de me satisfazer. Passei para o estilete. Depois a gilete. Mas também usava outras coisas: a ponta do compasso, faca de cozinha, agulha e até cigarro. Nunca fumei, só comprei para me queimar', afirma.
A maioria das vezes em que Beatriz se mutilou foi dentro de casa. 'De manhã ia para a faculdade e não dava para fazer aquilo lá porque alguém poderia perceber. À tarde era um período muito difícil para mim por causa da depressão. O tempo demorava para passar e eu ficava sozinha. Então tomava muitos remédios, até dez de uma só vez. Não queria me intoxicar, só queria que aquela angústia passasse. Mas a consequência é que dormia muito. Me cortava no final do dia, quando acordava. Colocava Elis Regina no som, uma toalha em cima da cama e deitava em cima. Me cortava e gostava de ficar vendo o sangue escorrer. Até brincava às vezes com o sangue, fazia desenhos no meu corpo, passava de uma mão para outra. Aquilo me distraía. Depois entrava no banho, onde também cheguei a me cortar. Quando terminava tudo, quando estava mais calma, lavava a toalha e limpava as gotas que tinham caí-do no chão', diz. 'Depois de um tempo você aprende que partes do corpo sangram mais. O tornozelo, por exemplo, sangra muito. Durante uma época, cortava a palma da mão para não ficar marca, para as pessoas não verem.'
Beatriz diz que não se corta há um ano e três meses. Durante o processo de recuperação, escreveu um diário que traz relatos impressionantes e elucidadores sobre a mente das pessoas que se mutilam. 'Estive pensando nisso. Por mais profundo que seja o corte, já não sinto dor. Será possível que meu corpo, sabendo que meus atos de agressão são conscientes, já não precise da dor como alerta? Das últimas vezes senti náuseas, por tempo prolongado, o que não aconteceu antes. Talvez pela dimensão dos meus atos', escreve.
'Como seria minha vida sem os remédios? Nas últimas semanas, as cápsulas de felicidade foram trocadas e fizeram (ainda estão fazendo) uma rebelião contra o meu corpo. Náuseas, dor de cabeça, tontura. E, além do mais, uma tristeza irreparável, irreprimível, nem mesmo por um mar de sangue. Hoje experimentei a ponta de um compasso depois de uma difícil sessão de vômitos. Tantas coisas na minha cabeça que me canso. Tantas coisas no meu corpo que quero ser ar!'
A cicatriz que ela diz ser o último corte feito mede cerca de três centímetros por cinco e está localizada na batata da perna. É mais escura e mais saliente que o restante da sua pele. Sua mãe havia recebido um convite para uma festa e só podia levar um acompanhante. Chamou o padrasto e Beatriz ficou enciumada. Para muitos, o motivo pode parecer pequeno. Mas para ela não. 'A automutilação traz um prazer interno enorme. Sabe quando você sente um frio na barriga, quando está tudo muito ruim? Depois que eu me cortava, é como se sentisse soltar toda a pressão do balão', afirma.

Beatriz diz que foi a psicóloga quem conseguiu convencê-la a parar com a mutilação. 'Ela me convenceu de que não era legal. Eu não via problema nenhum. Era uma coisa boa, um bem que fazia a mim mesma. Parei para agradar os outros, e não a mim. Eu via que minha mãe ficava desesperada . Quem estava por perto ficava alarmado.' Mas hoje acha que a automutilação é ruim? Silêncio. 'Espero que um dia fale que não quero mais. Por mais que pense diferente agora e saiba que existem outras maneiras de lidar com a vida, acho que...' Respira fundo, desvia o olhar, tamburila os dedos sobre um livro e emudece. 'Sempre vai ter uma vontadezinha, não tem jeito.'

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