Esta antiga questão volta a se colocar nos quatro debates entre psicanalistas e artistas gaúchas, com participação da platéia, nos encontros do Happy Hour cultural do MARGS. Se a arte e a feminilidade (e também a psicanálise) possuem características fundamentais em comum, a rigor não faz nenhuma diferença que o artista seja homem ou mulher, assim como o sexo do psicanalista não deve fazer grande diferença na condução de uma análise, a não ser no que se refere ao imaginário da transferência por parte do analisando. Muito do que se disse, nas entrevistas e nos debates sobre os trabalhos de Claudia Stern, Liana Timm, Heloísa Crocco e Karim Lambrecht poderia se aplicar a obras criadas por artistas de sexo masculino. Que a obra de arte seja produto de uma inquietação, da falta-a-ser, e que seu sentido, enigmático para o próprio artista, só se revele depois, no contato da obra com o público (Stern). Que a mola da criação artística seja uma insatisfação, e a obra afirme a potência do(a) artista que estende seu alcance de simbolização até o limite imposto pelo real (Timm). Que o belo seja aquilo que recobre o vazio, e sua materialização exija do(a) artista uma capacidade especial para suportar a angústia diante deste mesmo vazio (Crocco). Que o(a) artista seja aquele capaz de se debruçar sobre o abismo e criar um contorno que deixe “entrever o real, a morte, o nada” (Lambrecht). Que a arte, sobretudo na modernidade, seja a expressão simbólica da violência, da crueldade que nos habita (ainda Karim Lambrecht, a respeito de seus “banhos de sangue”). Que diferença faz, em todos esses casos, que o artista seja uma mulher? Alguma diferença, sim. Mas...não toda. A primeira diferença se dá no plano das significações imaginárias que atribuímos à sensibilidade artística das mulheres. Ainda é novidade que mulheres assinem seu nome em obras que ocupam os grandes espaços das cidades. O anonimato feminino perdurou por quase toda a história da humanidade, com raras exceções pontuais aqui e ali, e mesmo no último século, quando foi rompido, o máximo que se admitia era que as mulheres produzissem obras discretas, intimistas, confessionais - obras de interesse exclusivo de outras mulheres, que dissessem respeito apenas à experiência privada das mulheres. Muitas das obras das artistas aqui apresentadas estão nas ruas, nas praças, nos saguões de grandes bancos e de shopping centers, contribuindo para romper mais um estereótipo a respeito da delicadeza feminina. Por que as mulheres estariam limitadas à expressão dos sentimentos delicados, da intimidade, do que é vivido em segredo? Por que os estereótipos ligados à vida doméstica continuam tão presentes nas representações sociais do que seja "próprio" das mulheres, quando há quase um século as mulheres já romperam a barreira da privacidade e vêm participando cada vez mais da vida pública? Penso que existe uma inércia, característica das formações culturais, que faz com que continuemos nos valendo de representações estabelecidas para dar conta de fenômenos novos, até que - "só depois" - uma nova expressão possa emergir. À impossibilidade lógica da existência de um conjunto fechado que defina A Mulher, por falta de uma exceção que faça regra, somou-se a invisibilidade histórica das mulheres, o silêncio histórico das mulheres. A Mulher não existe e as mulheres, ao longo de séculos, não se fizeram representar no campo da cultura a não ser como objetos da fantasia dos homens. No entanto algo se produziu no anonimato secular, algo se transmitiu de geração em geração. Técnicas sutis de manipulação silenciosa, micro poderes tecidos na intimidade, na sutileza, nas artes insinuantes elaboradas por gerações e gerações de mulheres que se calavam, delegando ao outro a responsabilidade de falar por elas. O que se produziu no anonimato e na opressão (consentida ou não) secular das mulheres foi a ilusão de uma leveza, de uma delicadeza – típicas armas usadas pelos mais fracos para dominar seus senhores sem despertar a fúria deles. O que se produziu no anonimato foram as artimanhas que, até hoje, confirmam a ilusão da leveza feminina. Porque a feminilidade não é leve. Não há razão para que seja leve, a não ser razões de estratégia. Se a feminilidade é o que ultrapassa a lógica fálica, o que se aproxima da morte, do inominável, do sinistro – por que haveria de se caracterizar pela leveza, pela delicadeza, pela graça dos véus que metaforizam as artimanhas do oprimido do diante do opressor, ou que representam a expressão da mulher silenciada diante do detentor da palavra?
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...........................................................Continua...
......................................Fotografia: R. Mapplethorpe
Quem chegou agora pode ler a primeira parte deste texto aqui.
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