.
.

29 de dezembro de 2008

A psicopatologia na pós-modernidade - As alquimias no mal-estar da atualidade (Parte 4 de 4)

VII. Dentro-de-si e fora-de-si
Perde-se a densidade e a profundidade, transformando-se então o sujeito numa espécie de superfície plana, margeada pela moldura de um enquadre? É disso que se trata, afinal de contas? Transforma-se a cena do mundo num contraponto de reflexões especulares, onde a refração não perfura jamais o jogo encantado entre o olhar e o espelho? Rigorosamente falando, posso afirmar somente que eu não sei nada disso. São indagações legítimas que deve nos levar adiante, aprofundá-las, como questões cruciais que são, pelo trabalho do pensamento.
Contudo, de tudo isso algo de fundamental se destaca, que concerne à maneira pela qual a tradição ocidental representou a loucura, na sua matriz antropológica. Algo de original se anuncia aqui, indicando uma ruptura significativa com a representação da loucura iniciada no século XVI, que devemos ficar bem atentos.
O comentário que posso fazer sobre isso é que a concepção de sujeito fora-de-si – que no pensamento ocidental se identificou sempre com a loucura, numa longa tradição iniciada com Montaigne, passando por Descartes, Kant e Hegel – recebe uma outra inflexão, plena de novidades para a reflexão teórica. Com efeito, o sujeito fora-de-si não se confunde mais, de maneira absoluta, com a concepção de alienação mental, tal como foi estabelecido pelo discurso psiquiátrico na aurora do século XIX. Isso porque o estar fora-de-si se identifica agora com a exterioridade da performance teatral, enjambrado que é o cenário da existência pelas lantejoulas e pelos coturnos que evidenciam o autocentramento da subjetividade. Porém, isso não é tudo. Além disso, é preciso evocar que se anteriormente o sujeito fora-de-si era representado de maneira absolutamente negativa, pois era, então, identificado apenas com a psicose e com a perda da razão, do eu e da interioridade, aquele é agora parcialmente concebido de maneira positiva, já que pelo autocentramento se dedica interminavelmente ao polimento de sua existência. Vale dizer, se dedica à sedução e ao fascínio do outro, pela mediação capturante das imagens exibidas na cena social.
Tudo isso tem conseqüências fundamentais na construção do discurso da psicopatologia na atualidade. Assim, se o sujeito dentro-de-si, demarcando a noção de interioridade, não define mais o ser do sujeito de maneira absoluta, rompendo uma longa tradição iniciada no século XVI, isso implica em reconhecer que a oposição dentro-de-si e fora-de-si perde o poder simbólico de delinear os territórios e os limites entre o sujeito e o outro. Por isso mesmo, as noções de alteridade e de intersubjetividade se esvaziam e tendem ao silêncio na sociedade narcísica do espetáculo. Além disso, neste apagamento de fronteiras entre o dentro-de-si e o fora-de-si a idéia de temporalidade se esvai, entrando em colapso. A subjetividade tende a ganhar contornos espaciais, definindo-se por superfícies de contato e de superposição. Conseqüentemente as idéias de história e de temporalidade vão desaparecendo da racionalidade psicopatológica, sendo substituída pela noção de espaço. Enfim, a noção de memória se evapora progressivamente, num mundo subjetivo espacializado, onde a historicidade e a temporalidade não importam mais.
Pode-se depreender disso a perda de lugar das psicoses no discurso psicopatológico na atualidade, à medida que aquelas eram as representações paradigmáticas do sujeito fora-de-si. Por isso mesmo, as psicoses ocuparam o lugar privilegiado no discurso psiquiátrico desde as suas origens, até o final dos anos 70, porque polemizavam o estatuto do sujeito fora-de-si em oposição ao sujeito dentro-de-si. Em contrapartida, as perversões estão investidas de tudo a interesse possível, à medida que estas configuram a situação estratégica onde se apagam as fronteiras entre o sujeito dentro-de-si e o sujeito fora-de-si.
Enfim, o discurso psicopatológico da pós-modernidade recebe no seu corpo teórico este conjunto de transformações antropológicas que transformaram as maneiras de conceber o sujeito, subvertendo hierarquias e valores que marcaram a modernidade, como indicamos.
VIII. Alquimias
Dito tudo isso, pode surpreender quais as relações secretas que fundam a psicopatologia da pós-modernidade. É possível indicar agora as relações enigmáticas entre as depressões, as toxicomanias e a síndrome do pânico, que delineiam o campo clínico preferencial da nosografia funcional da psiquiatria na atualidade.
Assim, na cultura da exaltação desmesurada do eu não existe mais qualquer lugar para os deprimidos e os panicados. Esses são execrados, lançados no limbo da cena social, já que representam a impossibilidade de serem cidadãos da sociedade do espetáculo. Com efeito, a interiorização excessiva do depressivo, marcado pelas cavilações suspirosas, assim como o terror fóbio, que toma de corpo inteiro a individualidade panicada na cena pública, evidenciam como tais individualidades não conseguem realizar a tão esperada exaltação de si mesmo e se dedicar à artesania de seus figurinos maneiros para se mostrar com brilho na cena social.
A melancolia e o estilo sofredor de ser não estão mais na moda, definitivamente, como se passava ainda com as gerações existencialistas e beat, dos anos 40, 50 e 60. Da mesma forma, as pessoas com estilos mais retraído, reflexivo e sonhador não se coadunam mais com a ética vigente da exaltação do eu e do exibicionismo. A mundaneidade pós-moderna valoriza os carreiristas e os oportunistas, que sabem utilizar os meios de se exibirem e de capturarem o olhar dos outros, independente de qualquer outra coisa que esteja em jogo em termos de valores. Daí porque existe um certo conservadorismo político no universo pós-moderno, à medida que a modernidade sempre foi associada à ética da ruptura e da utopia em oposição ao exibicionismo barato.
Desta maneira, para os ferrados, que não conseguem dizer "cheguei", de peito inflado, a fórmula mágica é a alquimia, para mudar a circulação dos humores. É preciso dar uma pancada química na bílis negra, nos dizem os novos especialistas da alma sofrentes. Por este meio seria possível, acreditam aqueles, retirar as individualidades do cenário dark e inseri-las na cena colorida da representação e do espetáculo. Como os humores são essências eternas e universais destituídas de história e de memória, basta a incidência de certas dosagens alquímicas para balançar a economia dos humores para outros pontos de equilíbrio. Enfim, o caldeirão científico da feiticeira pode tudo regular de maneira funcional e pontual, ajustando os desequilíbrios humorais.
Pelo hino cientificista, as toxicomanias são as prima Donna desta ópera burlesca, seja pelos psicofármacos supostamente medicamentosos, seja pelas ditas drogas pesadas, a química dos humores pretende instituir o élan exaltado e fascinante nos pobres coitados que não conseguem alçar o vôo e serem "bons" cidadãos da sociedade do espetáculo.
Estou afirmando com isso, que existe um processo de produção social das toxicomanias, pelas vias da medicalização psiquiátrica e do mercado de drogas pesadas, que encontra as suas condições de possibilidade na ética da sociedade do espetáculo e do narcisismo. É por isso que na seriação das grandes perturbações do espírito da pós-modernidade, as toxicomanias se inscrevem lado a lado com as depressões e a síndrome do pânico. Com efeito, se as alquimias científicas autorizadas pelas neurociências são os antídotos para as depressões e a síndrome do pânico, as toxicomanias são o desaguadouro necessário desta forma de intervenção terapêutica e de seus desdobramentos inequívocos na cena do social. Enfim, no estado de inebriamento tóxico as individualidades se sentem como cidadãos de direito da sociedade do espetáculo, nem que seja por um tempo limitado.
Na tragicomédia da cultura extasiante dos humores e dos brilharecos, a psicanálise entra inevitavelmente em crise, já que como saber sobre o desejo tem muito pouco a dizer sobre isso tudo, já que foi em face da exaltação inebriante do eu que aquela sempre se confrontou. Pretendendo realizar a desconstrução da majestade clownesca do eu, a psicanálise se funda numa ética que se choca com os pressupostos da ontologia do espetáculo. Como é que aquela vai sair desse imbróglio, se é que sairá inteira deste confronto de Titãs, já é um outro capítulo sobre o mal-estar na atualidade.
Paris, 5 de fevereiro de 1998.
Resumos
La intención de este estudio es la de circunscribir la especificidad de la psicoatología en la post-modernidad. Para eso busca demostrar las relaciones daquella con la medicina y las neurociencias, asi como su rechazo del psicoanálisis. Pretende, además, mostrar que el interes actual de la psiquiatria en las investigaciones sobre las depresiones, las toxicomanias y la sindrome del panico, puede ser interpretada a partir de los modelos de subjetividad promovidos por el mundo post-moderno.
Il s’lagit de bien circonscrire le discours de la psychopathologie dans la post-modernité. On veut démontrer donc les rapports de celui-là avec la médecine et les neurosciences, ainsi que son refus de la psychanalyse. En outre, on veut montrer comment l’intêret acutel de la psychiatrie poar les recherches sur les dépressions, les toxicomanies et la syndrome du panique peut être interpreté selon les modèles de subjectivité remarqués dans le monde post-moderne.
The intention of this paper is to circunscribe the psychopatology in the post-modernity. To achieve that the author attemps to demonstrate the psychopatology relationship with the medicine and the neurosciences, as its repulse of the psychoanalysis. Besides that author intends to display how the nowadays interest of the psychiatry in the researches about the depressions, the toxicomanies and the panic syndron can be understood by the subject’s models fostered by the post-moderne world.
NOTAS
1. M. Foucault. Naissance de la clinique. Une archéologie du regard medical. Paris, Presses Universitaires de France, 1963.
2. M. Foucault. Histoire de la folie à l’âge classique. Paris, Gallimard, 1972.
3. J. Birman. A psiquiatria como discurso da moralidade. Rio de Janeiro, Graal, 1978.
4. Sobre isso, vide J.E.D. Esquirol. Des maladies mentales. Volumes I e II. Paris, J.B. Baillière, 1838.
5. G. Débord. La societé du spetacle. Paris, Gallimard, 1994.
6. C. Lasch. The culture of narcissism. New York, Warner Bases Books, 1979.
.
Joel Birman
.

Nenhum comentário: