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6 de junho de 2009

Luto, a dor de quem fica

Vi no Veja.com

Voo 447: a dor de quem fica

Em situações trágicas como a que se configura com o desaparecimento do voo 447 da Air France, na madrugada da segunda-feira, as primeiras atenções se voltam para o resgate das vítimas. Mas é preciso estar igualmente atento à condição dos parentes e amigos - que ficam. "Nós somos sobreviventes desse acidente", resume Luciana Mazorra, doutora em psicologia especializada no atendimento a pessoas que enfrentam a perda de entes queridos. Ela é também co-fundadora do 4 Estações Instituto de Psicologia, que ajuda as famílias das vítimas e também os profissionais das empresas aéreas a lidar com acidentes como o ocorrido na costa brasileira. Na entrevista a seguir, a psicóloga fala da importância do suporte aos familiares, da reação deles à inesperada notícia do desastre e ainda sobre como o acidente desperta em todos nós o terror da morte, mas também a compaixão.

Em episódios como o do voo 447, o que é possível dizer a parentes e amigos dos passageiros? Em que medida é possível dar-lhes conforto?
Não há algo específico a ser falado. Inclusive um erro muito comum, e que é natural, é tentar confortar os familiares dizendo coisas como: "Foi a vontade de Deus", que costumam irritar bastante o enlutado porque expressam um significado que tem valor para quem diz, mas não necessariamente para quem perdeu alguém. O que importa mais não é necessariamente o que é falado, mas o suporte oferecido: a atenção dispensada, a assistência global, o atendimento às necessidades físicas, práticas e legais - além, é claro, do suporte psicológico. Escutar sem julgar ajuda, assim como o apoio da comunidade, da empresa, da sociedade como um todo, do próprio governo, dando suas condolências e realizando esforços para encontrar informações sobre o acidente. Isso diz para a pessoa que perdeu alguém que ela é importante, que o mundo está cuidando dela de alguma forma.

O trabalho da imprensa, que inclui ouvir parentes e amigos, ajuda ou atrapalha?
A mídia tem que tomar muito cuidado. Ela pode ajudar, trazendo informação correta - e informação é o que a família, nesse primeiro momento, mais precisa, pois ajuda a pessoa a se organizar. É claro que a mídia tem um papel importante também ao cobrar as autoridades no sentido de que as buscas sejam feitas. Por outro lado, sempre encontramos abusos: vemos fotos que não precisariam aparecer, que são muito ofensivas para os familiares, mostrando corpos de forma até desrespeitosa. É preciso tomar muito cuidado. Isso não ajuda, atrapalha. Além disso, é preciso respeitar a vontade do familiar: alguns querem falar com a imprensa, outros, não.

Qual o pior inimigo dos familiares e amigos: o susto da notícia inesperada ou a demora em receber notícias precisas?
A demora em se concretizar o fato, em se estabelecer que realmente houve o acidente, é um momento de grande angústia para as famílias. Depois, quando se confirma que realmente houve o acidente, vem um momento muito ambivalente: se, por um lado, a angústia era terrível, ainda havia uma esperança; com a notícia, tem-se algo concreto, mas é algo terrível. As duas coisas são muito difíceis: a pessoa quer e não quer saber o tempo inteiro. É comum ela precisar de um tempo para digerir a informação e achar, por exemplo, que seu familiar na verdade não pegou aquele avião ou que as autoridades se enganaram.

Na sua experiência em situações de emergência, você já se deparou com casos assim, em que familiares negam o fato?
Sim, é muito comum. Entendemos que, se a pessoa está negando, é porque aquilo tem uma função para ela. Ela se apega a uma esperança, por exemplo. Um dos familiares de um passageiro do vôo 447 disse, em entrevista à TV, que seu irmão sabia nadar muito bem. Esse tipo de crença, de que a pessoa não pegou aquele avião, é uma forma de a pessoa tentar se proteger, até que ela possa absorver a informação. Quando ela recebe um bom suporte da família, dos amigos, da sociedade, dos profissionais, ela fica mais preparada para lidar com a informação, com a realidade.

É possível falar em um prazo para que os familiares retomem suas vidas?
Essa questão é muito complicada. Realmente varia muito. Tem pessoas que retomam suas vidas rapidamente, mas isso não quer dizer que elas elaboram a perda. Para algumas pessoas, retomar suas atividades, voltar ao trabalho, ajuda muito. A elaboração da perda leva tempo. Depende de o que ela perdeu, quais são as condições que ela tem para elaborar a perda. Neste caso específico, estamos falando de uma perda inesperada, violenta, que, por enquanto, não tem confirmação. Para cada pessoa, há fatores facilitadores e complicadores.

O que é exatamente elaborar a perda?
O luto é um processo de elaboração psíquica da perda. Podemos falar do luto como um processo de construção de significado, em que a pessoa tenta atribuir sentido ao que aconteceu. Ela vai se perguntar: "Quem sou eu agora sem essa pessoa que morreu? O que essa pessoa representava na minha vida?" Ela vai tentar responder todas essas perguntas e, a partir disso, se reorganizar. É um processo de transformação, não de abandono, da relação com quem morreu. Por isso, muitas vezes, no início, a pessoa ainda age como se o ente perdido estivesse vivo: ela pega o celular para ligar para ele, por exemplo. Leva tempo para ela perceber que nunca mais vai estar com a pessoa morta.

É um processo trabalhoso, portanto.
Sim. Inclusive, Freud chamou de trabalho de luto, porque exige trabalho árduo psíquico, emocional, cognitivo, físico, comportamental, social. Atinge o indivíduo em todas as esferas da sua vida. Há uma transformação de identidade. As pessoas que perderam alguém se perguntam: "Quem sou eu agora? Agora eu sou viúva", no caso das mulheres que perdem o marido. "Eu tinha um filho, agora não tenho mais", dizem outras. Quando a pessoa não entende o que aconteceu, ela tem ainda mais dificuldade de elaborar a perda. É como se ela estivesse construindo uma narrativa, um quebra-cabeças, e ali faltasse um pedaço. É o caso de doenças desconhecidas, uma situação de morte onde havia um segredo e de acidentes em que nunca se descobre a causa ou não se encontra um corpo.

Como é feito na prática o trabalho de assistência a parentes e amigos em uma situação como a do voo 447?
O nosso trabalho basicamente é estar ali, oferecer suporte para quem quer conversar, falar o que está sentindo. É diferente de um trabalho de psicoterapia, é um trabalho de intervenção em emergência. Tem que ser um trabalho coordenado com a equipe da empresa: você deve estar atento às necessidades dos familiares de forma geral. Pode ser que aquela pessoa esteja com fome e você precisa providenciar algo para ela comer; ela precisa fazer uma ligação, e você deve ajudá-la nesse processo. Ao longo do tempo, vemos que essas pessoas criam vínculos muito fortes com a equipe de apoio e com a equipe da empresa.

Nos momentos que sucederam o desaparecimento do voo 447, o assunto dominou as conversas nas ruas, nos locais de trabalho etc. - como sempre acontece em casos similares. Por quê? Trata-se da compaixão ou da terrível lembrança de que também morreremos?
As duas coisas. Uma tragédia como essa nos lembra, sim, da nossa mortalidade. Porque, para viver, precisamos acreditar que estamos seguros de alguma forma. Se, neste instante, eu achar que o teto vai desabar sobre a minha cabeça, eu não vou conseguir conversar nem fazer mais nada. Então, temos de ter uma crença interna de que eu não estou ameaçada. E uma situação como a deste acidente mexe com a nossa crença, com a nossa segurança e gera angústia. Nós todos somos impactados por uma tragédia como esta - em graus diferentes, é lógico. Isso nos faz lembrar que também somos mortais, que não temos tanto controle da vida quanto imaginávamos. Mas, por outro lado, tem também nossa compaixão: nós nos identificamos com aquelas pessoas que estão sofrendo. Nós somos sobreviventes desse acidente: ele poderia ter acontecido comigo, ou poderia ter levado um parente meu. Isso é o que, em grande parte, nos torna humanos: o fato de podermos empatizar com a dor do outro, oferecer ajuda e evitar que novas tragédias aconteçam.

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