Texto da Latusa Revista Digital
Não temos tempo a perder
(Ana Martha Wilson Maia)
Em entrevista concedida a uma revista brasileira, o filósofo Carl Honoré2 descreve a pressão exercida sobre os pais para oferecerem uma infância perfeita aos filhos:
Uma série de tendências convergiu ao mesmo tempo para produzir uma cultura da perfeição. A globalização trouxe mais competição e incertezas sobre o mercado de trabalho, o que nos deixa mais ansiosos em preparar os filhos para a vida adulta. A cultura do consumo alcançou a apoteose nos últimos anos. O próximo passo é criar uma cultura de expectativas elevadas: dentes, cabelos, corpo, férias, casa, tudo deve ter perfeição. E crianças perfeitas fazem parte desse retrato. É uma cultura do tudo ou nada.
Estimulada pelo trabalho coletivo3 que apresentei na IV Jornada Internacional do CIEN e pelas atuais conversações no laboratório “A criança entre a mulher e a mãe”,4 proponho levantar uma discussão sobre o precoce e intenso investimento dos pais na escolaridade dos filhos como um sintoma de nosso tempo, em sua articulação com a função da família e o gozo feminino. Numa contextualização histórica, o fracasso escolar surgiu a partir da escolaridade obrigatória, no final do século XIX. Essa oferta de saber acessível “a todos” é fundamentada na ideia de que saber é poder. Porém, a escolaridade obrigatória não garante igualdade nas oportunidades. Dinheiro e sucesso são ideais da sociedade contemporânea transmitidos por valores familiares, desde a escolha do colégio dos filhos, ainda na préescola, quando pais vislumbram um ensino que garanta uma vaga nas melhores universidades. “Há colégios hoje que são como fábricas com uma linha de produção”, aponta Honoré. Nesse sentido, o fracasso é uma oposição ao sucesso, ao ideal.
A função da família
Lacan5 divide a sintomatologia infantil de acordo com o par familiar. No caso mais complexo e de mais fácil acesso à intervenção do analista, por estar articulado à metáfora paterna, o sintoma representa a verdade do casal parental. No caso mais simples, mas de difícil intervenção, temos o sintoma da criança relacionado à fantasia materna, a criança como objeto a, exposta às capturas fantasísticas da mãe. De acordo com a clínica lacaniana descontinuísta, diríamos que neste segundo caso se encontra a psicose, conforme bem localiza Laurent,6 uma vez que a metáfora paterna não está presente. Todavia, na época do declínio do pai, conforme nos referimos no Campo Freudiano aos tempos atuais, encontramos estruturas neuróticas em que há a presença da função paterna, ainda que de forma pouco consistente, ficando a criança mais aprisionada à fantasia materna.
Pouco depois de inventar dois trocadilhos — homela (hommelle), para situar a relação do perverso com a falta no Outro, e famiele (famil), para indicar a função metafórica da família na neurose —, Lacan7 propõe que, no drama familiar, trata-se do “objeto a como liberto” que se trata. O neurótico busca completar o Outro com a família.
Comentando essa enigmática expressão “objeto a como liberto”, Laurent8 diferencia a abordagem freudiana (a criança como “Sua Majestade o Bebê”, no lugar do ideal do casal) da leitura pós-freudiana de Ferenczi, Melanie Klein e Winnicott, que localizam a criança como objeto, para finalmente expor a proposta de Lacan, na qual a criança é capturada no gozo, como objeto a: “A criança é o objeto a, vem no lugar de umobjeto a, e é a partir disso que a família se estrutura. Ela não se assenta na metáfora paterna, que era a face clássica do complexo de Édipo, e sim na maneira como a criança é o objeto de gozo da mãe, da família e, para além dela, da civilização. A criança é o ‘objeto a liberado’, produzido”.
A família passa a ser definida como o aparelhamento do objeto a, condensador de gozo, cuja função de resíduo é da ordem de uma constituição subjetiva e implica “a relação com um desejo que não seja anônimo”.9 Mesmo quando as funções materna e paterna se efetivam, sempre resta um resíduo da mãe, encarnação da falha do cuidado, e do pai, encarnação da Lei no desejo. Assim, as novas formas de parentalidade podem ser analisadas para além do Édipo e a função do Nome-do-Pai, sustentada hoje por outro pessoa, não necessariamente o pai ou um homem.
(...)
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