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29 de março de 2020

Sobre os atendimentos online nos tempos de isolamento social

Artigo do psicanalista Christian Dunker, publicado em seu blog, aborda questões importantes do atendimento online, que se fez necessário no cenário de pandemia que estamos presenciando. 



Tá puxado, mas dá pra receber atendimento psicológico online


A situação de confinamento domiciliar, alteração da rotina de trabalho ou estudo, a atmosfera de temor e indeterminação, bem como o fato de que nossa vida psíquica anterior ao coronavírus nem sempre ser um mar de rosas, reúne muitos ingredientes que incrementam a demanda por psicoterapias ou por escutas de apoio e cuidado. O Conselho Federal de Psicologia dispensou psicólogos do credenciamento usualmente requerido para atendimento online, nos meses de março e abril. Reúno aqui [veja o vídeo abaixo] um conjunto de ponderações e de referências, tanto para aqueles que estão dando seguimentos a tratamentos psicológicos anteriores, agora de modo compulsoriamente virtual, quanto para aqueles que pretendem ou precisam recorrer a este suporte. 
Psicólogos que trabalham em hospitais, na saúde geral ou na saúde mental em outros países têm sido lembrado de que o cuidado de si é condição essencial e primeira para cuidar dos outros. Isso implica atenção às condições de trabalho, por exemplo, praticar horários de plantão de forma a racionalizar tanto a circulação dentro da cidade quanto a favorecer o atendimento por telefone ou online. A Sociedade Brasileira de Psicologia Hospitalar manifestou-se pela importância do uso de medidas protetivas (como uso da máscara N95) quando em contato direto com pacientes infectados pela covid-19, mas na situação que se avizinha, nem sempre isso será possível. Daí a importância de se discutir o atendimento à distância como alternativa real. 
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Recomendações sobre o início do tratamento 
Vivemos uma situação de exceção e isso deve ficar claro para todos os envolvidos. Muitos terapeutas têm pouca ou nenhuma experiência com atendimentos a distância. Pacientes vão achar muito estranho compartilhar assuntos íntimos com um desconhecido que se apresenta do tamanho da tela de um celular. Sinceridade e transparência serão condições mais que necessárias para enfrentar a situação. No caso da psicanálise, mas também de muitas abordagens psicodinâmicas, quanto mais à vontade o paciente sentir-se para falar, escolhendo livremente suas palavras e temas, evitando julgamentos e avaliações, melhor. Do outro lado precisamos de uma escuta aberta, flutuante ou lúdica, o que nem sempre é fácil longe do consultório e da privacidade que ele traz consigo. Aqui a dificuldade maior reside no fato de que nossa preocupação uns com outros, neste momento, precisa acolher transtornos objetivos e temores realísticos, por exemplo, concernentes a saúde, ao abrigo domiciliar e a informações protetivas, bem como ao impacto econômico e relacional incalculável na vida das pessoas
Uma psicoterapia não deixa de ser ao final um tipo de conversa, mas uma conversa que conta com vários elementos contraintuitivos: nem sempre perguntas são respondidas, nem sempre o objetivo é manter uma comunicação clara, nem sempre seguimos um fio narrativo bem definido.  Talvez a melhor definição desta conversa tenha sido dada pelo André Breton, o criador do surrealismo: "uma conversa onde se diz o que se quer e se escuta o que não se quer"
A criação de outra forma de escutar, que permite redimensionar tamanhos e volumes das experiências narradas, bem como ênfases e repetições em seus pontos cruciais, pode ser difícil na situação de distância e isolamento social, ou de compressão humana e privação de privacidade em certos domicílios
Os relatos de quem já está empenhado nesta experiência apontam para um cansaço ainda maior do terapeuta nessas condições. Há uma alteração da estrutura atencional, dificuldade de concentração e inquietação com a presença real do outro. Para os psicanalistas isso tem requerido estratégias para manuseio de câmera, de modo a desviar o olhar frontal, muitas vezes sentido como intrusivo, mas permitir a busca e a manifestação e inserção de presença quando isso se faz necessário. A presença do analista, tantas vezes indiciada pela voz, seja por uma interjeição adversativa ou de assentimento, seja pelo olhar, torna-se mais complexa, mas ainda assim não impossível
Particularmente difícil é a modulação da temporalidade no interior da sessão. Muitas intervenções dependem da maneira exata como o analista parece "soprar palavras" no ouvido do analisante, aproveitando-se dos interstícios da associação livre, ou interromper subitamente a sessão, no caso da prática lacaniana do tempo lógico
A reconfiguração dos códigos e da temporalidade requer um trabalho de reinvenção e adaptação de tal maneira a mitigar os efeitos e a preponderância do fluxo informacional, que identificamos com os meios digitais. É preciso reaprender a ficar em silêncio e evitar, calculadamente, a parceria imaginária que o meio digital nos habituou, ou seja, responder de maneira cada vez mais acelerada
Tudo isso requer modificações táticas e invenções criativas de novos modos de dizer.  Freud dizia que os pacientes que têm dificuldades com a língua, por exemplo, porque não são nativos naquele idioma tenderão a atribuir a esta dificuldade a certas trocas e equívocos de linguagem.  De fato, temos um problema análogo quando estamos na linguagem digital. Muitos desencontros, lapsos e deslizes podem ser facilmente atribuídos às condições muitas vezes instáveis do suporte comunicativo. Mas que não se torne uma desculpa

Sigilo e privacidade 
Muitas pessoas não encontram lugar retirado em suas casas para falar abertamente de coisas que não queremos e no fundo não devemos partilhar com os outros, principalmente quando eles estão envolvidos. Tenho ouvido relatos de pessoas fazendo suas sessões nos jardins, nas áreas comuns dos prédios e até mesmo nos banheiros de suas casas. Inversamente a intrusão das casas dos terapeutas tem dado ensejo a latidos, miados e exposições familiares incomuns na clínica tradicional. Freud já disse que um consultório comporta os barulhos naturais de uma casa. Nada disso altera um grama na relação de sigilo que todo psicoterapeuta deve ter com tudo o que escuta e o cuidado que terá com o destino do que ouve.
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Leia o artigo na íntegra aqui



Fernanda Pimentel é psicanalista, professora e pesquisadora. Doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ

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