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24 de abril de 2020

Epidemias, história e novo normal

Live de Leandro Karnal, no canal do Café Filosófico, sobre as maiores epidemias da história e a nova normalidade do futuro. É a história nos ajudando a entender e lidar com o futuro. 








Fernanda Pimentel é psicanalista, professora e pesquisadora. Doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ

29 de março de 2020

Sobre os atendimentos online nos tempos de isolamento social

Artigo do psicanalista Christian Dunker, publicado em seu blog, aborda questões importantes do atendimento online, que se fez necessário no cenário de pandemia que estamos presenciando. 



Tá puxado, mas dá pra receber atendimento psicológico online


A situação de confinamento domiciliar, alteração da rotina de trabalho ou estudo, a atmosfera de temor e indeterminação, bem como o fato de que nossa vida psíquica anterior ao coronavírus nem sempre ser um mar de rosas, reúne muitos ingredientes que incrementam a demanda por psicoterapias ou por escutas de apoio e cuidado. O Conselho Federal de Psicologia dispensou psicólogos do credenciamento usualmente requerido para atendimento online, nos meses de março e abril. Reúno aqui [veja o vídeo abaixo] um conjunto de ponderações e de referências, tanto para aqueles que estão dando seguimentos a tratamentos psicológicos anteriores, agora de modo compulsoriamente virtual, quanto para aqueles que pretendem ou precisam recorrer a este suporte. 
Psicólogos que trabalham em hospitais, na saúde geral ou na saúde mental em outros países têm sido lembrado de que o cuidado de si é condição essencial e primeira para cuidar dos outros. Isso implica atenção às condições de trabalho, por exemplo, praticar horários de plantão de forma a racionalizar tanto a circulação dentro da cidade quanto a favorecer o atendimento por telefone ou online. A Sociedade Brasileira de Psicologia Hospitalar manifestou-se pela importância do uso de medidas protetivas (como uso da máscara N95) quando em contato direto com pacientes infectados pela covid-19, mas na situação que se avizinha, nem sempre isso será possível. Daí a importância de se discutir o atendimento à distância como alternativa real. 
(...)

Recomendações sobre o início do tratamento 
Vivemos uma situação de exceção e isso deve ficar claro para todos os envolvidos. Muitos terapeutas têm pouca ou nenhuma experiência com atendimentos a distância. Pacientes vão achar muito estranho compartilhar assuntos íntimos com um desconhecido que se apresenta do tamanho da tela de um celular. Sinceridade e transparência serão condições mais que necessárias para enfrentar a situação. No caso da psicanálise, mas também de muitas abordagens psicodinâmicas, quanto mais à vontade o paciente sentir-se para falar, escolhendo livremente suas palavras e temas, evitando julgamentos e avaliações, melhor. Do outro lado precisamos de uma escuta aberta, flutuante ou lúdica, o que nem sempre é fácil longe do consultório e da privacidade que ele traz consigo. Aqui a dificuldade maior reside no fato de que nossa preocupação uns com outros, neste momento, precisa acolher transtornos objetivos e temores realísticos, por exemplo, concernentes a saúde, ao abrigo domiciliar e a informações protetivas, bem como ao impacto econômico e relacional incalculável na vida das pessoas
Uma psicoterapia não deixa de ser ao final um tipo de conversa, mas uma conversa que conta com vários elementos contraintuitivos: nem sempre perguntas são respondidas, nem sempre o objetivo é manter uma comunicação clara, nem sempre seguimos um fio narrativo bem definido.  Talvez a melhor definição desta conversa tenha sido dada pelo André Breton, o criador do surrealismo: "uma conversa onde se diz o que se quer e se escuta o que não se quer"
A criação de outra forma de escutar, que permite redimensionar tamanhos e volumes das experiências narradas, bem como ênfases e repetições em seus pontos cruciais, pode ser difícil na situação de distância e isolamento social, ou de compressão humana e privação de privacidade em certos domicílios
Os relatos de quem já está empenhado nesta experiência apontam para um cansaço ainda maior do terapeuta nessas condições. Há uma alteração da estrutura atencional, dificuldade de concentração e inquietação com a presença real do outro. Para os psicanalistas isso tem requerido estratégias para manuseio de câmera, de modo a desviar o olhar frontal, muitas vezes sentido como intrusivo, mas permitir a busca e a manifestação e inserção de presença quando isso se faz necessário. A presença do analista, tantas vezes indiciada pela voz, seja por uma interjeição adversativa ou de assentimento, seja pelo olhar, torna-se mais complexa, mas ainda assim não impossível
Particularmente difícil é a modulação da temporalidade no interior da sessão. Muitas intervenções dependem da maneira exata como o analista parece "soprar palavras" no ouvido do analisante, aproveitando-se dos interstícios da associação livre, ou interromper subitamente a sessão, no caso da prática lacaniana do tempo lógico
A reconfiguração dos códigos e da temporalidade requer um trabalho de reinvenção e adaptação de tal maneira a mitigar os efeitos e a preponderância do fluxo informacional, que identificamos com os meios digitais. É preciso reaprender a ficar em silêncio e evitar, calculadamente, a parceria imaginária que o meio digital nos habituou, ou seja, responder de maneira cada vez mais acelerada
Tudo isso requer modificações táticas e invenções criativas de novos modos de dizer.  Freud dizia que os pacientes que têm dificuldades com a língua, por exemplo, porque não são nativos naquele idioma tenderão a atribuir a esta dificuldade a certas trocas e equívocos de linguagem.  De fato, temos um problema análogo quando estamos na linguagem digital. Muitos desencontros, lapsos e deslizes podem ser facilmente atribuídos às condições muitas vezes instáveis do suporte comunicativo. Mas que não se torne uma desculpa

Sigilo e privacidade 
Muitas pessoas não encontram lugar retirado em suas casas para falar abertamente de coisas que não queremos e no fundo não devemos partilhar com os outros, principalmente quando eles estão envolvidos. Tenho ouvido relatos de pessoas fazendo suas sessões nos jardins, nas áreas comuns dos prédios e até mesmo nos banheiros de suas casas. Inversamente a intrusão das casas dos terapeutas tem dado ensejo a latidos, miados e exposições familiares incomuns na clínica tradicional. Freud já disse que um consultório comporta os barulhos naturais de uma casa. Nada disso altera um grama na relação de sigilo que todo psicoterapeuta deve ter com tudo o que escuta e o cuidado que terá com o destino do que ouve.
(...)

Leia o artigo na íntegra aqui



Fernanda Pimentel é psicanalista, professora e pesquisadora. Doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ

5 de fevereiro de 2020

Resposta de Maleval a Paul Preciado na 49ª Jornada da Escola da Causa Freudiana


Cometei da fala polêmica de Paul Preciado aqui no blog - e postei seu texto na íntegra - que critica uma posição assumida pelos psicanalíticas lacanianos atualmente no que diz respeito ao gênero e sexuação. 
As criticas de Paul, sobre este tema tão atual e necessário, levantaram um debate, já que vários psicanalistas responderam à sua intervenção, alguns incisivamente contra, outros compartilhando de suas ideias. 

Abaixo, segue a resposta de Maleval, psicanalista francês. 





Resposta à intervenção de Paul B. Preciado na 49ª Jornada da Escola da Causa Freudiana
Jean- Claude Maleval


Um longo comentário criticando a psicanálise, acusada de obsolescência, nunca havia ressoado na tribuna de um congresso de uma escola de Lacan antes do dia 17 de novembro de 2019. Não podemos duvidar que a diatribe de Paul B. Preciado vem testemunhar uma nova conjectura histórica.
Ele rejeita a binaridade dos sexos, considerada patriarcal, em nome de um construtivismo do gênero, que supostamente estaria mais comprometido com a modernidade. Ele ignora que a abordagem lacaniana da sexuação não é essencialista. Ela se afirma tão construtivista quanto a sua abordagem: não consideramos que o devir sexual seja determinado pela fisiologia (1). Existem fortes identificações contrárias ao sexo biológico entre os neuróticos. E existem suplências que passam pela transexualização.
No entanto, segundo Lacan, a escolha do sexo não está aberta à infinita diversidade de gêneros. Ele a concebe como sendo determinada por uma fixação de gozo em um sintoma, ao qual ele reduz a função fálica: fixação feita “toda” pelo dito homem, e não-toda pela dita mulher. Este é um dado histórico? É o patriarcado que gera o primado da referência fálica? A hipótese de Lacan (2) o relaciona a um efeito de linguagem sobre o falasser. Mortificando o vivente, o significante produz um limite que se impõe ao gozo de cada um - parcialmente, totalmente ou de modo algum (ele pode falhar). A conexão do gozo com a linguagem, que une a perda traumática do vivente (a) e sua cifragem significante (S1), constitui o que Lacan designa como a função fálica em seu último ensino (3). Embora de maneira diferente, ela vale tanto para o homem como para uma mulher. Ela é própria ao falasser qualquer que seja a conjuntura social na qual é construída (4). No entanto, ela leva a abordar o gozo, destaca Jacques-Alain Miller, "pelo lado onde ele é interditado" (5); enquanto P. B. Preciado o gostaria ilimitado.
            Considerando que "a pornografia diz a verdade da sexualidade" (6), P. B. Preciado postula, escreve Sophie Marret-Maleval, um corpo gozante "capaz de escapar da influência do significante", que o leva a "visar a correlação entre verdade e gozo", na busca pela "desalienação total" (7). A existência de um corpo biológico natural, não tocado pela linguagem, está no início de suas hipóteses; a partir de então, ele o concebe aberto a todas as construções possíveis. Na sua perspectiva, ele mesmo, hoje Paul, Beatriz ontem, o gozo é mal limitado por escolhas identitárias, voluntárias, temporárias, reversíveis e estendidas ao infinito. Por outro lado, segundo Lacan, existe um limite com o qual é preciso compor. Na época do Outro que não existe, fica claro que esse limite não é determinado por uma ordem simbólica. O modo de gozo, para a maioria dos sujeitos, se encontra restrito e limitado por uma captura contingente e singular a um significante. Disso resulta uma constatação: um modo de gozo próprio a cada um. Uma das conclusões mais seguras do passe, já esclarecida por Lacan, revela a produção de "esparsos disparatados" (8) e desfaz a ilusão de uma travessia comum.
A diatribe de P. B. Preciado certamente se baseou em uma leitura rápida de Lacan, que tendia a congelar sua abordagem em um binário da sexuação; no entanto, sua inserção em 2019, em um congresso de psicanálise, não pode ser considerada um evento menor. Os aplausos que pontuaram positivamente seus comentários várias vezes atestam que eles não deixaram de ecoar em um grande público. Por mais questionável que nos pareça seu discurso, ele não deixa de ter uma grande repercussão sobre os sujeitos cada vez mais numerosos que aderem a ele: ele modifica alguns de seus comportamentos e às vezes transforma voluntariamente seus corpos.
B. Preciado iniciou sua intervenção formulando questões que não devemos negligenciar muito rapidamente: quantos analistas da Escola (AE) (9) são homossexuais (10)? Quantos AEs são transexuais (11) ou transgêneros? É certo que o passe implica uma desidentificação que exclui se apresentar sob esses significantes, mas é ele compatível com esses modos de gozo? Como um analista que conhece hoje seu nó  subjetivo não borromeano pode abordar o passe? Como nenhum EA até agora se apresentou assim, a escolha se reduziria para ele, em renunciar a se introduzir na  experiência ou em dar uma forma neurótica ao seu testemunho? Nos dois casos, a investigação de Lacan sobre se tornar um analista sofre um abalo. Não há dúvida, porém, que no século XXI os gozos que determinam a passagem ao analista demonstram uma diversidade que vai muito além dos modos de gozo do século passado. Por que, por exemplo, uma substituição não poderia levar a isso?
A referência continuinista certamente forneceria uma solução fácil: seria suficiente no passe destacar o S1 do sinthoma sem se preocupar com as diferenças de funcionamento subjetivo. No entanto, trata-se de não ignorar a distinção entre o sinthoma "desabonado do inconsciente" (12) e aquele que, ao contrário, está articulado a ele. Até então, os passes parecem tratar apenas os últimos.
Além disso, uma discussão sobre a relevância do conceito de sinthome no autismo poderia ser evocada (13). O que o autismo tem a ver com o passe? Lembremo-nos de Jacqueline Léger, convidada da Primeira Jornada do Centro de Estudos e Pesquisas sobre Autismo (CERA) (14). Ela nos disse que, após uma longa análise, trabalhou por muitos anos como psicóloga clínica de formação analítica. Certamente ela não deu o passo para se tornar uma analista. Mas outras pessoas autistas o farão, se já não o tiverem feito. Quanto a saber se a prática de analistas não neuróticos irá se deparar com limites, a questão merece ser levantada. Seria muito ilusório, no entanto, supor que os analistas neuróticos nunca iriam se deparar com limites - se eles fossem bem analisados.
P. B. Preciado chamou nossa atenção para a estreiteza do modelo no qual o passe seria baseado. Devemos afirmar, contra a experiência, que a prática analítica é reservada aos neuróticos? Isso é pouco provável, exceto para retornar ao ato de Lacan que institui uma autorização que se baseia em uma decisão do analista. Portanto, por que limitar a investigação desejada por Lacan sobre tornar-se analista? Suas modalidades de ontem ainda são as de hoje? Não se costuma dizer que o passe não pode ser a verificação de qualquer conformidade? Levar Lacan a sério quando ele convida quem recorre à psicanálise a "alcançar em seu horizonte a subjetividade de seu tempo" (15) não implica uma renovação contínua do passe? - à semelhança por exemplo de um posicionamento acolhedor do casamento para todos. Certamente, nada proíbe um homossexual, um transexual, um transgênero, ou um autista de se apresentar a um passe, mas na prática eles não passam por ele, não o atravessam ou mesmo não o declaram. Pois o AE ainda não está obrigado a aderir a uma parte da ordem simbólica?
Uma dificuldade, no entanto, P. B. Preciado não deixou de enfatizar: os entrelaçamentos sempre persistentes da teoria psicanalítica com o discurso da psiquiatria. Como apresentar-se ao passe dando a entender que se é psicótico, perverso ou autista? Obviamente, o processo é dificultado por esses significantes. A ampliação do passe leva então à premissa de uma mutação da denominação dos funcionamentos subjetivos? Deveríamos falar de estrutura repressiva ou substitutiva? (16) Talvez seja melhor, para produzir uma ruptura mais radical, distinguir apenas entre o nó borromeano, o nó não borromeano e o nó pela borda?
Todas essas questões complexas sobre o passe e nossa terminologia hoje estão surgindo com maior força. Ainda é muito cedo para levantá-las? Mas quando chegará o momento certo? Devemos temer que elas abram um abismo? Ou devemos tentar entender melhor uma mutação já em andamento? A escolha que nos é oferecida é de sufocá-las, o que não as impediria de surgir, ou acompanhar seu progresso, sem deixar de considerá-las. Temos que ter cuidado para não deixar de ouvir a intervenção de P. B. Preciado: ele veio lembrar a psicanálise da necessidade de evolução permanente. Os modos de gozo são tributários das mudanças sociais. Também Lacan nunca para de apontar que "o inconsciente é a política" (17)!


1- São os psicanalistas que dizem se referir a Lacan tendo uma abordagem essencialista da sexuação que fazem com que a transexualidade seja considerada “uma loucura”: segundo Frignet: “é impossível não ser um homem ou uma mulher. A essa primeira impossibilidade, se soma uma segunda: a transformação exterior e o desejo pessoal do sujeito, é impossível modificar esse pertencimento. Somente a aparência será mudada, o sujeito, queira ou não, será para ele mesmo e para os outros, um homem ou uma mulher” (Frignet H., Le transsexualisme, Paris, Desclée de Brouwer, 200, p.149 & 128)
2 - A abordagem lacaniana da sexuação, como qualquer teoria, se baseia em hipóteses indemonstráveis, isso vale também para a teoria de gênero. Invocar a experiência analítica em favor de uma, ao invés da outra, seria recorrer ao que Lacan chamou de “carta marcada da clínica” (Escritos, p. 815).
3- “O falo é a conjunção do que chamei de esse parasita, ou seja, o pedacinho de pau em questão, com a função da fala”. (Seminário 23, p.16)
4- Ganharíamos no século XX em acentuar a abordagem lógica da função fálicas, que a reduz a uma barra sobre o gozo operado por uma cifragem significante, a fim de destacá-la mais radicalmente de qualquer imagem peniana.
5- J.-A. Miller, “Orientação Lacaniana, O Partenaire-sintoma” (1997-1998) lição de 18 de março de 1998
6- Preciado, B. Testo Junkie. Sexe drogue et biopolitique. Paris, Grasset, 2008, p. 218
7- Marret-Maleval S. “Sur Testo Junkie. Sexe drogue et biopolitique de Beatriz Preciado”, Ornicar? 58, 2018, p. 195-198
8- Lacan, Outros Escritos, p. 569
9-AE: título concedido por três anos àqueles cujo percurso e o fim da análise têm valor de ensino, ao final do procedimento do passe, instituído por Lacan, por sua vez, os passadores, analisandos ainda em análise, transmitem ao cartel do passe o testemunho do passante.
10- No que diz respeito ao sujeito homossexual, Miller afirma que a psicanálise visa “essencialmente obter que o ideal deixe de impedir o sujeito de praticar seu modo de gozo, [...] aliviar o sujeito de um ideal que o oprime por ocasião e colocá-lo em posição de sustentar seu mais-de-gozar, o mais-de-gozar que ele é capaz, o mais-de-gozar que lhe é próprio, ter uma relação mais confortável” (Miller & Laurent, O outro que não existe e seus comitês de ética, lição de 21 de maio de 1997, publicado em espanhol). Não compartilhamos as opiniões dos psicanalistas que afirmam ser capazes de identificar o normal e o patológico, tal como Charles Melman no jornal Le monde de 01 de outubro de 2005: “Façamos uma pergunta simples, a homossexualidade constitui uma patologia? É o que psiquiatria americana hoje rejeita. Se admitirmos que ela está organizada por uma defesa contra a diferença e a alteridade, neste caso, é incontestável que ela constitui”.
11- Quando a psicose ordinária é suplantada, por exemplo por uma transexualização bem assumida, ela constitui um dos modos de conformidade social, e nada autoriza a considerá-la como uma patologia. (ver Maleval J.-C., « Du fantasme de changement de sexe au sinthome transsexuel », Repères pour la psychose ordinaire. Paris, Navarin, 2019, p. 186-208).
12- Lacan J., « Joyce le symptôme I », em Joyce avec Lacan, Paris, Navarin, 1987, p. 24
13- Parece que a cura do autismo permite às vezes não liberar o S1 de um sinthoma, mas sim construir um S1 como síntese.
14- Jornada do Centro de Estudos e Pesquisas sobre o Autismo, Paris, 10 de março de 2018.
15- Lacan J., « Fonction et champ de la parole en psychanalyse » (1953), Écrits, Paris, Seuil, coll. Champ Freudien, 1966, p. 321.
16 : Cf. Maleval J.-C., Repères pour la psychose ordinaire, Paris, Navarin, 2019, p. 199-200.
17 : Lacan, Seminário 14, lição de 10 maio de 1967, disponível no blog Lacan em .pdf


Tradução para o português por Arryson Zenith Jr.
Versão original em francês disponível aqui 


Fernanda Pimentel é psicanalista, professora e pesquisadora. Doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ
e investigas os temas relativos 
à psicanálise na atualidade e à clínica contemporânea. 

3 de fevereiro de 2020



"A ciência moderna ainda não produziu um medicamento tranquilizador tão eficaz como o são umas poucas palavras boas"
S. Freud

Ilustração: Tute



Fernanda Pimentel é psicanalista, professora e pesquisadora. Doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ
e investigas os temas relativos 
à psicanálise na atualidade e à clínica contemporânea. 

31 de janeiro de 2020

A teoria da 'química do cérebro' que não explica os transtornos mentais



Uma série de Twittes do psiquiatra, doutor em psiquiatria e professor da Unicamp, Luis Fernando Tófoli, reacendeu a discussão sobre a hipótese - nunca comprovada! - da causalidade química dos transtornos mentais. 
Acompanhando a discussão esbarrei com dois excelentes artigos que compartilho aqui: Por que a teoria da 'química do cérebro' não explica transtornos mentais... de Luiza Pollo e Desequilíbrio químico no cérebro é mito, de Michelle Muller.




Depressão, ansiedade e outros transtornos mentais são a soma de diversos fatores — pessoais, biológicos, ambientais... A lista de causas para um distúrbio psiquiátrico é extensa e varia de pessoa para pessoa. Tanto que os psiquiatras afirmam ser impossível encontrar um único "culpado". Por que, então, é tão comum ouvir que esses casos podem ser explicados simplesmente por um desequilíbrio químico no cérebro? Essa teoria vigorou por muito tempo, desde que a indústria farmacêutica descobriu que os remédios que reduziam os sintomas de depressão e ansiedade, por exemplo, aumentavam os níveis de alguns neurotransmissores no cérebro: em geral serotonina, dopamina e noradrenalina.
Mas espera: por que falar disso agora? Bem, não há nenhuma novidade bombástica sobre o tema, mas uma sequência de tuítes do professor Luís Fernando Tófoli, da Unicamp, causou alvoroço nesta semana. Sob o título "O mito do desequilíbrio químico como causa das doenças mentais", o doutor em psiquiatria explicou que os transtornos mentais não são comprovadamente causados pela carência de determinadas substâncias no cérebro, como se costuma acreditar. É muito (muito, sério, muito) mais complexo do que isso.
De onde veio essa ideia, então? A hipótese monoaminérgica, termo técnico que descreve a ideia de que os transtornos são causados por desequilíbrio químico, vigorou por muito tempo e ajuda a simplificar a explicação para nós, o público leigo, além de contribuir com a adesão ao tratamento. Isso porque a hipótese surgiu a partir de bons resultados com remédios, explica Tófoli. "Descobriram que existem remédios que melhoravam os sintomas da depressão. Depois, descobriram que eles agiam aumentando serotonina, dopamina e noradrenalina", afirma o psiquiatra. Foi natural juntar "dois mais dois" e chegar à conclusão de que a causa dos transtornos seria, então, a falta desses neurotransmissor no cérebro. O problema é que não há comprovação alguma disso.
Repete e melhora? Vamos a uma comparação: pense que você quebrou um braço e o médico te deu morfina no hospital. A dor não foi causada pela falta de opioides no corpo, certo? Mas, mesmo assim, a morfina fez a dor diminuir. Apesar de ainda não conhecermos exatamente as causas da depressão e da ansiedade, já conhecemos algumas opções de tratamento dos sintomas com psicofármacos comprovadamente eficazes.
Mas, se não é o desbalanço químico, então qual a causa? A resposta é anticlimática: ainda não sabemos. Depressão, ansiedade e outros transtornos psiquiátricos são multifatoriais, a soma de fatores pessoais, biológicos e ambientais. Não há um exame de sangue que possa identificá-los. Tófoli resume: "O diagnóstico é clínico. Tem que conversar com o paciente".
Ué, mas se os remédios funcionam... Sim, funcionam mesmo. Aliás, o próprio Tófoli defende o uso deles no tratamento. Mas é essencial que paciente e psiquiatra construam um tratamento que vá além dos fármacos, e inclua psicoterapia e outras abordagens. O psiquiatra Rodrigo Martins Leite, coordenador de relações institucionais do Instituto de Psiquiatria do Hospitais das Clínicas da USP, defende que a mudança no estilo de vida do paciente seja uma das prioridades. "Caímos na real de que não existe uma constante biológica tão clara quanto gostaríamos. Então precisamos sim de exercício físico, meditação, contato social, relações pessoais com afeto... A medicação pode ajudar, mas definitivamente não resolve o problema da existência humana", reflete. Estudos sugerem inclusive que mudanças na alimentação podem ser benéficas, principalmente quando levamos em conta evidências recentes de que a depressão pode ser um processo inflamatório. Mas, de novo: é difícil explicar transtornos psiquiátricos com apenas um fator.
Por que tanta gente acredita em uma hipótese ultrapassada? Antes de mais nada, a hipótese do desequilíbrio químico simplifica a explicação do médico para o paciente. "A teoria dos neurotransmissores é muito útil como ferramenta de trabalho, apesar de não conseguirmos mensurar [os níveis de químicos no cérebro] e bater o martelo. A gente acaba usando essa explicação para motivar o paciente a aderir ao tratamento", explica Leite. Para justificar o uso de um remédio que vai mexer nos neurotransmissores x, y e z, é mais fácil dizer que há um problema com eles. Além disso, essa explicação ajuda a reduzir o estigma do tratamento ao apontar um "culpado". São reações químicas, é a biologia, e ponto.
E tem a indústria, sempre ela. Não dá para esquecer que essa teoria ajudou a psiquiatria a evoluir, ressalta Tófoli, e ainda ajuda os médicos na clínica. Mas é também do interesse da indústria farmacêutica vender uma solução pronta, e há estudos que apontam que os grandes laboratórios ajudaram a alardear essa ideia. A quem possa interessar, essa relação é explorada com mais detalhes neste artigo da revista Piauí assinado por Marcia Angell, que foi diretora de redação do New England Journal of Medicine (NEJM) e escreveu o livro "A Verdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos" (publicado pela editora Record em 2007). Ok, mas precisava ter mexido num tema tão delicado? Tófoli recebeu muitas críticas por ter tratado de um tema tão complexo no Twitter. Ele reconhece que algumas ideias não ficaram muito claras, como o fato de que ele não contesta a eficácia dos remédios. Ainda assim, o psiquiatra defende a importância de debater o tema, inclusive para que médicos e pacientes estejam sempre dialogando para definir e alterar o tratamento em conjunto, quando necessário. "O que funciona para uma pessoa não necessariamente funciona para outra. É preciso trabalhar para encontrar o arranjo adequado para cada um", afirma.



A ação prática das pílulas pode ser tentadora - e até necessária em alguns casos - mas ela acabou se tornando mais um perigoso excesso da sociedade, mais um ponto de desequilíbrio, disfarçado de solução.

Não existe nenhuma comprovação de que a que depressão, TDAH e outros distúrbios mentais sejam causados por baixa produção de certos neurotransmissores. Até quando esse mito será sustentado pela mídia e até por profissionais da saúde mental?
Muito pais mostram, inicialmente, grande resistência em medicar seu filho diagnosticado com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Até serem informados que os estimulantes corrigem um problema que seria causado por um desequilíbrio químico no cérebro da criança. A teoria da baixa produção de dopamina, divulgada pelos laboratórios, foi recebida com entusiasmo por médicos, psicólogos e professores quando surgiram os medicamentos que provocam aumento nos níveis desse neurotransmissor. Afinal, agora poderiam corrigir, de forma prática e rápida, o "problema" da falta de uma substância no cérebro das crianças desatentas e inquietas.
Essa é a ideia que continua imperando nas diversas áreas ligadas à saúde mental infantil e à educação. Ao conversar com pais de crianças diagnosticadas com TDAH, muitos ainda comparam a necessidade de estimulantes à de reposição da insulina em diabéticos. O fato é que não existe nenhuma comprovação das raízes biológicas do transtorno. O que existem são especulações que se contradizem. E mesmo que se chegue em um consenso, a pouca produção de determinados neurotransmissores já pode ser descartada das possibilidades, pois há anos é repetidamente derrubada por inúmeras pesquisas.

Talvez por ser assimilada tão facilmente pela população, talvez por acender a esperança de uma cura rápida e simples, o desequilíbrio químico tornou-se a explicação mais aceita não apenas para o TDAH, mas para quase todo o tipo de transtorno mental - sendo a depressão e a esquizofrenia os dois grandes pilares que sustentam essa hipótese.
Convenientemente divulgada pelos laboratórios ainda antes do lançamento das marcas famosas de fluoxetina e principal argumento de muitas campanhas publicitárias nos países em que a propaganda de psicotrópicos pode ser feita diretamente ao consumidor, a teoria ainda está longe de ser enterrada. Na tentativa de derrubar o mito, o diretor do Instituto de Saúde Mental americano (National Institute of Mental Health - NIMH), Thomas Insel, já declarou que "as noções iniciais de que transtornos mentais são desequilíbrios químicos estão começando a ficar antiquadas". Isso foi em 2011. Muitos anos antes - em 2003 - o psiquiatra e pesquisador de Standford, David Burns, já havia revelado que mesmo tendo dedicado anos de sua carreira à pesquisa do metabolismo da serotonina no cérebro, ele nunca havia se deparado com "nenhuma evidência convincente de que algum transtorno psiquiátrico, incluindo depressão, seja ocasionado por uma deficiência de serotonina no cérebro". Quanto tempo vai levar para que os profissionais da saúde mental no Brasil abandonem esse argumento?

A popularização dessa hipótese colabora com o uso indiscriminado e irresponsável de psicotrópicos. Pode estar entre os fatores que explicam o aumento expressivo do uso de antidepressivos na última década em todo o mundo. De acordo com o National Health and Nutrition Examination Survey (2008), atualmente 23% das mulheres americanas tomam esses medicamentos - um índice que reflete a realidade ocidental, em geral. A certeza de que "produzem pouca serotonina" leva muitas pessoas a acreditar na cura milagrosa das drogas até no caso de depressão leve e moderada - em que esses medicamentos têm resultados comprovadamente iguais aos de placebos.
Autor de diversos livros sobre medicação psiquiátrica e consultor do Instituto Nacional de Saúde Mental, o psiquiatra Peter Breggin destaca que são as drogas que causam o desequilíbrio químico - e não o contrário. E o resultado desse desequilíbrio está evidente nas diversas reações de abstinência que sofrem os pacientes ao largar as medicações psiquiátricas.

No caso dos antidepressivos mais comuns, por exemplo - os ISRS (inibidores seletivos de recaptação de serotonina) - o neurotransmissor, liberado pela célula pré-sináptica, tem seu canal de receptação bloqueado. Assim, ao invés de concluir seu ciclo natural e retornar ao neurônio pré-sináptico, ele é acumulado entre as sinapses. No entanto, os neurônios têm receptores que monitoram o nível de serotonina na sinapse e como o cérebro é plástico, ele naturalmente vai regular a produção do neurotransmissor. Portanto, os antidepressivos causam - e não ajustam - o desequilíbrio químico. Evidências apontam que sua ação sobre a via serotoninérgica provoca o nascimento de novas células nervosas no hipocampo - região afetada nos casos depressão profunda. Isso explicaria o tempo, de cerca de três semanas, que os antidepressivos levam para começar a agir nesses casos.

O metilfenidado - estimulante usado para "corrigir" o TDAH - têm ação quase imediata sobre alguns dos sintomas comuns de crianças hiperativas. Assim como a cocaína, faz com que a dopamina se acumule nas sinapses por muito tempo, levando as células pré-sinápticas a liberar quantidades cada vez menores do neurotransmissor. Com o tempo, o cérebro ajusta a produção de neurotransmissores e a criança desenvolve tolerância à medicação, precisando de doses maiores. O desequilíbrio então realmente se estabelece, o que leva os médicos a receitar outras drogas para compensá-lo.
Para se certificar se tudo isso compensa em longo prazo, uma equipe de 18 pesquisadores, com apoio do Instituto de Saúde Mental americano (NIMH), investigou o desempenho de 579 crianças diagnosticadas com TDAH no período de oito anos. Maior pesquisa já realizada com essa finalidade, o "Estudo Multimodal de Tratamento para TDAH", publicado em 2009, concluiu que depois de um ano e meio, mesmo com o aumento contínuo de dose, as crianças medicadas não apresentaram melhor desempenho em nenhum aspecto com relação às que não receberam medicação. Depois de um tempo, portanto, restam apenas os efeitos colaterais do desequilíbrio provocado pela droga.
"A verdade é que ninguém sabe qual deveria ser a quantidade 'correta' de diferentes neurotransmissores. O nível dessas substâncias é apenas um fator em um complexo ciclo de influências que interagem, como vulnerabilidade genética, stress, hábitos no pensamento e circunstâncias sociais", escreve Christian Jarrett em Great Myths of The Brain (Os Grande Mitos do Cérebro).
A ponte do equilíbrio transformou-se numa corda bamba num mundo de tantos excessos. Buscá-lo passou a ser um desafio que coloca em jogo a saúde física e mental. A ação prática das pílulas pode ser tentadora - e até necessária em alguns casos - mas ela acabou se tornando mais um perigoso excesso da sociedade, mais um ponto de desequilíbrio, disfarçado de solução.


Fernanda Pimentel é psicanalista, professora e pesquisadora. Doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ
e investigas os temas relativos 
à psicanálise na atualidade e à clínica contemporânea. 


28 de janeiro de 2020

49 anos sem Winnicott


Em 28 de janeiro de 1971 falecia o pediatra e psicanalista Donald Winnicott, grande referência na clínica com as crianças.



"A criança brinca para expressar agressão, adquirir experiência, controlar ansiedades, estabelecer contatos sociais como integração da personalidade e, acima de tudo, por prazer." Winnicott





"De fato, somos pobres se formos apenas sãos." Winnicott



Fernanda Pimentel é psicanalista, professora e pesquisadora. Doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ
e investigas os temas relativos 
à psicanálise na atualidade e à clínica contemporânea. 

26 de janeiro de 2020

Sobre a clínica...








Fernanda Pimentel é psicanalista, professora e pesquisadora. Doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ
e investigas os temas relativos 
à psicanálise na atualidade e à clínica contemporânea.