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26 de novembro de 2007

Novas Formas

........Li recentemente um texto de Jô Gondar (Psicanalista, professora adjunta do Departamento de Filosofia e Ciências Sociais da UNI-Rio, membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos.): Sobre as compulsões e o dispositivo psicanalítico, que fala sobre as novas formas de padecimento psíquico. A autora destaca a compulsão, o que ela identifica uma modalidade de recusa que não oferece lugar ao desejo e os impasses trazidos por estes pacientes. Ela separa dois exemplos, um onde essa recusa se dá sob a forma de uma quase petrificação e outro onde ela conduz ao mover-se e ao agir.
Segue abaixo algumas partes que julgo importantes:
........"(...) Em ambos os casos, contudo, há uma recusa a obedecer as injunções, mas realizada de forma vazia, estando ausentes os argumentos ou atos que poderiam efetivamente fazer objeção aos mandamentos. É como se diante de uma lei experimentada como imperativo categórico — imperativo que não leva em conta os prazeres, desejos e inclinações singulares — a resposta do indivíduo fosse uma recusa igualmente categórica, uma desobediência que conduziria, paradoxalmente, à obediência do imperativo, na imposição de manter o desejo fora do campo. (...)
........Pensamos que este modo de dizer não a uma lei experenciada como tirânica e inegociável se encontra presente naquilo que se convencionou chamar de "novos sintomas", ainda que possamos perguntar se eles são, de fato, tão novos assim. À primeira vista, o que nos surpreende nesses distúrbios psíquicos — implicados na bulimia, anorexia, alcoolismo, toxicomania, fenômenos de pânico e disposições melancólicas — é a sua freqüência na cultura e, conseqüentemente, na clínica atual, a ponto de constituírem uma espécie de figura-tipo da contemporaneidade. E o que está em questão, nessa figura-tipo, é a esfera do ato. Trata-se de formas de padecimento que podem ser consideradas patologias do ato, tanto na sua vertente de inibição quanto na de realização. Por este motivo, o problema das compulsões ganha tanta importância na atualidade: nelas, a patologia do ato aparece em sua forma mais nítida.
........O sujeito contemporâneo poderia ser descrito como um sujeito compulsivo, sem que se possa situá-lo numa estrutura clínica definida. Sujeito? Com relação às compulsões, talvez fosse melhor falarmos em atos aos quais não se associa um sujeito capaz de por eles se responsabilizar ou se engajar em suas conseqüências.
........Dissemos já que a compulsão não é um fenômeno novo na psicanálise. É sob dois modos principais que ela se apresenta na obra de Freud. Por um lado, a compulsão (Zwang, em alemão) remete diretamente à neurose obsessiva (Zwangneurose), ainda que, no interior desse quadro, ela apresente matizes. Nas explicações que Freud apresenta sobre essa neurose, compulsão não é simplesmente sinônimo de obsessão, mas diz respeito a uma peculiaridade de determinados sintomas obsessivos: trata-se de pensamentos ou atos que o sujeito realiza ainda que lhe pareçam um corpo estranho, pensamentos ou atos movidos por uma força irresistível contra a qual o sujeito gostaria de lutar. A compulsão, nesse caso, resulta de um conflito psíquico e de uma luta subjetiva entre duas injunções opostas, estando o sujeito impossibilitado de escolher qualquer uma delas. Encurralado nessa hesitação exasperante, a resposta do sujeito é o ato compulsivo
........Mas a compulsão tem em Freud um outro sentido importante: Zwang alude também ao que há de mais radical na pulsão, isto é, sua irrefreável repetição. Mas, diferentemente dos atos compulsivos do neurótico obsessivo, a compulsão à repetição (Wiederholungszwang) não poderia ser encarada como o resultado de um conflito, motivo pelo qual não é necessariamente experenciada, por quem a sofre, como expressão de uma luta íntima. Grosso modo, poderíamos caracterizar a compulsão à repetição como um impulso avassalador ao qual sucumbe o sujeito, que passa então a justificá-lo por contingências da atualidade: é como se ele tentasse organizar o impulso cego segundo os ditames de uma "cena", buscando conteúdos capazes de preencher uma forma vazia, autônoma, e, em última instância, irredutível aos seus próprios conflitos.
........Pensar as compulsões contemporâneas nos obrigaria a manter esse segundo sentido — já que o que as move é a repetição pulsional; em contrapartida, deveríamos distingui-las do primeiro: não se trata de idéias ou atos compulsivos, tais como se apresentam na neurose obsessiva. Tudo indica que, nesta última, a compulsão implica um caminho mais longo, envolvendo elementos psíquicos mais complexos: encontram-se em jogo dois mandamentos opostos — funcionando como ordem e contra-ordem — diante dos quais o indivíduo se vê num estado de hesitação, de dúvida, produzindo-se assim um intervalo de tempo no qual a compulsão não ocorre. Por meio desta hesitação, o obsessivo relativiza a obediência cega ao mandamento, mantendo, ao mesmo tempo, a crença de que seria possível escolher simultaneamente a possibilidade a e a possibilidade b, ou, mais rigorosamente, que seria possível não escolher nem a nem b, para não ter que pagar o preço que se impõe a qualquer escolha. É justamente esse elemento de hesitação, fazendo obstáculo à obediência do mandamento, que se encontra ausente nas compulsões contemporâneas. É como se fosse aí eliminado o intervalo de tempo que a dúvida impõe a este processo, produzindo-se então a compulsão por um caminho mais curto: à injunção impossível se segue diretamente, em resposta, a passagem ao ato.
........Quando falamos em realização pelo caminho mais curto, somos remetidos à pulsão de morte ou, mais exatamente à prática de um gozo destrutivo. O psicanalista que trabalha com compulsivos não demora a notar o quão fortemente se apresenta, nesses pacientes, a aliança entre o supereu e a pulsão de morte, redundando numa forma cruel de injunção superegóica: ao invés de funcionar como barreira a um gozo mortífero, o supereu o exigiria, desprezando por completo a esfera das inclinações subjetivas singulares. O mandamento do supereu ordenaria que o sujeito abdicasse de sua dimensão desejante, agindo única exclusivamente por dever. O que implica, em termos psicanalíticos, que o sujeito se coloca como objeto de gozo a serviço de uma lei cruel. Este carrasco íntimo é a grande personagem dos funcionamentos compulsivos. As compulsões não se reduzem a uma pura e simples obediência ao imperativo superegóico, que os compulsivos não são figuras da moral kantiana, e que o empuxo ao gozo não pode ser diretamente traduzível pelas ordens: coma, beba ou drogue-se. Pensamos, ao contrário, que os atos compulsivos são uma tentativa de fazer obstáculo ao cumprimento da injunção cruel, ainda que essa tentativa fracasse: há neles um lampejo de subjetivação que não chega a efetivar-se como afirmação de desejo.
........(...) Uma das maiores dificuldades encontradas na clínica desses pacientes reside na relação que estabelecem com seus sintomas, tornando-os inacessíveis à interpretação. Em seu sentido clássico, um sintoma é uma formação de compromisso entre uma instância recalcada e uma instância recalcante, por meio da qual o inconsciente se expressa. O que significa dizer que esse sintoma fala, representando um sujeito e revelando algo sobre o seu desejo. Na situação analítica clássica, o paciente chegaria à análise queixando-se de seu sintoma; a partir disso poderia construir uma questão sobre si mesmo, endereçando-a ao analista. Com base nesta questão e neste endereçamento, seria possível formular-se, no campo transferencial, uma interpretação, produzindo-se uma verdade a respeito do desejo.
........Ora, toda essa lógica cai por terra diante dos modos contemporâneos de subjetivação. (...) Raras vezes esses indivíduos, a partir de seus sintomas, se colocam em questão ou produzem associações. Tudo se passa como se seu sofrimento fosse da ordem de uma fatalidade que não inclui um outro, uma fatalidade que a eles se impinge sem matizes, como um monolito do qual eles pouco têm a dizer. Os discursos esvaziados de desejo são freqüentes. (...) Uma constante sensação de estranheza e de não-pertencimento, nem sempre claramente enunciada: uma das grandes fontes de sofrimento para esses pacientes reside no fato de sua própria realidade e a do mundo lhe parecerem profundamente discordantes, como se houvesse um hiato irredutível entre as regras que fazem o mundo funcionar e aquelas que organizam o seu próprio funcionamento.
........Os sintomas compulsivos não podem ser considerados simplesmente como manifestações do inconsciente ou formações de compromisso. Dificilmente poderíamos pensar que o ato compulsivo de beber ou drogar-se, por exemplo, estaria representando um sujeito, ou dizendo algo sobre um desejo inconsciente. Esses sintomas não se produzem a partir de uma operação de recalcamento, ou melhor, não consistem num retorno do recalcado; eles se formam por um caminho mais curto, no qual uma satisfação pulsional, com forte tonalidade destrutiva, se exerce mais diretamente. Por este motivo, estes sintomas resistem, como o azeite à água, à intervenção clássica da clínica psicanalítica — a interpretação. Lembremo-nos aqui das interpretações que Freud dirigia às suas histéricas: eram intervenções que procuravam revelar o sentido oculto de seus sintomas, apontando a verdade do desejo que por eles se expressava; as interpretações tinham por objetivo oferecer um pano de fundo fantasmático a partir do qual os sintomas poderiam ser situados no plano do sentido.
........Todavia, não existe um pano de fundo fantasmático a partir do qual se possa ler as compulsões. Na verdade, o que aí se encontra em falta é justamente essa tela protetora que articula as relações entre a subjetividade e o real. Faltam a fantasia e seus derivados. Esses indivíduos apresentam uma falha brutal na dimensão do imaginário, expressando-se em todos os níveis: na fantasia, na constituição de um semelhante, na constituição da própria imagem corporal. É como se o corpo fosse reduzido a uma matéria da qual eles são meros portadores, criando-se a necessidade de próteses de sustentação egóica, encontradas algumas vezes através de exercícios físicos ou de adereços que rasgam a pele.
........(...) A falha no registro imaginário se articula à relação especial que esses indivíduos estabelecem com a lei. Para eles, a lei não pôde ser subjetivamente construída; ela se impõe sob moldes kafkianos, sem receber o revestimento imaginário que poderia lhe fornecer um sentido particular. (...) Não havendo uma subjetivação da lei, esta se apresenta ao indivíduo em toda a sua crueza e arbitrariedade: parece-lhe que aquilo que a lei proíbe é vetado em si mesmo, de forma violenta e inexplicável; do mesmo modo, parece-lhe que aquilo que a lei obriga se torna uma fatalidade inexorável.
........A forma clássica da interpretação não apela simplesmente para a desconstrução do imaginário; ela se exerce sob a forma de um corte cuja lógica é a da lei da castração. Mas foi justamente esta que não pôde ser subjetivada por esses pacientes. A forma da lei por eles conhecida é a que se apresenta sob forma tirânica, cruel: a lei superegóica.
........Mas estando descartada a interpretação, que modalidade de intervenção clínica seria eficaz, no campo psicanalítico? Pensamos que na direção do tratamento dos pacientes compulsivos, algumas condições, mutuamente implicadas, são requeridas: o esvaziamento do imperativo superegóico, fonte propiciadora de seus sintomas; a constituição de uma esfera imaginária e fantasística; e, o mais importante, a assunção da dimensão desejante, comumente esmagada pelo supereu cruel. Neste ponto a sensibilidade clínica e a disposição para o risco, por parte do analista, são radicalmente convocadas: como criar as condições para que o desejo se afirme, quando não há desejo?
........(...) Retornemos então à hipótese que apresentamos sobre as novas formas de padecimento: dissemos que as compulsões seriam tentativas de dizer não ao imperativo superegóico, sem que, contudo, pudessem demarcar positivamente um território subjetivo. Por elas se expressaria um lampejo de subjetivação que não pôde configurar-se como afirmação de desejo. Contudo, ao valorizarmos as noções móveis e processuais, somos levados a reconhecer que, ainda que não haja desejo, existe aí um índice, uma fagulha, um lampejo desejante que serviria de apoio a um trabalho de construção, a partir do qual uma negação sem consistência poderia transmutar-se em afirmação. Trabalho delicado, árduo, persistente: seria preciso inserir atritos num caminho liso, possibilitando o incremento de matizes, velamentos e ligações onde a satisfação pulsional costumava se exercer num circuito mais direto. Nesse caso, as tonalidades pulsionais — encaradas como parte de um processo de subjetivação — tornam-se a própria matéria a partir da qual se exerce um trabalho.
........(...) A escuta e as intervenções do analista precisarão expandir-se, mostrando-se distintas da mera escuta de palavras ou da produção de interpretações que inflam o supereu. Tornam-se extremamente importantes a esfera do olhar e da voz, agindo mais diretamente no campo pulsional. Da mesma maneira, é preciso que o analista esteja atento às modalidades expressivas do paciente, aos brilhos e sombras do olhar, às suas modulações de voz ou gestuais. Não para fornecer a elas uma interpretação, mas para discriminar através delas os momentos em que pequenas inflexões de desejo são capazes de se colocar em jogo.
........(...) As pequenas percepções nos permitiriam valorizar as intensidades que extrapolam o domínio significante, intensidades que se mostram presentes no tom e ritmo da voz, na expressão do rosto, no tônus e postura corporal. (...) Ao trazer essa noção para a clínica psicanalítica, (...) propõe-se que a "atenção flutuante" não se reduza à escuta, e que inclua também o que é percebido por um "olhar flutuante", capaz de apreender pequenos gestos e atos que não estariam indicando uma cena fantasmática ou uma representação recalcada; para aquém destas, eles seriam um índice de impressões que não se registraram como traços, mas que, todavia, buscam um caminho para se manifestar.
........(...) Trata-se, portanto, de levar ainda mais longe a atenção flutuante, envolvendo uma maior disposição do analista para abster-se da condição de sujeito. (...) Este refinamento perceptivo acolheria de modo mais pregnante os signos de subjetivação que ainda não instituíram como traço, signos que se manifestam através de imagens ou expressões fugidias, aparentemente inócuas, e dificilmente notadas pela percepção corrente. Sobre a base desses signos, todavia, poderiam ser construídas as relações transferenciais.
........No tratamento dessas novas formas de padecimento, o campo transferencial seria convocado para propiciar um traçado de consistência aos lampejos de desejo, aqueles que o supereu não foi capaz de submeter de todo. É neste campo que as ínfimas manifestações desejantes podem encontrar uma possibilidade de expressão e de articulação, um reconhecimento e uma legitimidade. (...) A fineza e delicadeza da escuta e do olhar buscariam, nesses casos, fazer ressoar e persistir os pequenos movimentos de subjetivação, fornecendo consistência ao desejar. O que aqui se coloca em pauta não é a desconstrução do dispositivo psicanalítico, mas a sua ampliação: seria preciso tornar mais finas e mais complexas as regras da associação livre e da atenção flutuante, bem como a proposta de abstenção do analista, a fim de que possam abarcar essas novas modalidades subjetivas."
........Para ver o texto na íntegra, clique aqui.
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