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17 de dezembro de 2008

A psicopatologia na pós-modernidade - As alquimias no mal-estar da atualidade (Parte 3 de 4)

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V. Funcionalidades e acontecimentos

É preciso sublinhar ainda a existência de uma outra característica da psicopatologia na atualidade, além das que foram já referidas. Este último traço se articula de maneira serrada com o discurso terapêutico de base biológica.
Assim, a psicopatologia contemporânea se interessa fundamentalmente pelas síndromes e pelos sintomas, no sentido médico do termo. Com isso, a concepção tradicional de enfermidade, centrada na idéia de etiologia, perde terreno face à articulação de sintomas sob a forma de síndromes. Nestes termos, a psicopatologia da atualidade se aproxima bastante e até se identifica com a nova racionalidade clínica. Esta identificação não é arbitrária e casual, mas se realiza pela identidade da psiquiatria com o novo discurso da medicina clínica, que constituiu os parâmetros novos para realizar um outro recorte no universo das enfermidades.
Neste novo recorte, operado pela medicina clínica, é o medicamento, como instrumento supostamente "eficaz" sobre um conjunto articulado de sintomas, que passa a ser a referência maior para a nomeação e a construção da síndrome. A etiologia passa, neste novo contexto, a ocupar um lugar secundário. Os modernos textos de clínica médica desde os anos 70 e 80, são já construídos nesta moderna orientação metodológica. Enfim, as diferentes modalidades de mal-estar corpóreo são delineadas e classificadas como síndromes, se fundando para isso na ação terapêutica do medicamento, constituindo-se, pois, uma outra concepção nosográfica.
Tudo isso revela uma mudança da estratégica médica frente ao mal-estar corpóreo na sua diversidade. Não se pretende mais a cura, no sentido clássico da medicina clínica, mas apenas a regulação do mal-estar. Por isso mesmo, o medicamento se transforma no vetor da nova construção nosográfica, pois aquele seria o eixo da regulação corpórea. Revela-se, assim, que a leitura do mal-estar corporal assume uma direção totalmente funcional e não mais etiológica. Além disso, as dimensões da história do enfermo e do tempo da doença se transformam em questões secundárias diante do investimento que é realizado sobre o disfuncionamento corpóreo e espacial da enfermidade. Enfim, o novo discurso da medicina se centra sobre os acontecimentos corporais, marcados pela sua pontualidade temporal.
Poderíamos até, se quiserem, articular esta nova construção teórica da medicina com o sistema atual de cuidado e de assistência, no qual a regulação flexível dos disfuncionamentos corpóreos é totalmente dominante face não apenas ao diagnóstico mais conciso e profundo, mas também frente às terapêuticas etiológicas. Seria nestes termos, enfim, que a medicalização do social se realiza na atualidade.
Foi esta racionalidade funcional que a psicopatologia incorporou também no seu campo, de acordo com os parâmetros da racionalidade médica. É sempre a síndrome que está em questão, quando a psicopatologia se volta para a pesquisa de diversas modalidades de depressão. Ou, então, quando se centra no estudo das fobias, renomeadas como síndrome do pânico. Da mesma forma, as toxi-comanias são recortadas da mesma maneira, numa preocupação de ordem funcional.
Seria por isto que as depressões e as toxicomanias se enunciam no plural, à medida que revelam diversas ordenações funcionais, de acordo com os medicamentos escolhidos para a intervenção terapêutica. A antiga nosografia psiquiátrica se reconstitui então em novas bases.
Além disso, a forma de intervenção assume uma direção centrada em acontecimentos, nos quais se revelam os disfuncionamentos do psiquismo. A idéia de história de uma subjetividade, articulada com o eixo do tempo, tende ao silêncio e ao esquecimento. É sempre a pontualidade da intervenção, centrada no psicofármaco, o que está em questão na terapêutica do dispositivo psiquiátrico da atualidade.
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VI. O espetáculo e o narcisismo
Assim, pode-se dizer que a psicopatologia da dita pós-modernidade se caracteriza pelo paradigma biológico, onde as neurociências funcionam como sendo as referências teóricas daquela. Com isso, as psicoterapias ficam num plano secundário no campo da intervenção terapêutica, centrada substancialmente nos psicofármacos. Então a psicanálise passa a ocupar um lugar secundário e periférico no discurso psicopatológico atual. Além disso, as intervenções assumem uma incidência pontual, baseando-se em disfuncionamentos onde o registro das histórias dos sujeitos é algo absolutamente secundário.
Porém, após todo este percurso de caracterização da psicopatologia da pós-modernidade é preciso agora retomar o nosso ponto de partida, isto é, o fato de que neste campo psicopatológico se privilegiem as depressões, as toxicomanias e a síndrome do pânico. É sobre o enigma que isso tudo representa que devemos nos voltar agora.
Para realizar isso, em contrapartida, é preciso que desconfiemos, por pouco que seja, das evidências clínicas da psicopatologia. Vale dizer, como não se pode confiar inteiramente na cientificidade da psiquiatria, é preciso que nos indaguemos saber as supostas obviedades do consenso psicopatológico. Para isso, necessário é que nos perguntemos sobre a modalidade negativa de subjetividade que perpassa a leitura destas diferentes perturbações psíquicas, para que se possa surpreender qual é o estilo de sujeito que é positivamente destacado na atualidade. Vale dizer, é preciso caracterizar devidamente qual é o ideal de valores que deve pautar a forma de ser da individualidade no mundo pós-moderno. Quero dizer com isto que as ênfases negativas colocadas na interpretação destas perturbações do espírito indicam o imperativo moral do que devemos ser. É justamente isto que nos cabe decifrar como enigma.
Como empreender isto? Para puxar o fio desta meada vou me valer das descrições, forjadas nos últimos anos, sobre a sociedade atual. Isto porque, nesse período, uma série de termos foi lançada no mercado de bens simbólicos com a finalidade de caracterizar as novas formas de sociabilidade que estavam se constituindo. Não tenho aqui a intenção de ser exaustivo, bem-entendido, mas de sublinhar somente algumas palavras deste vocabulário. É evidente que aquelas têm a pretensão de serem conceitos, isto é, de funcionarem como instrumentos operatórios capazes de desvelar a tessitura das novas modalidades de subjetividade.
Assim, no final dos anos 60, o autor francês G. Débord denominou de "sociedade do espetáculo"6 as modalidades originais de sociabilidade que então se forjavam, enquanto o norte-americano Lasch as interpretou segundo a lógica da "cultura do narcisismo"7 , no final dos anos 70. Tudo isso pode ser considerado como variantes de uma mesma matriz, qual seja, o pós-modernismo. Pela concepção de pós-modernidade alguns teóricos procuraram enunciar um conceito genérico que fosse capaz de dar conta das sociabilidades inéditas que estavam se tecendo, indicando, com isso, uma ruptura com a modernidade.
Pode-se afirmar que, pela noção de sociedade do espetáculo, Débord indicara que a demanda de engendramento do espetacular definia o estilo de ser das individualidades e da relação entre essas na pós-modernidade. A idéia de espetáculo se conjuga aqui com as de exibição e de teatralidade, pelas quais os atores se inserem como personagens na cena social. Tratar-se-ia, antes de mais nada, de máscaras, mediante as quais as personas se inscrevem e desfilam no cenário social. Além disso, as metáforas do exibicionismo e da mise-en-scène reenviam para a de exterioridade, forma primordial pela qual se concebe a economia da subjetividade na sociedade do espetáculo. Tudo isso remete para as resultantes maiores desta leitura, isto é, a exaltação do eu e a estetização da existência realizadas pelos indivíduos.
Pelos imperativos da estetização da existência e de inflação do eu, pode-se fazer a costura entre as interpretações de Débord e de Lasch, já que a exigência de transformar os percalços incertos de uma vida numa obra de arte evidencia o narcisismo que o indivíduo deve cultivar na sociedade do espetáculo. Nesta medida, o sujeito é regulado pela performatividade mediante a qual compõe os gestos voltados para a sedução do outro. Este é apenas um objeto predatório para o gozo daquele e para o enaltecimento do eu. As individualidades se transformam, pois, tendencialmente, em objetos descartáveis, como qualquer objeto vendido nos supermercados e cantado de prosa e verso pela retórica à publicidade. Pode-se depreender disso, com facilidade, que, neste contexto, a alteridade e a intersubjetividade são modalidades de existência que tendem ao silêncio e ao esvaziamento.
Toda esta construção, colorida pelos ouropéis do artifício, é mediada pelo universo da imagem. Esta é sempre a personagem principal que é valorizada e inscrita nos roteiros performáticos da pós-modernidade. A imagem é, pois, a condição sine qua non para o espetáculo na cena social e para a capitação narcísica do outro. A imagem é a condição de possibilidade da sedução e do fascínio, sem a qual o ideal de captura do outro não pode jamais se realizar neste festim diabólico de exibicionismo.
A produção deste imaginário social se realiza de diversas maneiras, entre as quais se destaca a mídia. Sem esta o espetáculo se esvazia, perdendo o seu colorido retumbante e o seu poder de captura do outro. Tanto pelas vias da televisão quanto da informática e do jornalismo escrito, a cena pública se desenha sempre pelas imagens. Desta maneira, não se pode mais opor o original e a cópia, pois o simulacro perpassa a totalidade do tecido social, constituindo uma nova concepção de realidade e do que seja o real.
Assim, ser e parecer se identificam absolutamente no discurso narcísico do espetáculo, sendo aquele o pressuposto ontológico desta interpretação da sociabilidade. Pela subversão das hierarquias entre o verdadeiro e o falso, do original e de suas cópias, a sociabilidade narcísica é antiplatônica por excelência. Com isso, o que o sujeito perde em interioridade ganha em exterioridade, de maneira que aquele é marcadamente autocentrado. É neste sentido que o sujeito se transforma numa máscara, para exterioridade, para a exibição fascinante e para a captura do outro.
..................................................................Continua...
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Leia a parte 1 e 2.
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Entrevista: Roudinesco - Parte 3

Terceira parte da entrevista de Roudinesco no Saia Justa





Confira a primeira e segunda parte desta postagem

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11 de dezembro de 2008

A psicopatologia na pós-modernidade - As alquimias no mal-estar da atualidade (Parte 2 de 4)

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III. O paradigma das neurociências

Assim, uma terceira característica da psicopatologia atual é a sua pretensão em ter um fundamento biológico. A biologia é o fundamento incontestável da psicopatologia na atualidade. As neurociências fornecem os instrumentos teóricos que orientam a construção da explicação psiquiátrica. Por este viés, pois, a psicopatologia pretende ter encontrado finalmente a sua cientificidade, de fato e de direito. Além disso, a nova psicopatologia acredita ter se encontrado enfim com a sua vocação médica, num processo iniciado no início do século XIX, à medida que se fundaria no discurso biológico.
Como se sabe, a psiquiatria sempre se encontrou numa posição incômoda no campo da medicina, pois pretendendo ser uma especialidade médica nunca conseguiu se fundamentar com os saberes advindos da racionalidade médica. O discurso do anátomo-clínica,1 base epistemológica da dita medicina científica, não encontrava legitimidade no campo da psiquiatria.2 A psiquiatria buscava as causas físicas dos distúrbios mentais e apenas encontrava, desde Pinel e Esquirol, as causas morais. Em contrapartida, o tratamento moral era a base da terapêutica psiquiátrica – em níveis individual e institucional –, que se afastava então de maneira decisiva dos cânones do saber médico.3 Enfim, a psiquiatria era uma falsa medicina, uma pseudo-medicina, já que não se fundamentava pelos saberes que fundavam a medicina.
A psicofarmacologia possibilitou, desde os anos cinqüenta, a construção de uma outra identidade para a psiquiatria, que pôde se aproximar, então, dos cânones da medicina. O desenvolvimento recente das neurociências possibilitou a reconstrução da medicina mental, aproximando esta, finalmente, da medicina somática. Completou-se, com isso, o sonho do saber psiquiátrico de se trans-formar não apenas numa ciência, mas numa especialidade médica.
Pode-se depreender disso o que existe de antigo e de novo na psicopatologia da atualidade, como afirmei inicialmente. Com efeito, ao se fundamentar no discurso das neurociências, a psicopatologia consegue se realizar como uma modalidade de saber médico, se encontrando com a sua antiga pretensão originária de pertencer ao campo da medicina. Nada mais antigo, pois, que a novidade apresentada pela psicopatologia contemporânea, que encontra finalmente as suas origens e seus mitos fundadores, legitimando a sua identidade médica.
Ao se fundamentar nos discursos das neurociências a psicopatologia atual pôde questionar a causalidade moral das perturbações do espírito, para nos valermos da linguagem do discurso psiquiátrico originário,4 onde se opunham as causas morais e físicas das perturbações mentais. Isso porque as neurociências têm a pretensão de fundamentar as funções do espírito, de maneira autônoma e independente. Vale dizer, as neurociências pretendem construir uma leitura do psiquismo, de base inteiramente biológica. Com isso, o funcionamento psíquico seria redutível ao funcionamento cerebral, sendo este representado numa linguagem bioquímica. Enfim, a economia bioquímica dos neurotransmissores poderia explicar as particularidades do psiquismo e da subjetividade.
Esta transformação epistemológica produziu mudanças terapêuticas imediatas. A psicofarmacologia se transformou no referencial fundamental da terapêutica psiquiátrica, dado que as neurociências pretenderam fundar uma leitura do psiquismo. Com isso, a medicação psicofarmacológica pretende ser a modalidade essencial da intervenção psiquiátrica. Em conseqüência disso, a psicoterapia tende a ser eliminada do dispositivo psiquiátrico, transformando-se num instrumento totalmente secundário face à intervenção psicofarmacológica. A psicoterapia passa a ser representada como uma peça de museu, sendo colocada como periférica no dispositivo psiquiátrico da atualidade.
Com este deslocamento das psicoterapias para a periferia da intervenção psiquiátrica se constituiu uma inversão significativa entre a psicanálise e a psiquiatria, como veremos agora.
IV. Inversões
Assim, pela pretensão realizada de ter se transformado numa "ciência" e numa especialidade médica "respeitável", a psiquiatria não quer ter mais qualquer proximidade com a psicanálise. Seria preciso afastar a psicanálise do campo psiquiátrico, não misturar mais, em qualquer hipótese, aquela com a psicopatologia, pois isso acarretaria o risco de afetar a identidade médica e "científica" da psiquiatria.
Aconteceu aqui algo espantoso, da perspectiva histórica. Diria mesmo surpreendente. E isso de um duplo ponto de vista, a serem considerados de maneira esquemática. Desta forma, poderemos aquilatar a inversão a que me referi acima.
Devemos evocar aqui, inicialmente, que até os anos 70 a psiquiatria era fundada no discurso psicanalítico. A psicanálise era o saber de referência fundamental da psiquiatria, não obstante o desenvolvimento progressivo da psicofarmacologia desde os anos 50. É evidente que já se constituíra então a oposição entre dois grandes paradigmas do campo da psicopatologia: o primeiro centrado na psicanálise e, o segundo, na psicofarmacologia. Contudo, o discurso psicanalítico ocupava uma posição estratégica no campo psiquiátrico, detendo a hegemonia no discurso psicopatológico.
Com isso a psiquiatria era essencialmente psicanalítica, regulada que era pelos cânones psicanalíticos. Esta presença podia ser verificada tanto nas tradições francesa, quanto na inglesa e na norte-americana. Contudo, nos anos 70 tudo isso se transformou. O paradigma biológico da psiquiatria se impôs, reconstituindo o discurso psicopatológico em novas bases. Conseqüentemente, a psicanálise perdeu o lugar de hegemonia no campo da psiquiatria, ficando, pois, numa posição secundária e subalterna.
Este processo histórico de reconstrução do campo psicopatológico já era evidente nos Estados Unidos no início dos anos 70, num processo irreversível iniciado nos anos 60.5 Na França, este processo de autonomização da psiquiatria face à psicanálise iniciou-se nos anos 80 e está em curso. No Brasil e na América Latina pode-se reconhecer o mesmo rumo nas novas relações entre a psiquiatria e a psicanálise.
Porém, todo este processo apresenta ainda uma outra face, que é tão fundamental quanto a primeira. Com efeito, a psicanálise não perdeu apenas a hegemonia no campo da psicopatologia, sendo substituída pelo paradigma biológico, mas, além disso, tem mostrado um interesse crescente pelos modelos biológicos das neurociências. Vale dizer, a psicanálise passa a incorporar no seu discurso os referenciais teóricos do discurso psiquiátrico. Tudo isso des-caracteriza, evidentemente, o discurso psicanalítico.
Pode-se perceber isso não apenas no registro das novas publicações em psicanálise, como também nas linhas de pesquisa de laboratórios avançados de psicanálise na universidade. Isso se passa não apenas na Europa e nos Estados Unidos, como também na América Latina. A medicalização da psicanálise atingiu um outro limite, absolutamente novo, do que já conhecíamos de outros momentos da história do movimento psicanalítico.
Nesta inversão de lugares e de posições estratégicas, a psicanálise fica numa posição agora secundária no campo da psicopatologia. Além disso, o discurso psicanalítico começa a fazer bricolagens com os discursos das neurociências e do cognitivismo, silenciando a sua especificidade. A inversão, enfim, é total, no horizonte histórico que estamos inscritos, entre a psicanálise e a psiquiatria.

Joel Birman
......................................................................Continua...
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Para ler a parte 1 clique aqui.

Entrevista: Roudinesco - Parte 2

Mais uma parte da entrevista de Elisabeth Roudinesco no Saia Justa



Veja a parte 1 aqui.