.
.

26 de janeiro de 2009

Artigo: A INFLUÊNCIA DE JACQUES LACAN (Parte 1 de 3)


.Este artigo é do psiquiatra e psicanalista Marco Antonio Coutinho Jorge e foi apresentado no Colóquio “Lacan, psychanalyste”, organizado pelo Mouvement du Coût Freudien e realizado no Amphithêatre Charcot, Hôpital de la Salpétrière, Paris, em 27 e 28 de março de 1999.
.
A Influencia de Jaques Lacan na psicanalise brasileira
.
A presença do ensino de Lacan na psicanálise brasileira é hoje absoluta. Prova disso foi a recente participação brasileira no I Congresso da Convergencia – Movimento Lacaniano para a Psicanálise Freudiana, que reuniu quarenta e nove instituições do mundo inteiro (nove brasileiras) em Paris, na sede da UNESCO, entre 2 e 4 de fevereiro passados. Mas a entrada do ensino de Lacan em nosso país obedeceu às características do movimento psicanalítico de cada região. Vou expor aqui minha inserção nessa história, assim como sua incidência sobre minha prática no Rio de Janeiro, ressaltando que esta cidade foi a que produziu o maior impulso na divulgação de Lacan no Brasil, o que pode ser exemplificado pela publicação pioneira, por uma tradicional editora carioca, Jorge Zahar, desde 1979, dos escritos e seminários de Lacan, assim como de muitos autores lacanianos.

Menciono o ensino de Lacan e não sua teoria, na medida em que a entrada de Lacan no Brasil se deu essencialmente em função da renovação da prática clínica. E, de fato, um ensino de psicanálise digno desse nome se qualifica por ser eminentemente um ensino clínico. Por outro lado, amputar o ensino de Lacan de sua dimensão clínica, como parece ocorrer em linhas gerais nos EUA, onde Lacan até recentemente era estudado quase exclusivamente nos departamentos de literatura das universidades, seria neutralizar a ênfase que ele mesmo deu à psicanálise enquanto prática: “É de meus analisandos que aprendo tudo, que aprendo o que é a psicanálise”, disse ele numa conferência aos mesmos norte-americanos.

A DESMEDICALIZAÇÃO DA PSICANÁLISE

A primeira instituição psicanalítica carioca de orientação lacaniana foi o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, do qual participei durante quinze anos, desde o ato de sua fundação em 1975, quando ainda estudava medicina. Tomando a palavra na imprensa para divulgar a novidade inerente à contribuição lacaniana, esse grupo não tardou em conquistar um espaço cada vez maior junto ao meio psicanalítico.

A quase totalidade dos psicanalistas de orientação lacaniana dessa geração passou por esta instituição. A partir dos anos 80, diversas cisões ocorreram no seio desse grupo pioneiro e outras instituições foram criadas. Ainda que o estilo dessa instituição tenha sempre suscitado polêmica, é preciso dizer que ela transmitiu, nesses primórdios do lacanismo no Brasil, as bases da teoria lacaniana. Destaco como a característica principal dessa transmissão a abordagem retroativa de Freud e Lacan, a partir do último e mais importante segmento do ensino de Lacan: aquele que inclui as fórmulas quânticas da sexuação (uma releitura dos achados freudianos sobre a sexualidade humana), a topologia matemática (visando à demonstração do que escapa à possibilidade de ser dito), os quatro discursos (formas básicas de liame social que ligam o sujeito ao outro) e a tripartição estrutural Real-Simbólico-Imaginário (paradigma teórico lacaniano primordial, que retoma as principais teses freudianas no quadro de uma ampla concepção do psiquismo, a partir das novas contribuições advindas da lingüística e da antropologia estrutural).

Este trabalho de transmissão, naquele momento inaugural, conseguiu chamar atenção para a novidade do pensamento lacaniano, e, mais essencialmente, para seu rigor em relação à letra de Freud. Um grande empuxo revitalizante se produziu no estudo e na pesquisa, atingindo a comunidade psicanalítica com grande impacto. Os analistas foram levados a questionar os fundamentos de sua prática, o que teve como efeito depará-los com o não-saber que está no cerne da experiência analítica. Citando Oliver Cromwell, Freud já observara que quando não sabemos aonde vamos, vamos muito mais longe...

Se, na década de 70, a psicoterapia de grupo havia se difundido amplamente, sobretudo entre os jovens, hoje ela praticamente não existe mais. Contribuíram para sua difusão, na época, o preço da sessão mais baixo em relação ao cobrado pelos psicanalistas por uma sessão individual e a situação ditatorial brasileira, que levou os jovens a buscar nos grupos algum alento. Uma sociedade de psicoterapia de grupo foi criada para dar conta dessa crescente demanda. Mas a chegada do movimento lacaniano, com a conseqüente legitimidade adquirida pelos psicólogos para a formação analítica, rapidamente teve como efeito a quase extinção da prática de grupo, uma vez que os preços da análise individual deixaram de ser regulados pela hora médica.

O panorama encontrado pelos primeiros analistas seguidores de Lacan no Brasil foi bastante semelhante ao encontrado por Lacan na França, na década de 50, quando iniciou seu movimento de “retorno a Freud”. A prática da psicanálise, monopolizada pela IPA, era regida pela medicalização da psicanálise e pelo repúdio à análise leiga. Formei-me em medicina, aliás, devido à exigência feita então aos psicanalistas de terem um curso médico e pude observar, surpreso que, às vezes, os psiquiatras faziam formação psicanalítica apenas para obter o título e aceder a um patamar de prestígio de superpsiquiatra...

A concepção de uma prática analítica desmedicalizada influiu com grande impacto na difusão das idéias de Lacan. Além disso, seus porta-vozes vinham a público apresentar suas idéias, realizando conferências nas universidades e dando entrevistas para a imprensa, e não permaneciam entrincheirados entre as quatro paredes de seus consultórios, envoltos numa aura de mistério iniciático.

A impressão de quem viveu esse período inicial de ebulição do ensino de Lacan no Brasil é, num olhar retrospectivo, de que a psicanálise estava mortificada por um violento processo de ideologização. Lacan veio trazer um salutar fôlego ao ambiente psicanalítico, sufocado pela prática kleiniana, com suas intervenções psicologizantes, e pelo fechamento elitista das sociedades psicanalíticas. Tudo se passou como se os psicanalistas tivessem sido repentinamente sacudidos de sua acomodação, sentindo necessidade de tomar a palavra sobre as questões da prática clínica e da cultura.


..............................................................................Continua

Veja o site do autor: http://www.macjorge.pro.br/

.

Nenhum comentário: