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29 de janeiro de 2009

Artigo: A INFLUENCIA DE JACQUES LACAN (parte 2 de 3)


A RENOVAÇÃO DA CLÍNICA
A transmissão de Lacan esteve muito ligada de início à renovação da concepção do dispositivo analítico, situado por ele de modo tão inovador que acabou atraindo os analistas para um novo tipo de experiência, inclusive aqueles já formados há longa data.
Contudo, um dos efeitos desse período inaugural foi o uso mimético, irrefletido, das sessões curtas, fato que sabemos não ter sido apanágio exclusivo dos psicanalistas brasileiros, como pude desenvolver em meu artigo "Usos e abusos do tempo lógico" (revista Ágora, v.III, n.1). Isso foi alvo de grande polêmica e produziu intensas resistências ao discurso lacaniano, das quais evidentemente os analistas não-lacanianos se aproveitaram, por sua vez, para atacar Lacan como um todo: seus representantes se pronunciaram na época na imprensa dizendo que os lacanianos estavam destruindo a psicanálise. Outro efeito colateral ligado ao uso do tempo lógico "cronometrado" em cinco minutos foi a redução da interpretação a um superficial jogo de palavras, numa perda evidente da dimensão da experiência analítica.




Por outro lado, a ênfase na leitura de Freud, preconizada por Lacan em cada um de seus escritos e seminários, e o questionamento dos desvios ideológicos e anti-psicanalíticos dos analistas pós-freudianos, produziram na comunidade psicanalítica não só um intenso empuxo no sentido da reflexão teórica depurada, como, a partir daí, a necessidade de elaboração da diferença entre rigor e rigidez na maneira de conduzir a análise. Tudo aquilo até então sustentado de modo dogmático passou a ser radicalmente interrogado: o lugar do psicanalista, sua intervenção, os objetivos da análise. No cerne desses múltiplos questionamentos, estava a reflexão lacaniana sobre a ética da psicanálise: Lacan foi o primeiro psicanalista a nomear uma ética particular à psicanálise, centrando-a em torno do desejo do sujeito.
Aos poucos, caíram as concepções mais tradicionais, tanto a respeito da prática clínica como também da formação psicanalítica. Ocorreu, em especial, a queda da distinção entre análise didática (de formação) e análise terapêutica: para Lacan, toda análise pode vir a ser didática, uma vez que seu aspecto didático só pode ser revelado depois de concluída a experiência, jamais a priori. A freqüência e a duração das sessões, padronizadas até então de forma burocrática, passaram a ser flexíveis. Com Lacan, a prática da psicanálise foi, enfim, analisada.
É verdade que esse questionamento deu margem, por sua vez, a excessos na adoção das novas fórmulas, dependentes, por um lado, de um modismo que acomete todas as práticas humanas e, por outro, da insipiência da experiência. Assim, o uso sistemático de sessões de curta duração parece-nos ser tão pouco congruente com a verdade que é exigida pela experiência do psicanalista, quanto o uso da sessão cronometrada em cinqüenta minutos. Tanto um quanto outro mimetizam as práticas de dois analistas muito singulares, Lacan e Freud, caracterizando-se por não levar em conta a necessidade do psicanalista encontrar seu próprio estilo na condução do tratamento. Num de seus artigos sobre técnica, Freud observou que jamais preconizara formas protocolares de analisar, e apenas expusera soluções que se revelaram condizentes com sua preferência pessoal.
Hoje, o momento é de uma assimilação mais subjetivada das contribuições fundamentais de Lacan. Se a difusão do pensamento lacaniano é onipresente na psicanálise brasileira, isto se dá pela própria força de seu ensino e pela verdade carreada por ele: o de uma verdadeira renovação da clínica psicanalítica. Se o ensino de Lacan obteve tamanha repercussão, isso se deu sobretudo em função dele constituir uma verdadeira re-fundação da psicanálise, que associou seu nome de modo indelével ao de seu criador.
Enquanto no Brasil, de modo semelhante ao ocorrido nos EUA, a IPA abria as portas para a ideologização da prática e, surpreendentemente, considerava a leitura de Freud como algo secundário para a formação dos psicanalistas, Lacan chamava atenção para a radicalidade muitas vezes desconhecida e para a fecundidade igualmente inexplorada do texto freudiano.
A psicanálise é a prática da psicanálise, cuja função original inédita é a de manter uma relação com o saber enquanto verdade. Trata-se de uma prática que, ao contrário do discurso do mestre, não admite dominações, pois desse modo retornaria à etapa pré-psicanalítica, na qual os psiquiatras se empenhavam na hipnose e na sugestão. Sabe-se que nos EUA a prática da psicanálise sofreu um grande declínio que se sucedeu, paradoxalmente, a uma enorme difusão. Como ponderou Gérard Pommier em A neurose infantil da psicanálise (Jorge Zahar, 1995), a manutenção da vida da psicanálise depende de que ela possa manter-se fiel à ética que lhe é própria, sem o que ela se homogeneiza com outras práticas psicoterápicas e perde sua razão de ser.
Não cabe aqui enumerar as férteis distinções estabelecidas por Lacan no campo teórico. Ressalto apenas que sua elaboração sobre o inconsciente estruturado como uma linguagem levou-o a conceber, na clínica, o lugar do analista como lugar de uma douta ignorância e a interpretação exclusivamente em sua relação com o dizer do analisando, preservando o valor primordial da escuta da fala do sujeito.

.....................................................Continua...



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