Rivotril: por que o medicamento é o segundo mais vendido no país?
O sucesso espetacular do Rivotril no Brasil não ocorre com outros medicamentos da mesma categoria. A classe dos tranquilizantes é a sétima mais vendida no país – vende menos que anticoncepcionais, analgésicos, antirreumáticos e outros tipos de remédio. A clara preferência pelo Rivotril é um fenômeno brasileiro, que não se repete em outros países.
A escalada desse ansiolítico na lista dos mais vendidos sugere que a população em sofrimento psíquico pode ser maior do que se imagina. Transtornos de ansiedade e depressão são comuns nas grandes cidades, castigadas pela violência, pelo trânsito e pelo desemprego. Mas a pesquisa São Paulo Megacity, uma parceria do Hospital das Clínicas de São Paulo com a Organização Mundial da Saúde, revela que cerca de 40% dos moradores da região metropolitana sofre de algum tipo de transtorno psiquiátrico. É um porcentual que os próprios psiquiatras consideram “assustador” – e que depõe frontalmente contra a imagem de “nação feliz” que os estrangeiros e nós mesmos, brasileiros, gostamos de cultuar.
O segundo problema que leva à indicação excessiva do Rivotril é a precariedade do atendimento de saúde brasileiro, sobretudo de saúde mental. Há falta de psiquiatras no país. Consequentemente, as pessoas não recebem diagnóstico correto e não têm tratamento adequado de seus problemas. Quando o paciente chega ao consultório com enxaqueca, gastrite ou qualquer outra queixa que possa ter alguma relação com ansiedade, frequentemente ganha uma receita de Rivotril. “Os médicos fazem isso porque o remédio é barato (a caixinha mais cara custa R$ 13), antigo e seguro”, diz Luiz Alberto Hetem, vice-presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria. “Mas ele pode mascarar quadros mais graves.” O ansiolítico acalma e atenua a ansiedade, mas os problemas subjacentes não são diagnosticados. “Grande parte das pessoas nem sequer sofre de ansiedade. A depressão é muito comum”, afirma a psiquiatra Mônica Magadouro. “Mas o atendimento é tão precário que nem se nota a diferença.”
O terceiro fator que contribui para a venda de Rivotril é o que o psicanalista Plínio Montagna chama de “glamorização do ato de medicar-se”. No passado havia preconceito contra os remédios psiquiátricos. Recentemente, houve uma guinada cultural e eles passaram a ser vistos como resposta a todos os problemas da existência. Os médicos (sobretudo os que não são psiquiatras) receitam remédios psiquiátricos com total desenvoltura. Da parte dos pacientes, também existe a expectativa de que isso aconteça.Todos têm pressa.
“Emoções normais e importantes para a mente, como tristeza ou ansiedade em situação de perigo, são eliminadas porque incomodam”, diz Montagna, que é presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Questões existenciais são tratadas como sintomas médico-psiquiátricos, com a colaboração de “uma avassaladora quantidade de dólares” gastos em publicidade pela indústria farmacêutica. “É frequente eu receber para tratamento pacientes com dosagens excessivas de medicação ou coquetéis de diversas substâncias, sem que os aspectos psicológicos tenham sido levados em consideração”, afirma o psicanalista, que também é formado em psiquiatria.
Por trás da precariedade do sistema de saúde e do modismo da medicação, existe a crescente incapacidade das pessoas – e dos médicos – em conviver com um dos sentimentos mais enraizados da psique humana, a ansiedade. Ela está lá desde os primórdios do homem, associada a temores e ameaças indefiníveis. Embora desagradável, é um dos motores da existência. Faz parte da nossa constituição evolutiva. “Ela é um estado de alerta, um estímulo para produzir. O contrário da ansiedade é a apatia”, diz o psicanalista Eduardo Boralli Rocha. Totalmente diferente dessa ansiedade benigna é a combinação explosiva de urgência, competição e sentimento de exclusão que caracteriza o nosso tempo.
“As pessoas sentem que em algum lugar está havendo uma festa para a qual elas não foram convidadas e têm de correr atrás”, diz Boralli. Sigmund Freud, o criador da psicanálise, dizia que a ansiedade era o sintoma de algo que não estava bem resolvido interiormente. Ele diferenciava entre a ansiedade produzida por uma situação externa real e aquela imaginada ou brutalmente amplificada por nossos medos interiores. A primeira não deveria ser medicada, mas ela tornou-se tão presente, tão avassaladora, que é isso que tem sido feito, em larga escala.
Quando indicado segundo os melhores critérios, o Rivotril pode ser bastante útil no tratamento da ansiedade generalizada. O paciente vive angustiado, preocupado, nervoso. Dorme mal, não se concentra e se irrita por qualquer coisa. Sozinho, no entanto, o remédio não resolve o problema. O tratamento depende também do uso de outros recursos, como antidepressivos, psicoterapia e atividade física. O mesmo vale para o tratamento de outros transtornos, como síndrome do pânico, fobias e transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). Enquanto os antidepressivos demoram cerca de duas semanas para começar a agir, o Rivotril age rápido, assim como outros ansiolíticos (Lexotan, Valium, Frontal etc.). A função desses remédios é ser uma ponte temporária até o início da ação dos antidepressivos. Ou um apoio. A síndrome do pânico, por exemplo, é tratada com antidepressivos. Quando o paciente enfrenta situações que podem provocar recaídas, é comum que o médico recomende que tenha o Rivotril sempre à mão.
Esses remédios, no entanto, não devem ser usados por muito tempo e sem rigoroso acompanhamento médico. Eles podem causar dependência. Há pessoas que desenvolvem dependência em cinco anos. Outras se viciam em menos de 30 dias. Podem ocorrer crises de abstinência com a interrupção da droga. Os sintomas mais comuns são insônia, irritabilidade excessiva e tremores. Não há dose segura contra o vício. “Rivotril não deve ser remédio de uso contínuo. Deve ser reservado para as crises agudas e usado por no máximo seis semanas”, diz o psiquiatra Joel Rennó Jr., coordenador do Projeto de Saúde Mental da Mulher do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Na prática, muitos pacientes recebem a receita de Rivotril e passam meses sem ser vistos por um médico. Quando voltam a consultar um profissional de qualquer especialidade, dizem que o anterior receitou o remédio e se sentiram bem. Acabam saindo do consultório com uma nova receita.
A professora gaúcha Carmen Paula Pinto, de 40 anos, toma Rivotril há cinco, como parte do tratamento de transtorno bipolar. Reclama de efeitos colaterais como sonolência e boca seca. Mas o que mais a incomoda é o enfraquecimento da memória. “Quando leio um livro, muitas vezes tenho de voltar à mesma frase, ao mesmo parágrafo. Uma vez até cheguei a esquecer o que havia almoçado”, diz. Há três anos, decidiu parar de tomar o remédio por conta própria. Sentiu sintomas de abstinência, como tontura e falta de equilíbrio. Depois de alguns meses, decidiu voltar ao remédio. “Estou conformada em ter de depender do remédio por um bom tempo ou até para sempre.”
Carmen é acompanhada por um psiquiatra e compra o remédio de acordo com a orientação dele. Uma parcela dos consumidores chega ao remédio por meio de outros expedientes. “Muita gente consegue adquirir ansiolítico pela internet ou compra receitas em consultórios de quinta categoria”, afirma Rennó Jr. Em uma das pesquisas coordenadas por Elisaldo Carlini, do Cebrid, descobriu-se que um único médico fez mais de 7 mil prescrições de ansiolítico por ano. Houve casos também de falsificação dos receituários. As receitas que ficavam retidas nas farmácias continham o mesmo número de série ou o CRM de médicos mortos ou inexistentes. Formas ilícitas de acesso ao remédio alimentam o uso recreativo de Rivotril. Ele virou um clássico nas baladas entre jovens que o misturam com ecstasy ou álcool. Há várias comunidades no site de relacionamento Orkut criadas por usuários dessa combinação. O Rivotril potencializa a função do álcool. Em doses excessivas, a mistura pode levar ao coma. Há outro tipo de uso, associado ao ecstasy e à cocaína, drogas que deixam as pessoas ansiosas. Elas tomam Rivotril para tentar neutralizar esse efeito. Segundo os especialistas, não adianta.
Por trás do crescimento das vendas do Rivotril há uma história de marketing que merece ser contada. Até 1999, o remédio era promovido entre os médicos apenas como um anticonvulsivante. Era um mercado restrito. Nos últimos anos, surgiram estudos que comprovaram que ele funcionava contra a ansiedade. O fabricante passou a divulgar essa aplicação entre psiquiatras, cardiologistas, neurologistas, geriatras etc. “O sucesso do Rivotril é decorrência do aumento dos casos de transtornos psiquiátricos e do perfil único do nosso produto: ele é seguro, eficaz e muito barato”, diz Carlos Simões, gerente da área de produtos de neurociência e dermatologia da Roche. “E o baixo preço protege o produto.” O Rivotril é 600% mais barato que o seu principal concorrente, o Frontal, da Pfizer. Outra característica ajuda a explicar por que ele vende tanto. É o único de sua categoria disponível também na apresentação sublingual – gotas que agem rápido se colocadas embaixo da língua.
Na casa da aposentada Ecleide Moreira Rodrigues, de 60 anos, não pode faltar Rivotril. Ele é usado com duas finalidades distintas: o filho de Ecleide sofre de epilepsia e não fica sem o remédio. Há um ano, ela também virou adepta do medicamento. Não consegue dormir sem ele. Descobriu que a causa da insônia era estresse e depressão. Chegou a fazer psicoterapia e percebeu que passou a dormir melhor. Mas parou antes de receber alta. “Por relaxo”, diz ela. Em casos como o de Ecleide, a psicoterapia pode dar ótimos resultados. Mas não costuma ser um percurso fácil. Para vencer a ansiedade não basta recorrer a umas gotinhas de Rivotril a cada crise. É preciso reorganizar a vida.
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