Construção da feminilidade
Em sua releitura da teorização freudiana do Édipo, o psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1980) ressalta alguns pontos importantes para a compreensão da feminilidade. Em primeiro lugar, distingue a castração em sua dimensão simbólica, como submissão às leis da linguagem, de sua dimensão imaginária, como temor da emasculação, sentimento de perda ou inferioridade. Define o falo como um significante, ressaltando o papel da linguagem na constituição do sexual no humano, que assim se diferencia da atividade reprodutiva dos animais. O que o significante fálico instaura é a dessimetria radical entre as posições masculina e feminina: dado que não há dois elementos simbólicos, um para cada sexo, homens e mulheres devem se reportar a um mesmo significante, o falo. A repartição simbólica dos seres sexuados não duplica simplesmente a divisão anatômica, mas organiza duas classes de seres que se referem, de maneiras diferentes, a um mesmo significante. Mesmo entre os casais homossexuais cada um dos parceiros assume comumente um papel que é facilmente reconhecido como masculino ou feminino. Ou seja, ainda que não haja distinção anatômica entre os parceiros, a diferença da posição sexual é instaurada pelo falo.
Segundo Lacan, as duas formas de se reportar ao falo podem ser compreendidas com o recurso dos verbos ser e ter. Inicialmente, o bebê, menino ou menina, seria tomado pela mãe como sendo o falo, investimento desejante necessário para seu advento como sujeito. Esse momento inicial deve ser transitório, uma vez que a permanência da criança assujeitada ao desejo da mãe traria conseqüências graves. É necessária, portanto, a intervenção do pai (ou de alguém que exerça a função paterna) como um agente a privar a mãe de seu falo e a criança de seu objeto incestuoso. Mas é somente em um tempo logicamente posterior que o pai ressurge como portador do falo que a mãe deseja e a situação edípica pode encontrar sua saída. O menino herdaria aquilo que Lacan chama de insígnias do pai, adquirindo uma “virilidade por procuração”. Desse modo, ele pode jogar com ter o falo como atributo viril, ainda que simbolicamente tenha passado pela castração. Quanto à menina, a passagem à posição feminina se daria pela via do não tê-lo, ao mesmo tempo que pode vir a sê-lo, o que lhe confere um enorme poder sobre aqueles que o têm.
A teorização lacaniana traz de imediato algumas implicações: a primeira é que macho e fêmea, na espécie humana, não são o complemento natural um do outro, como preconizam ainda hoje algumas teorias, ecoando um ideal tão antigo quanto o yin/yang. Porém, mesmo não sendo complementares, “masculino” e “feminino” não são categorias estanques, que possam ser pensadas isoladamente. Assim, a mulher tem seu desejo suscitado pelo falo que o parceiro possui, enquanto para o homem é ela que encarna o falo que ele deseja.
.............................................Fotografia de Helmut Newton
É importante lembrar que a inexistência de um significante específico que venha a garantir a feminilidade torna a mulher particularmente sensível ao imaginário, ao mundo das imagens. Isso se manifesta não somente quanto à imagem do outro, do semelhante, como na relação de amizade com outra mulher, mas também no que diz respeito às imagens provenientes da mídia, que impõem padrões de beleza de forma superegóica. A medicina reconhece há tempos a alta incidência entre mulheres de quadros clínicos relacionados à excessiva preocupação com a imagem corporal, como a anorexia.
Lacan frisa ainda o aspecto de construção do feminino ao inspirar-se em um artigo da psicanalista Joan Rivière para definir a feminilidade como mascarada, ou seja, um conjunto de artifícios que a mulher utiliza para parecer feminina aos olhos do homem. O papel do olhar aqui não deve ser negligenciado; é esse olhar que a mulher busca em seu parceiro como garantia de sua importância no desejo dele. Se pensarmos que o próprio eu é construído a partir do olhar do outro, que lhe confere consistência, podemos dimensionar o que representa para a mulher ser reconhecida como desejável por um homem.
Veja aqui a primeira parte do artigo.
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Segundo Lacan, as duas formas de se reportar ao falo podem ser compreendidas com o recurso dos verbos ser e ter. Inicialmente, o bebê, menino ou menina, seria tomado pela mãe como sendo o falo, investimento desejante necessário para seu advento como sujeito. Esse momento inicial deve ser transitório, uma vez que a permanência da criança assujeitada ao desejo da mãe traria conseqüências graves. É necessária, portanto, a intervenção do pai (ou de alguém que exerça a função paterna) como um agente a privar a mãe de seu falo e a criança de seu objeto incestuoso. Mas é somente em um tempo logicamente posterior que o pai ressurge como portador do falo que a mãe deseja e a situação edípica pode encontrar sua saída. O menino herdaria aquilo que Lacan chama de insígnias do pai, adquirindo uma “virilidade por procuração”. Desse modo, ele pode jogar com ter o falo como atributo viril, ainda que simbolicamente tenha passado pela castração. Quanto à menina, a passagem à posição feminina se daria pela via do não tê-lo, ao mesmo tempo que pode vir a sê-lo, o que lhe confere um enorme poder sobre aqueles que o têm.
A teorização lacaniana traz de imediato algumas implicações: a primeira é que macho e fêmea, na espécie humana, não são o complemento natural um do outro, como preconizam ainda hoje algumas teorias, ecoando um ideal tão antigo quanto o yin/yang. Porém, mesmo não sendo complementares, “masculino” e “feminino” não são categorias estanques, que possam ser pensadas isoladamente. Assim, a mulher tem seu desejo suscitado pelo falo que o parceiro possui, enquanto para o homem é ela que encarna o falo que ele deseja.
.............................................Fotografia de Helmut Newton
É importante lembrar que a inexistência de um significante específico que venha a garantir a feminilidade torna a mulher particularmente sensível ao imaginário, ao mundo das imagens. Isso se manifesta não somente quanto à imagem do outro, do semelhante, como na relação de amizade com outra mulher, mas também no que diz respeito às imagens provenientes da mídia, que impõem padrões de beleza de forma superegóica. A medicina reconhece há tempos a alta incidência entre mulheres de quadros clínicos relacionados à excessiva preocupação com a imagem corporal, como a anorexia.
Lacan frisa ainda o aspecto de construção do feminino ao inspirar-se em um artigo da psicanalista Joan Rivière para definir a feminilidade como mascarada, ou seja, um conjunto de artifícios que a mulher utiliza para parecer feminina aos olhos do homem. O papel do olhar aqui não deve ser negligenciado; é esse olhar que a mulher busca em seu parceiro como garantia de sua importância no desejo dele. Se pensarmos que o próprio eu é construído a partir do olhar do outro, que lhe confere consistência, podemos dimensionar o que representa para a mulher ser reconhecida como desejável por um homem.
Veja aqui a primeira parte do artigo.
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