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19 de março de 2009

A invenção da mulher - O que Freud e Lacan dizem sobre a feminilidade (Parte 3 de 5)

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A mulher no desejo masculino

Ao introduzir o conceito de objeto a, ao qual chamou de sua invenção, Lacan acentua a dissimetria entre as posições masculina e feminina. Na teoria lacaniana, trata-se do objeto fundamentalmente perdido, do qual o sujeito é separado em sua constituição e que representa a matriz de todos os objetos que ele vai desejar posteriormente na realidade, sendo denominado por isso de causa do desejo. Ainda que seja essencialmente imaterial, o objeto a pode ser materializado imaginariamente por alguns objetos; estes possuiriam a característica comum de serem parciais, em geral partes do corpo. O desejo masculino recorta imaginariamente no corpo da mulher esse objeto, o que faz com que ele não a deseje em sua totalidade, mas como objeto parcial. “Ao ter acesso ao lugar do desejo, o outro de modo algum se torna o objeto total, mas o problema, ao contrário, é que ele se torna totalmente objeto, como instrumento do desejo”, diz Lacan.

A percepção de que algo no corpo da mulher é tomado como objeto do desejo masculino pode provocar certa inquietação nela. Sobretudo na puberdade, com as modificações físicas, o surgimento dos caracteres sexuais secundários, a menina pode apresentar sinais de inibição, como a recusa em vestir roupas de banho para não exibir o corpo ou a adoção de uma postura curvada para esconder o aparecimento dos seios. Essa inibição sinaliza uma mudança, marcada pela consciência do olhar masculino que vê seu corpo como desejável. O que está em jogo aí é a passagem da condição de criança à de mulher que porta em seu corpo o objeto que causa o desejo para o homem.

Mais tarde, ainda que possa aprender a jogar com esse objeto para provocar o desejo masculino, a mulher não deixará de manter certa estranheza em relação ao fato de portá-lo em seu corpo. É comum se perguntar o que exatamente suscita o desejo de seu parceiro. Se ela chega a formular a pergunta ao homem e este lhe responde com sinceridade, a resposta inevitavelmente a decepcionará. Afinal, o que seus lábios, seios ou nádegas têm de especial ou mais importante que seu próprio ser?


..............................................Fotografia de Helmut Newton

A mulher estranha o caráter fetichista do desejo masculino, assim como a clivagem que para o homem separa facilmente o desejo do amor, uma vez que para ela ambos convergem em um mesmo objeto. “Mas ela encontra o significante de seu próprio desejo no corpo daquele a quem sua demanda de amor é endereçada”, afirma Lacan. Sua estranheza maior, porém, diz respeito ao lugar de objeto que ocupa na fantasia do homem.

Formas de existir
É nos anos 70 que Lacan cria um de seus aforismos mais polêmicos: “A mulher não existe”. Há sem dúvida certo gosto pela provocação nessa afirmação, porém ela não deixa de manter uma coerência teórica com a afirmação freudiana de que o inconsciente não reconhece a diferença dos sexos, mas apenas a dicotomia fálico/castrado. Portanto, o que Lacan afirma não existir não é a mulher em sua materialidade física, e sim o significante que definiria “A” mulher. Dessa forma, as mulheres são obrigadas, uma a uma, a construir sua versão da feminilidade sem um suporte simbólico.

A mulher, porém, ganha existência como ideal presente na criação artística – por exemplo, na literatura. Quando o poeta cria uma representação do feminino, ele confere realidade a esse ideal. Da mesma forma, o homem apaixonado quando toma sua amada como aquela que é capaz de preencher sua falta. Segundo Melman, “o amor é ele mesmo uma tentativa de fazer existir A mulher, a única, aquela sem a qual minha vida está perdida”. A distância entre esse ideal e a mulher da realidade pode ser verificada sobretudo na vida das musas ou sex symbols, que sofrem por encarnar, muitas vezes com conseqüências trágicas, esse ideal que ultrapassa suas limitações cotidianas.


..............................................Fotografia de Helmut Newton

A maternidade seria outra forma de fazer existir a mulher, dessa vez contando com o aval da religião cristã, que cultua a figura materna. O problema é que essa seria mais uma maneira de encarnar o falo, restando para ela a sensação de que a feminilidade continuaria no horizonte. Além disso, nossa cultura, na atualidade, aponta tal vertente como limitadora e acena com outros modos de realização feminina.

É em torno dessa época que Lacan define masculino e feminino como dois campos nos quais os sujeitos podem se colocar independentemente de sua anatomia. Tais campos são constituídos por sua relação com o falo, aqui redefinido como função fálica. Os homens são totalmente concernidos pela função fálica, ou seja, eles são todos fálicos. Sua relação com o mundo é mediada pelo gozo fálico, que inclui o gozo sexual, porém não se resume a ele. As mulheres, por sua vez, não se restringem ao gozo fálico, embora participem dele tanto quanto os homens.

Nesse sentido, elas seriam não-todas fálicas, ou seja, elas teriam acesso pleno ao gozo fálico, mas também a um gozo não-fálico, que Lacan qualifica como suplementar. Dessa maneira, ele relê o impasse de Freud, que não conseguia explicar totalmente a sexualidade feminina a partir do falo, admitindo que a feminilidade não diz respeito inteiramente ao falo e que ela só pode ser pensada considerando sua pertença a um campo não-fálico. A noção de um gozo suplementar é interessante porque, enquanto a teorização freudiana deu margem a críticas que acusavam a psicanálise de situar a mulher do lado do menos, a versão lacaniana nesse sentido a situa do lado do mais, mais de um gozo. Esse gozo, que Lacan chama de gozo Outro, não diz respeito ao sexo. Ele o aproxima, antes, do gozo místico dos santos, daquilo que está excluído da palavra, do inefável.

.............................................................Continua...

Leia a primeira e a segunda parte do artigo

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