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25 de maio de 2009

O amor nosso de cada dia (Parte 3 de 3)

Assim, desde sua manifestação a partir de lalíngua, o sintoma, seja como semblante a sustentar no laço social, seja como letra que formula a modalidade de gozo, não deriva de nada anterior. Por estrutura, ele se define como a deriva em si que constitui a borda do real. O que por rigor implica que o sintoma seja, na concepção lacaniana, o mal-estar na cultura, e não a saída para ele como queria Freud.
Então, como situar a diferença entre a posição de Freud, que destaca a força constante da infelicidade na cultura, que deixa para a felicidade amorosa chances escassas e contingentes de encontro, e a posição de Lacan que situa por toda parte a oportunidade do sujeito encontrar a felicidade?
Se pensarmos, com Lacan, que todo encontro é lido segundo a lógica instaurada pelo encontro primordial com lalíngua, encontrar a felicidade dependerá da posição subjetiva diante da maldição do sexo. Temos nisso uma chave para pensar o que um sujeito pode ou não fazer com a repetição e o retorno do real: ele pode encontrar o mesmo para fazer igual ou diferente; viver o mesmo de novo ou viver o novo uma vez mais;subjetivar o imprevisto com as mesmas leis ou inventar variações novas para elas.
Assim, no instante de ver do encontro, o sujeito é, em tese, sempre feliz. Trata-se de um ponto zero que se abre a alternativas. É um instante de promessa. No tempo de compreender, que atenua a vibração da felicidade, o sujeito desdobra sua resposta sintomática desse encontro por meio do trabalho incansável do inconsciente. Como Freud comenta, trata-se do sintoma como trabalho de laço social e, afinal, é disso que se trata no cultivo dos jardins e dos semblantes.
Mas, quanto ao momento de concluir, nem sempre o sujeito é feliz. Vai depender das conseqüências que extrai do encontro com a inexistência da relação sexual e de como lida com a promessa que não se cumpre. Ou seja, de como faz amor e felicidade a partir de um discurso que não seja semblante alheio ao real.
Proponho tomar um exemplo bem simples. Digo simples porquereduz a amplitude das questões do sexo e do amor à satisfação do ato propriamente dito, aproximando, no que parece ser possível, a felicidade do instante e da cifra. Uma paródia que pretende ilustrar o que Lacan comenta em “Televisão”. Partimos da pergunta comum dos amantes após o sexo.
“Foi bom?”
1) “Não foi nada de bom! Que se dane!”
2) “Era para ser sublime, mas querem que eu me dane"!
3) “Foi danado de bom!”

Vemos que o sujeito poderia responder de três formas a partir do que se pode ouvir na palavra dano. Elas seriam versões das alternativas subjetivas que Lacan distingue na repetição do feliz acaso – bon heur – de lalíngua. Na primeira temos a tristeza covarde de se deixar abater pelo furo do encontro. Na segunda a excitação maníaca, com sua contra face melancólica, quando essa experiência se dá na precariedade do semblante na psicose. E na terceira o gaio saber quando, diante do encontro, não se espera mais do que um contorno para o sentido da vida, vivido, se possível, com a alegria da surpresa.
Quanto a isso, Lacan e Freud se encontram: trata-se da arte de viver. Ao que podemos acrescentar: com o amor nosso de cada dia.

Artigo de Heloisa Caldas, publicado na Opção Lacaniana

Confira a primeira e segunda parte do texto.
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