.
.

21 de maio de 2009

O amor nosso de cada dia (Parte 2 de 3)

Freud e Lacan fizeram declarações diversas quanto à felicidade. Freud sustenta no texto “O mal-estar na cultura” que a princípio intitularia “A infelicidade na cultura”, que a felicidade não existe ou, se existe, é uma satisfação repentina. Lacan, ao contrário, nos declara, em “Televisão”7, que a felicidade está por toda parte e o sujeito é feliz.
Quando encontramos em Lacan uma afirmação contrária a de Freud, sabemos que se trata menos de contradizer Freud do que tirar conseqüências com sua leitura. Qual será então o avanço que Lacan propõe às conjecturas de Freud em relação à felicidade? Penso que poderíamos situá-lo na concepção do sintoma em sua relação com o real. Pois ambos consideram o sintoma como uma saída para o mal-estar produzido pelo objeto. Contudo, a maneira como essa saída se estrutura difere para um e outro.
Para Freud a saída pelo sintoma deixa margem a pensar que o mal-estar precede o sujeito. Ele chega a comentar que a intenção de que o homem seja feliz não se acha incluída no plano da Criação. Conseqüentemente é impossível que a felicidade perdure. Ela se limita ao tempo rápido em que um contraste se estabelece produzindo prazer intenso. Vemos que Freud, a sua maneira, conecta a felicidade ao corte significante, o que, infelizmente, dura pouco. Ele não atribui, porém, a origem da infelicidade também ao significante.
Para Freud, as origens do mal-estar são atribuídas ao corpo que envelhece e decaí, às desgraças do mundo que nos assolam e aos relacionamentos com os outros. Sublinha que este último é o mais penoso e inevitável ainda que pareça gratuito. O que indica ser mais difícil reagir à infelicidade do dia-adia do que àquela que nos trazem os vendavais.
Conseqüentemente, nos ensina Freud, diante da presença tão forte e cotidiana da infelicidade, não é para surpreender que as pessoas se dediquem mais a evitar o sofrimento do que a esperar a boa hora. Ou seja, em relação ao sofrimento nos especializamos; quanto à felicidade somos sempre amadores.
Entre as maneiras pelas quais nos ‘especializamos’ para evitar o mal-estar, Freud cita derivativos poderosos e satisfações substitutivas. Os primeiros apontam ao sintoma, ilustrado pela recomendação de Voltaire para que cada um cuide do seu jardim; o segundo a sublimação pela satisfação substitutiva que a arte pode suprir.
Sabemos que nas concepções freudianas, tanto o recalque como a sublimação são secundários a algo anterior. Isso decorre, em parte, da forma como Freud trata a linguagem enfatizando sua impotência ao nomear o encontro original com a Coisa. Esse tratamento dá margem a pensar que o coração do traumático é extralingüístico. Nisso o sujeito freudiano não poderia deixar de ser infeliz. Para ele predomina o real anterior ao simbólico.
A perspectiva lacaniana difere, quanto a isso, porque considera como causa do recalque a própria linguagem, instaurando como mítico qualquer dado suposto na origem. Não há sujeito pré-lingüístico, assim como não há trauma extralingüístico. O sujeito lacaniano está no corte significante que configura uma borda simbólica e imaginária de fronteira com o real. O que não quer dizer que o trauma não proceda, justamente, do ponto em que a linguagem é uma furada,gíria cujo sentido se aproxima, em parte, do neologismolacaniano troumatismo.
Com Lacan, então, podemos ler as origens da infelicidade que Freud listou, como resultantes do furo: o real traçado por um significante fundador, que funda e se repete em série; e o real traçado pelo imprevisto – a chance de quebrar a série. O primeiro diz respeito ao sintoma que enlaça real, simbólico e imaginário no encontro original com o sexo. Embora consagrado pela rotina, nem por isso dá conta do mal-estar. No segundo, um acontecimento novo desarranja o enlace sintomático e força uma mudança na tradição do sintoma e seu respectivo mal-estar.

.......................................................Continua...

Leia a primeira parte do artigo.

Nenhum comentário: