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21 de outubro de 2009

Psicose Ordinária

A psicose ordinária à luz da teoria lacaniana do discurso

Introdução
O termo psicose ordinária foi inventado e introduzido em nosso campo por Jacques-Alain Miller, em 1998, por ocasião de um dos encontros anuais das Seções Clínicas francófonas que fazem parte do Instituto do Campo freudiano. Esse termo se inscreve em um programa de pesquisa iniciado dois anos antes.
O título do primeiro encontro era Efeitos de surpresa nas psicoses. O segundo, um ano mais tarde, os Casos raros, questionava as normas clássicas da clínica lacaniana da psicose tal como elas foram definidas no Seminário 33 e no texto dos Escritos, “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. Foi no curso do terceiro tempo desse programa de pesquisa que Jacques-Alain Miller propôs o termo psicose ordinária e uma nova elaboração clínica e teórica a partir da constatação de que esses casos “raros” não eram assim tão raros, ao contrário, muito frequentes.
Nessa época tornou-se claro que convinha admitir que certo número de fatos clínicos escapava às categorias utilizadas. Primeiramente, em toda prática analítica em consultório particular ou em instituição era evidente o aumento do número de casos de psicose. Mesmo se aceitamos que fazer um diagnóstico implica sempre um efeito arbitrário, ligado à própria lógica de qualquer classificação, mesmo se o real dos fenômenos clínicos apareça pelo viés da instauração de critérios seletivos que, por acréscimo, o organiza, a psicose tende hoje, ao mesmo tempo, a se desenvolver por um lado e a se modificar por outro. O segundo ponto é que a proliferação desses casos impossíveis de classificar indica um para-além da perspectiva estritamente estruturalista.
Vou lembrar brevemente os três fundamentos sobre os quais repousa a teoria clássica freudiana e lacaniana da psicose. Primeiramente a supremacia, o privilégio, no primeiro Lacan, do registro simbólico sobre os registros imaginário e real.
Em segundo lugar, a organização de uma aproximação clínica em torno de um eixo central conhecido sob o termo Nome-do-Pai. Mesmo se Lacan considere o fenômeno psicótico como não deficitário, o conceito de foraclusão do Nomedo- Pai implica uma falta, a falta do significante paterno na ordem simbólica.
O terceiro ponto sobre o qual repousa a abordagem clássica lacaniana da psicose é a recusa de categorias intermediárias por razões epistemológicas e éticas ao mesmo tempo. Fazer um diagnóstico é sempre considerado por Lacan como um ato que implica uma decisão que exige ser argumentada logicamente e confirmada do ponto de vista clínico. Justamente, porque determinadas categorias, tais como borderline ou “personalidade narcísica”, se revelam por si mesmas inoperantes para nós em termos de tratamento; razão pela qual Lacan não desejava utiliza-las. Essa disciplina alcança seus frutos.
Dois movimentos impeliram à modificação dessa primeira orientação. O primeiro foi a vontade de não transformar o que era uma prática flexível em uma doxa rígida, transformando diagnóstico, fenômeno e estrutura na crença em um real que podia in fine tornar cego um material clínico bem diferente dos fenômenos esperados pelo ensino do último Lacan, que já havia antecipado uma mudança de época na clínica dos sintomas. A teoria do discurso nos permite compreender as
modificações do discurso do mestre, tal como Lacan o escreveu. No que concerne ao discurso do mestre, o nome no sentido determinante que ele tem na expressão Nome-do-Pai tem a ver com o S1, o significantemestre, e comanda a organização do próprio discurso, isto é, determina um modo de gozo dominante. Como o discurso do mestre se modifica no curso da história o que é uma forma de dizer que o laço social se modifica o mundo que nos fala e que nós falamos também se modifica. As grandes vias do simbólico mudam. Em consequência os sintomas que, de certa forma, completam o discurso, também se modificam; sintomas que revelam a potência do que chamamos gozo em relação a cada discurso. Essa teoria do discurso nos permite apreender o que surge na saúde mental e na psicopatologia quotidiana, o que é um fato novo. Por exemplo, é claro que aquilo que o mestre nomeia como clínica das adições se desenvolveu durante os quarenta últimos anos. Então, quando o discurso do mestre muda, acontece o mesmo com o simbólico que o completa. Jacques-Alain Miller trata dessas modificações desde o fim dos anos 80, abrindo um leque maior sobre a política lacaniana, sobre as causas e consequências deste enunciado: “O Outro não existe”. Ele manteve com Éric Laurent um seminário de um ano de duração sobre essa questão. O termo psicose ordinária é para ser tomado nesse contexto político, no sentido da
evolução das modalidades dominantes do laço social. Ele ressalta a clínica na medida em que está ligado ao discurso como modo de gozo e, ao mesmo tempo, à lógica da sexuação fundada sobre o “não há relação sexual”.
Vou justamente indicar aqui que no enunciado “não há relação sexual”, relação (rapport) não é sinônimo de relação (relation). Nessa formulação Lacan utiliza o termo rapport como a ciência o faz. Trata-se da relação (rapport) entre duas séries covariantes de fenômenos. Podemos dizer, por exemplo, que há uma relação (rapport) sexual entre o espermatozóide e o óvulo porque ela pode se escrever em termos químicos e biológicos. Podemos dizer que há relação (rapport) sexual entre o macho e a fêmea no campo da sexualidade animal. Porém, quando nos referimos aos seres falantes, parlêtres, a linguagem intervém como organizador do laço social abrindo ou
não a possibilidade do encontro sexual. Portanto, não há escritura científica da relação (rapport) sexual quando se trata dos seres falantes. Sua relação (rapport) é um encontro de fala. Lembremos a afirmação de Freud segundo a qual a criança é um perverso polimorfo, porque ela vai exatamente na mesmadireção. (...)

O artigo é de Marie-Hélène Brousse e pode ser encontrado na íntegra na Latusa digital – ano 6 – N° 38 – setembro de 2009

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