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11 de dezembro de 2017

Christian Dunker: de Lacan a Lacração

Christian Dunker analisa efeitos das redes sociais no comportamento contemporâneo

Entrevista concedida ao jornal Estadão, em 2 de dezembro. 

Por Ronaldo Bressane
veja a entrevista na íntegra aqui
“E aí, bichô! Você se deu bem, eu não vou mais viajar então temos tempo, chegaí! Quer um café?” Assim o alemão grandalhão me recebe em seu consultório, em um simpático sobrado antigo no bairro do Paraíso, em São Paulo. Véspera de feriado, de repente sua viagem engasgou, abrindo espaço na caudalosa agenda do psicanalista paulistano de 51 anos. Com quase três décadas de clínica, Dunker reinventou-se como professor universitário na USP, youtuber contumaz e ensaísta prolífico: acaba de publicar Reinvenção da Intimidade – Políticas do Sofrimento Cotidiano, que em três meses de lançamento caminha para sua segunda edição. A coletânea de ensaios aprofunda e diversifica as temáticas de seu livro anterior, Mal-estar, Sofrimento e Sintoma(Boitempo), em que define o conceito de “sofrimento” como uma psicopatologia do dia a dia, alinhando os sintomas mentais a problemas sociais.
Um grande mérito na escrita de Dunker é a velocidade voraz na associação de ideias, o bom humor na formulação de conceitos e a fluidez na aproximação de escolas teóricas distantes. Assim, de um lado jogam Freud, Lacan, Klein, Badiou, Bauman, Adorno, Lipovetsky, Foucault, Marx, Benjamin, Arendt. De outro, batem bola Woody Allen, Beckett, Sophia Coppola, Clint Eastwood, Marguerite Duras, Lucrecia Martel, Ian McEwan, Nelson Rodrigues, irmãs Wachowski, Zizek, Jessé de Souza… Navegando entre conceitos psicanalíticos e novas nomenclaturas para males contemporâneos – como o narcisismo digital ou a normalopatia –, Dunker pula da discussão de relacionamento à lacração mais rápido do que você soletrar Complexo de Édipo. Chama todo mundo para a conversa e, ao contrário de muitos colegas, tem horror à solenidade sisuda. Aqui, o psicanalista formula teorias sobre os sofrimentos advindos do excesso das redes sociais, a apatia política, a cultura do ódio digital e até tenta psicanalisar os candidatos à presidência da República. Após três horas de papo, passarinhos cantavam e a luz caía sobre o consultório, enquanto Dunker desafiava, rindo: “Agora quero ver você colocar em ordem toda essa loucura que falamos, bicho.”
As redes sociais podem nos levar à depressão?
As redes nos impactam de duas maneiras. A primeira é afetar nosso sistema de identificação: imagens, linguagem escrita, velocidade da relação. Gira em torno de quem sou eu, quem é você, quem somos nós. Segundo: nosso sistema de demanda. Aí uma novidade: tem sempre alguém nos esperando, nos oferecendo algo. Entramos numa espécie de deriva: “Cause o meu desejo, ofereça um objeto, um serviço, uma facilidade”, como se a gente fetichizasse nossa atenção. As redes criam a experiência de supor que nosso clique é importante. Isso causa uma deformação no tamanho do eu. Você pode afirmar: eu amo mais isso e menos aquilo. Produzimos ofertas e certa arrogância. E fetichizamos: “Dei um unfollow no cara!”. Gera uma macrocefalia egóica, porque o ego cresce sem verdadeira referência no outro. E o outro é importante para regular nossas fantasias. Então vem um terceiro processo, depois da identificação e da demanda: a criação do ódio. Seria natural passar do like, da simpatia, da afinidade, para um percurso de viagem comum. Amigos estão na mesma viagem, estão engajados. Quando você tem uma fidelidade, um compromisso, vem a questão: o que descobrimos junto? Este terceiro polo está ligado à intimidade, às noções de público e de privado. Você não consegue passar dos grupos de WhatsApp para experiências de solitude, de incerteza, de compartilhamento de coisas que você não sabe – ali você só compartilha certezas sem nuances. O que acontece com essa inflação do eu? Como os outros não respondem ao seu sistema de identificação, seu mundo diminui. Conforme o seu ego cresce, a empatia pelos outros some. Assim, você só consegue falar com os outros que falam igual a você. Daí você tem a política de identidade, e não de interesses, utopias, ideologias, futuros possíveis. Você vive numa bolha e acha que só ela existe.
E é assim que ocorrem os linchamentos virtuais?
Primeiro você infla ideais, e esse excesso é opressor. O discurso sobre a sexualidade no mundo virtual ou é de pornografia indecorosa ou é de um puritanismo malsão. Quando algo nos oprime, tem de ser destruído. É necessário um processo de idealização e também um processo de devoração dos heróis. Quando uma personalidade é desmascarada em razão de um pecado que vem à tona, se transfere para ela o oposto do amor que havia antes. “Quero puni-lo muito mais do que ele merece.” São funções ligadas ao narcisismo, que é uma função de defesa baseada no julgamento. Julgo o Outro e me coloco fora da roda, me coloco como juiz. Esta é uma autoavaliação constante quando se vai pra rede. E é uma espécie de droga. Preciso ficar julgando: curto, não curto, curto, não curto. E fico voltando à rede sempre, para reconstruir a minha identidade de juiz. Só que isso é uma pirâmide. Então acabo resolvendo as questões com juízos cruéis, intolerantes, moralistas. Em seguida vem a depressão, o sentimento de vazio, de mal-estar. Afinal, num mundo onde só há contrato, julgamento, vítimas e carrascos, cedo ou tarde eu também vou virar réu – pois esta é a regra do jogo. 
Isso explica a polarização política nas redes, que tende a se acirrar em 2018, ano de eleições? 
Esse ponto Melanie Klein explica na figura do esquizoparanoide. Funciona assim: entre eu e você existe uma relação em que eu não te satisfaço e você não me satisfaz. Então vou brigar com você. Mas, na verdade, o problema não é você… é um cara lá fora. Aí, em vez de a gente pensar no que a gente tem em comum, que tal pensarmos em qual é o nosso inimigo? Precisamos nos purificar, porque no outro lado é que estão os ruins – aqui, eu e você ficamos numa boa. Precisamos então não decidir o que queremos, e sim reagir ao que os outros querem. Daí pensamos em como reagir com o petralha, o coxinha, o imigrante, o isentão… voltamos ao bode expiatório da tragédia grega. Vou bloquear a pessoa no Face, silenciar no Twitter, transformar o adversário em inimigo. O adversário não merece ter uma opinião contrária. Portanto pode ser destruído. 
Mas, mais estridente que essa cultura do ódio, existe uma massa apática. Apesar da crise política, as ruas não estão mais mobilizadas: onde estão as panelas? 
Na superfície existe o ódio, mas abaixo existe a vergonha. “Ah, então você apoiou o PT mesmo sabendo de coisas estranhas… Como?” Quando evoluiu-se para escândalos de corrupção, dá vergonha: “Puxa, lá atrás eu deveria ter sido mais crítico.” E do outro lado: “Então eu vou ser hostil à Dilma e apoiar o Temer? Aquele ato de destituição contra a Dilma virou apoio a corruptos?” Vergonha! “Ah, mas você bateu panela contra a Dilma e a favor do Temer?” “Eu não!” Aí você tem uma dissonância cognitiva. A pessoa se engana e sente vergonha. Foi enganada por um monte de lorota. Poxa, no fundo as pessoas têm algum sentimento crítico. De um lado tem uns caras enganados por uma esquerda que não fez o que queriam; de outro, caras enganados por um discurso contra a corrupção. A apatia e a imobilidade são causadas pela vergonha, que é um afeto introspectante: você esconde a cara, se fecha, não quer olhar. A vergonha desmascara a sua fantasia. Mostra como você é tolo, ridículo, infantil. Fica como criancinha enganada: “Enganei o bobo, na casca do ovo…” Assim surge o ódio. 
Recentemente o líder do MTST, Guilherme Boulos, que também é psicanalista lacaniano, contou que as pessoas que passaram a integrar o movimento têm menos transtornos mentais do que quando vagavam pelas ruas: como isso é possível? 
Os sem-teto organizados têm menos neuroses por causa do objetivo comum: a luta. Encontramos o mesmo fenômeno em Belo Monte, só que ao contrário. Junto com a jornalista Eliane Brum, levamos uma equipe de analistas para escutar pessoas que tinham sido desalojadas de uma ilha e postas criminosamente em assentamentos urbanos. Em três meses você observava suicídios, drogas, sintomas psicológicos inexplicáveis – com pessoas que então moravam em casas. Havia essa lacuna de entendimento: por que essas pessoas sofrem agora? Antes estava péssimo, não tinham teto nem água encanada. Só que antes essas pessoas tinham uma narrativa de sofrimento: todos nós juntos dividimos um peixe, todos nós fazemos juntos um mutirão. Existia um funcionamento em torno de um comum, que foi perdido com a chegada da hidrelétrica. No sofrimento, você cria um registro comum, você pode ter uma valência política, tanto geral quanto individual.


Fernanda Pimentel é psicanalista e atualmente cursa doutorado em Pesquisa e Clínica em Psicanálise na UERJ, pesquisando sobre a psicanálise na atualidade e a clínica contemporânea.

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