A TRANSMISSÃO DA PSICANÁLISE
Ao mesmo tempo em que afirmou a impossibilidade da transmissão da psicanálise, Lacan sempre trabalhou no sentido de possibilitá-la e insistiu no fato de que seu ensino visava produzir "efeitos de formação". Para ele, é impossível transmitir a psicanálise sem uma estreita imbricação entre teoria e prática, isto é, sem que o sujeito seja atravessado pela experiência. Não é essa uma das características de seu famoso estilo de escrita, o de requerer a inclusão do sujeito no processo de elaboração teórica? Assim, se a ética da psicanálise deve ser compreendida em seu caráter inédito de "ética do bem-dizer", em relação ao psicanalista ela deve certamente implicar a necessidade de inclusão dos significantes da teoria em seu bem-dizer, de modo que esses significantes se renovem e adquiram vida, para que os conceitos não sejam tomados como meros signos.
Fica evidente que Lacan não se satisfazia com o fato de que uma prática não precisa ser elucidada para produzir efeitos, como ele mesmo observa em Televisão (Jorge Zahar, 1997). Por um lado, a psicanálise é intransmissível, enquanto escopo de um saber totalizador, na medida em que ela mesma é não-toda (termo lacaniano para designar a falta inerente à estrutura humana) e a questão sobre "o que é o inconsciente?" insiste em se presentificar. Por outro lado, é esse não-todo, verdadeira matriz da estrutura do inconsciente, escrito por Lacan no matema S(A), que importa transmitir e este só pode ser transmitido em uma psicanálise. Nesse sentido, pode-se afirmar que é necessário que a transmissão d’a psicanálise seja perpassada pela experiência de uma psicanálise. Dito de outro modo, a ciência da análise requer a poesia inerente a cada análise de um sujeito.
Se abordarmos essas inovações de Lacan sob o prisma dos quatro discursos não é difícil evidenciar que se trata de conceber a experiência não mais sob o prisma do discurso universitário, para o qual o saber regula toda a produção do sujeito bem pensante, mas sim abordá-la a partir de sua própria especificidade, isto é, a do discurso psicanalítico, que inclui o real, o não-saber no cerne da experiência. Como nos lembra o poeta Manoel de Barros em seu Livro sobre nada (Record, 1998), "perder o nada é um empobrecimento".
O que acredito ser o ponto mais essencial no âmbito da formação psicanalítica, em que Lacan renovou em alto grau a relação mantida pelos analistas com sua própria experiência, é o fato de que é necessário preservar nos critérios institucionais o mesmo gradiente de enigma inerente à experiência da análise. Se a aparência é de que a formação do analista foi facilitada a partir do aforismo lacaniano de que "o psicanalista só se autoriza por si mesmo", ao contrário observa-se que a dificuldade inerente à formação, aquilo que Lacan chamou de "real em jogo na formação do psicanalista", foi por ele preservada sem os engodos das modalidades próprias ao discurso universitário. Lacan foi o primeiro psicanalista a se indagar seriamente sobre o fim da análise de um analista, desvinculando-a de prazos fictícios; a preconizar a importância da supervisão clínica não ser obrigatória, mas sim corresponder às necessidades do analista em formação; a propor aos analistas falarem de suas análises e transmiti-las a seus pares.
Assim como Lacan observou que a única certeza do sujeito advém do seu próprio desejo, seria preciso lembrar que, quanto ao psicanalista, sua única certeza deve advir do desejo do psicanalista, isto é, de um desejo que se traduz pelo desejo de que haja análise, o qual, em suma, remete ao desejo de que haja analista. De qualquer modo, é necessário insistir, como já observou Alain Didier-Weill, no fato de que o legado que Lacan nos deixou, com seu trabalho de retorno a Freud, não está concluído e exige de cada analista a sua parcela de contribuição e uma grande insistência na renovação da experiência. Pois o impossível em jogo no real está sempre a pedir simbolização.
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Este artigo retoma um trabalho apresentado no Colóquio "Lacan, psychanalyste", organizado pelo Mouvement du Coût Freudien e realizado no Amphithêatre Charcot, Hôpital de la Salpétrière, Paris, em 27 e 28 de março de 1999.
Este artigo retoma um trabalho apresentado no Colóquio "Lacan, psychanalyste", organizado pelo Mouvement du Coût Freudien e realizado no Amphithêatre Charcot, Hôpital de la Salpétrière, Paris, em 27 e 28 de março de 1999.
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Marco Antonio Coutinho Jorge é psiquiatra, psicanalista, Membro do Corpo Freudiano do Rio de Janeiro, Membro Correspondente do Mouvement du Coût Freudien (Paris), autor de Sexo e discurso em Freud e Lacan (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988) e Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan – vol.1: as bases conceituais (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000, 2a. edição), professor do Mestrado em Clínica e Pesquisa em Psicanálise do IP/UERJ.
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