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19 de agosto de 2009

QUANDO O AMOR FAZ MAL À SAÚDE: OBESIDADE FEMININA E EROTOMANIA (parte 5 de 5)

5. Um exemplo clínico:

Vânia era obesa mórbida e, em 2003, se submeteu a uma cirurgia de redução do estômago. Quando me procura, em 2006, por ordem da endocrinologista, está com 100 quilos. Este é o motivo da sua consulta: ela, praticamente, readquiriu, nestes três anos, o peso que possuía antes da cirurgia bariátrica.

Vânia tem 54 anos e formação universitária. Entretanto, trabalha numa função burocrática, sem qualquer relação com a sua formação. Aos 37 anos, o marido separou-se dela porque arranjou outra mulher. Foi casada por 15 anos. Antes de se casar, trabalhava na sua profissão. Logo que casou, perdeu o emprego e, a seguir, engravidou. Não voltou a trabalhar fora. Dedicou-se à casa e aos filhos. Foi surpreendida pelo pedido de separação e se sente traída e decepcionada com o ex-marido até hoje. Não compreende como o seu amor, a sua doação integral à casa e à família foi tão mal recebida e não recompensada pelo marido. Investiu tudo no casamento, como mãe e dona de casa. Começou a engordar depois que teve os filhos e nunca mais voltou ao peso normal. Depois da separação, não teve nenhum parceiro amoroso.

Neste relato, o primeiro ponto que desejo destacar é o desaparecimento da sexualidade de Vânia no casamento. Logo que se casa e tem filhos, torna-se toda mãe e parece reduzir o casamento à parceria pai e mãe. Vânia não relata qualquer mal estar sexual durante seu casamento, nem percebeu qualquer sinal e insatisfação ou afastamento sexual do seu marido em relação a ela. Eles trabalhavam, cooperavam, cada qual à sua maneira, para manter e cuidar da família. A família ocupava toda a preocupação de Vânia e a parceria sexual parece ter desaparecido. A recusa em saber algo sobre o mal estar sexual aparece, de forma traumática, com o pedido de separação do marido. Até hoje, Vânia chora, penosamente, ao falar do ex-marido, do divórcio. Ela parece não compreender porque o amor não foi suficiente, não bastou para assegurar a relação com o marido.

Sobre seus pais, ela os descreve, unicamente, como pai e mãe. Constituíram uma família, lutaram muito para sobreviver. Dedicaram-se aos filhos. Interrogada sobre o casamento dos pais, sobre a vida amorosa, sexual deles, ela fica surpresa e não consegue lembrar qualquer sinal ou dizer qualquer coisa sobre o que foi a vida dos pais como casal. Para ela os seus pais eram somente pais: só amor, sem sexo. Declina-se, aqui, novamente, a recusa de Vânia em saber sobre o sexual.

Neste ponto, impõe-se a necessidade de um diagnóstico diferencial: trata-se de uma recusa neurótica ou psicótica? Este diagnóstico não é simples de se fazer, já que Vânia se apresenta numa posição que poderíamos chamar de “posição psicótica” (Coelho dos Santos, 2005, p. 83). Trata-se de sujeitos que se apresentam, ao analista, numa posição de objeto, indicados por outros, portanto, sem uma questão subjetiva, e exibindo sintomas que não são uma formação do inconsciente ou um delírio. Nesta posição ,são sujeitos que nada querem saber, que rejeitam o inconsciente, não associam livremente, nem tampouco apresentam um sintoma para ser decifrado. No caso de Vânia, o seu mal estar deriva do fato de que ela é gorda. Não vou me deter nos detalhes da investigação diagnóstica, pois não é esse o meu objetivo. Não encontrei fenômenos elementares e o modo como Vânia se serve do pai me inclinam a pensar que trata-se de uma neurose.

O ponto que me interessa ressaltar é o modo como se estabeleceu a relação transferencial e o lugar que eu ocupo como analista. Nos nossos encontros, os temas que ela apresenta giram em torno da preocupação e do prejuízo. Ela está sempre preocupada e se sente prejudicada sempre que o Outro não lhe diz as palavras que ela deseja ouvir e que a situam num lugar especial, de valor.Essa demanda tem relação com uma reivindicação ao pai, de quem ela diz que “faltaram palavras”.

A relação comigo, desde o início, é colorida por esta reivindicação: ser tratada como uma exceção, ter um lugar especial. Qualquer tentativa minha de operar uma retificação subjetiva implicando-a enquanto desejante nos eventos que ela relata, tem como resposta lágrimas, hostilidade, recriminações de que não compreende o que eu disse, ou ainda que eu a considero culpada e ela, então, procura se defender dessa injustiça. Definitivamente, neste momento, implicá-la na parte que lhe cabe na tragédia em que vive, não são, para ela, as palavras certas.

Vânia não quer saber sobre o seu inconsciente. Ela procura um lugar especial no Outro. Ela reivindica o amor do Outro. É uma demanda insaciável de amor. Ela quer palavras de amor. Transferencialmente, ela me propõe essa parceria. Isso fica evidente quando, um dia, preciso trocar o seu horário. Ela acata, mas depois me diz que “eu tirei o horário que era bom para ela”. Como resposta, imediatamente, levantei e confirmei, na agenda, o horário que ela queria, dizendo que achava importante ela conservar o horário que era bom para ela. Eu me tornei, na transferência, segundo a indicação de Miller (1995), o seu parceiro-sintoma. Como aponta Coelho dos Santos (2005), nestes casos, aparece a céu aberto, o ponto onde o sujeito se serve do analista como meio de gozo, onde se evidencia a compulsão à repetição e a pulsão de morte.

É claro que essa estratégia transferencial não é uma tentativa ingênua de satisfazer a demanda de amor do sujeito. A meu ver, a resposta do analista a essa demanda é uma resposta que acolhe e interpreta, em ato, possibilitando, simbolizar isso que, até então, não teve paradeiro ou nomeação. O ato interpretativo do analista, na vertente real da transferência, evidencia, recorta, localiza a exigência pulsional.

Vânia quer ser amada. Ela é uma crente do amor. Podemos chamar essa posição de uma posição religiosa, pois o paradigma é a relação com Deus, com as palavras de amor. Trata-se de uma relação amorosa que não é atravessada e, portanto, limitada pelo sexo, pelo desejo. Trata-se da crença em um amor incondicional.

Esta é a vertente erotomaníaca da sexuação feminina. Trata-se de uma exigência pulsional que a relação ao falo não recobre e que se traduz por uma demanda insaciável de amor: fome de palavras de amor.

Penso que esta pode ser uma hipótese frutífera a verificar nos casos de obesidade crônica e obesidade mórbida. A obesidade crônica, em mulheres, do ponto de vista pulsional, pode estar relacionada a uma demanda de amor insaciável, não regulada pelo falo, ou seja, que não está endereçada, localizada, limitada pelo parceiro sexual.

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