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5 de junho de 2008

Entrevista


O psicanalista, escritor e colunista Contardo Calligaris, que está lançando o livro 'O Conto do Amor' (Companhia das Letras), concedeu uma entrevista deliciosa para a Revista MarieCalire. Ele fala sobre sexo, gravidez, drogas, felicidade e mortalidade.
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MC: Seu livro conta a história de um homem que parte em jornada solo rumo à terra e ao passado de seu pai e, nessa viagem, acaba se descobrindo. Um livro que, da forma como li, fala de coragem e amor. É preciso ter coragem para amar?
CC: O maior ato de coragem é a coragem de amar. O amor é o grande agente de transformação, em todos os sentidos. Se a gente se transforma em alguma medida na infância é por amor pelos pais, se a gente se transforma numa terapia é por amor de transferência pelo terapeuta, se a gente se transforma numa amizade é pelo amor pelo amigo. O amor é o grande motor das transformações. O que não significa, e isso precisa ser dito em letras garrafais, que a gente possa entrar numa relação amorosa imaginando que possa transformar o outro, porque isso é uma merda garantida.
MC: Quantos casamentos?
CC: Como diria Clinton, defina casamento [ri].
MC: Mesmo endereço.
CC: [Contando] Um, dois, três... hummmm... sete.
MC: É impossível ser feliz sozinho?
CC: Não é impossível, mas é mais pobre, né? Acredito na monogamia e em mais nada. Mas acredito que, numa mesma vida, a gente possa ter muitas monogamias sucessivas. Não acredito na eternidade das relações, mas não tenho nenhum interesse pela idéias de me relacionar com várias pessoas ao mesmo tempo, nunca tive, nem quando jovem. Acho isso uma tremenda confusão inútil, até porque o mais interessante de uma relação é ir ao fundo, explorar tudo. Que dure seis meses ou 15 anos.
MC: O primeiro casamento foi onde?
CC: Aos 18 anos casei com uma americana que conheci em Roma durante um fim de semana. Ela era modelo, dublê e trapezista.
MC: A fantasia do macho moderno: modelo e trapezista.
CC: Pois é [ri]. Aí fui trabalhar fazendo traduções do inglês para o italiano e tentava me estabelecer como fotógrafo trabalhando à noite para a Anza, a agência de notícias italiana, revelando fotos para os jornais do dia seguinte. Tudo ia bem até meu pai dizer que eu podia ser o que bem entendesse, mas primeiro teria que fazer uma faculdade. Fui para Genebra, na Suíça, fazer Epistemologia (teoria do conhecimento) com o [Jean] Piaget. Quando terminei a faculdade, virei professor-assistente e comecei a viajar muito para Paris, onde também me analisava, porque no meio de tudo isso eu achei que estava precisando fazer análise. Mas nunca pensei em ser psicananalista. Só que aí fui me interessando e fiz meu doutorado em Psicologia Clínica.
MC: O mundo parece um lugar sem fronteiras para você.
CC: É que viajo desde criança. Meu pai tinha uma noção de férias que era viajar para lugares inusitados com a família. Então, fiz viagens absurdas na infância, como ir de carro de Milão para o Irã, de Milão para a Índia. Mas hoje as viagens de avião me cansam, principalmente depois de 11 de setembro. Hoje, viajo muito leve, só com a mala de mão. Não despacho nada, é intolerável perder mala. E eu convenço minha mulher a viajar só com mala de mão dizendo: 'O que você quiser a gente compra lá' [ri].
MC: A mulher é mais interessante do que o homem?
CC: Em muitos aspectos, sim, embora as coisas estejam mudando. Os homens estão ficando interessantes.
MC: Como assim?
CC: Os homens eram, até os anos 60, bastante previsíveis. Até ali, os homens tinham uma idéia relativamente clara a respeito do que era ser homem, uma coisa meio John Wayne. Parecia ser muito evidente o que se esperava de um homem, enquanto para as mulheres decidir o que é ser mulher sempre foi mais aberto.
'Pertencemos a uma sociedade na qual o olhar dos outros é importante para definir quem somos e onde nos situamos'
MC: Mais enigmático também?
CC: Enigma sob o ponto de vista masculino, aí pode ser. Porque aí entra aquela clássica preocupação masculina de: 'Não sei se consegui levar minha parceira ao orgasmo'. E como ele não viu o resultado direto, a ejaculação, ele se pergunta: 'O que será que uma mulher quer de mim?'. Sob esse ponto de vista, a mulher é um enigma.
MC: Ser homem não é tão simples quanto parece?
CC: Não, não é. Continuando com o sexo, uma grande parte de imaginário é: a ejaculação faz com que o gozo masculino pareça uma coisa simples, mas as coisas são infinitamente mais complexas porque um homem pode ejacular sem ter prazer nenhum, ou quase nenhum. O gozo não é demonstração de nada. Um homem pode ser anorgásmico, ou seja, não ejacular, e, mesmo assim, ter um imenso prazer na relação.
MC: Ou seja, existe uma simplificação do prazer masculino?
CC: Sim, a partir do fato de que: 'Ah, tá, tem aqui uma evidência do prazer, então tudo correu bem', como se o orgasmo fosse a única expressão do prazer sexual - e não é.
MC: Já a gravidez, esse privilégio feminino, é das coisas mais cheias de camadas psicológicas da natureza, não?
CC: A primeira coisa que costumo dizer é que o melhor filme sobre gravidez é 'Alien' [EUA, 1979]. Toda mulher grávida deveria ver. O filme trata de um fator que, no oba-oba geral ao redor da maternidade, é constantemente esquecido, que é: a vida estrangeira que se cria e se alimenta dentro da gente. Tem um aspecto reprimido, que tem a ver com a invasão do corpo por um outro ser que, é óbvio, está presente em toda gravidez e que pode facilmente tomar um viés persecutório. Tudo o que as mulheres vivem negativamente na gravidez, como a deformação do corpo, a invasão, e até o parto, que não é só uma experiência legal, claro que não é, pode ser analisado em 'Alien'. Então é um negócio enlouquecedor. A gravidez é, isso sim, uma puta aventura.
MC: A relação mãe e filha é das mais complexas da vida?
CC: Normalmente é. Muito freqüentemente é uma rivalidade que não acaba nunca. Mas a relação mãe e filho é facilmente patológica porque tem isso: você gerou uma coisa que você não é, o que dá uma certa sensação de completude. Ao mesmo tempo, você gerou alguém com quem poderia continuar reproduzindo sem precisar de mais ninguém, coisa que com uma outra mulher não será possível, então você poderia reiniciar a espécie humana com seu filho. Mas você tem toda a razão, a relação mãe e filha é muito complexa. Aliás, Freud dizia que tem três coisas impossíveis. Uma é psicanalisar, claro. A outra é governar, e a terceira é educar os filhos. Acho que ele cobriu tudo.
MC: É mais difícil envelhecer para a mulher do que para o homem?
CC: As mulheres têm essa tendência de achar que os homens de 50 e 60 se dão melhor na vida. Eles encontram mais parceiras, ou parceiras mais jovens, mas é um ponto de vista que me deixa um pouco perplexo. Por um lado, acho que existe um enorme trabalho para ser feito sobre a menopausa. A menopausa é, naturalmente, o fim da possibilidade de reproduzir, mas não tem nenhuma razão para se pensar que deva ser o fim da feminilidade, ou o fim da vida sexual. Mas, aparentemente, para muitas mulheres na menopausa existe uma sensação de que: 'Ah, tá, agora acabou a vida sexual'.
MC: Mas nossa cultura sugere a supervalorização do corpo jovem.
CC: Não sei quanto isso corresponde realmente ao desejo masculino. Um homem pode se interessar por uma mulher de 50 ou 60 sem problema nenhum. Essa idéia de que o homem seria irresistivelmente seduzido pela carne fresca é um pouco primária. Um homem é seduzido por coisas completamente diferentes. Por exemplo, por quem consegue entrar em seu universo de fantasias, o que não tem nada a ver com a idade. Sem contar que um homem pode até construir um fetiche ao redor dos supostos defeitos do corpo de sua parceria. Mas existem aqueles que, claro, têm problemas de afirmação narcisista em relação a outros homens: são esses que precisam da mulher-troféu para exibir aos amigos.
MC: Uma vez li um texto de uma afegã que dizia que se elas vivem sob a ditadura da burca, nós vivemos sob a ditadura do botox e da plástica e da maquiagem. É assim?
CC: Pode ser, mas, se tiver que escolher, ainda prefiro a nossa [ri]. Até porque o problema da burca é outro: eu não poderia viver sem me relacionar com o rosto da pessoa. Mas os valores de beleza não são fixos, então não sei se existe uma ditadura. Por outro lado, que exista uma certa ditadura da beleza, sendo que a definição de beleza muda, não me incomoda. Beleza não é necessariamente a simetria dos traços. A beleza pode ser completamente inesperada, pode ser a assimetria, pode ser uma cicatriz no rosto.
MC: Só que existe a forçação de barra em relação a um padrão.
CC: Mas que a gente tenha esse exigência social é uma conseqüência do fato de sermos uma sociedade em que o olhar dos outros é extremamente importante para definir quem somos e como nela nos situamos. É chato? Sim, mas acho muito interessante que a gente possa ser o que os outros vêem, não exatamente no sentido da mentira e da ilusão, mas no sentido de que a gente pode conquistar o olhar dos outros.
MC: Essa vida moderna, cheia de limitações e imposições, dificulta a busca da felicidade?
CC: Não tenho muito interesse pela felicidade. Eu vivi os anos 60, fiz tudo o que me interessava, passei um tempo na Índia e no Nepal, e poderia ter ficado por lá, nas drogas, se a felicidade me interessasse. Moraria até hoje em Katmandu, meio pelado, com os macacos, passeando pelas lojas que vendiam tudo o que alguém poderia querer, em várias qualidades e quantidades, a preço de banana. Se quisesse a felicidade, por que teria saído de lá? Não é a felicidade que me interessa. O que me interessa é a vida, é a intensidade das experiências, boas e ruins. Se tiver que curtir uma dor porque morreu meu pai, ou meu cachorro, ou me separei de alguém que eu amava, é para chorar mesmo, e chorar é legal, faz parte de sentir a experiência.
MC: A gente não sabe sofrer, é isso?
CC: Ou isso ou a gente foi convencido pela idéia de que o sofrimento não deve fazer parte de nossas vidas. Isso é um aspecto psiquicamente higienista. Uma espécie de intervenção médica em cima da nossa vida. É extremamente desagradável essa idéia de que o sofrimento seja considerado patológico, isso é uma loucura. Claro, é evidente, se alguém considera se matar porque perdeu o relógio, aí existe uma desproporção, mas a idéia de dizer: 'Ah, morreu seu pai e eu vou medicá-lo para que você atravesse o luto corretamente' acho um absurdo, uma merda.
MC: Uma merda que não tem solução, já que vivemos em um mundo no qual a indústria farmacêutica precisa da doença para sobreviver.
CC: Sim, mas, por outro lado, essa indústria já operou prodígios e hoje cura doenças que eram incuráveis. Veja, eu tenho a tendência de avaliar a sociedade em que vivemos com os valores dos anos 70, que foram aqueles que me influenciaram. Então, tomemos, por exemplo, o sexo. O mais extraordinário instrumento de controle sobre a vida sexual foi produzido pela aids, e isso é uma coisa que se fala muito raramente. A gente se esquece de que tem aí pelo menos duas gerações que transam de uma maneira exótica e inusitada. Tudo bem, camisinha é legal e obrigatório, por mais que o Papa ache que não. O problema é que a maneira de transar mudou completamente. Com camisinha, primeiro você tem que ter uma ereção, depois coloca, depois penetra, depois tem que ficar até gozar, depois tira e joga fora e aí acabou e cada um vai tomar banho. Mas antes disso transar era ficar ali por 20 minutos, pára, bate um papo, toma um café, se beija, se chupa, explora... era uma dinâmica completamente diferente. A relação com o corpo do outro era completamente diferente. As relações sexuais se tornaram caretas e pragmáticas.
MC: As personagens femininas do livro são muito marcantes. Em quem foram inspiradas?
CC: A personagem central foi inspirada em minha mãe.
MC: Uma mulher forte, imagino.
CC: Meus pais tiveram que fugir do fascismo e foram para as montanhas porque meu pai estava sendo perseguido e, se fosse pego, seria fuzilado, deportado etc., aquelas coisas menos agradáveis do que ir para as montanhas [ri]. Eles fugiram com o meu irmão, que tinha 1 ano. Passaram o inverno de 44, que foi um inverno particularmente rude, acima de 1.800 metros, acampados em áreas de resistência. Eles ficaram ali até a chegada dos aliados, que determinou o fim da guerra, em 45. Mas, para uma moça de 19 anos, da classe média de Turim que, até a guerra, jogava tênis e estudava grego antigo todos os dias, passar por isso durante o inverno com um menino de colo é um negócio curioso. Revela força de caráter especial.
MC: Você não passou por isso?
CC: Eu nasci bem depois da guerra, em 48. Mas a Itália ainda era um lugar diferente. Na minha rua, a cada duas ou três casas, uma era escombro. Milão, onde nasci, tinha sido fortemente bombardeada. Então, eu era um garoto cercado por uma grande penúria, por um mundo em que os antibióticos eram coisa rara e a comida não era tão disponível.
'Os médicos me disseram que eu tinha dois anos de vida. Tive que fazer um balanço e pensei: 'Foi bom!''
MC: Você se tornou um cidadão do mundo muito cedo na vida, não?
CC: Aos 14 anos, mais exatamente, quando fugi de casa.
MC: Fugiu de casa?
CC: Fui para Londres. Meu filho nunca fez nada parecido, graças a Deus [ri].
MC: Seus pais te maltratavam?
CC: [Ri] É que estava muito apaixonado por uma moça canadense que estava morando em Londres. Tinha ido passar as férias de verão em Londres e lá a conheci. Achei que era uma grande história de amor e nem cogitei pedir a meus pais que me deixassem ir morar em Londres, não haveria negociação possível. Então, voltei para Milão, fiz minha mala e fugi para ficar com ela.Eu sempre fui assim. Uma hora, voltei para casa.
MC: Depois de quanto tempo?
CC: Depois de um ano. Ela voltou para o Canadá e eu não sabia o que fazer em Londres sem ela. Liguei para os meus pais e eles me mandaram uma passagem de volta em um trem de segunda classe [ri]. Bom, mas eu lembro que estava com muita fome, porque estava sem dinheiro há vários dias, e que meu irmão, quando soube que eu estava voltando, pegou seu carro, que era um Fiat 500, e dirigiu até a fronteira só para me entregar um sanduíche. Esse foi o grande ato de amizade de meu irmão comigo.
MC: Como você se sustentou em Londres com 14?
CC: Lavei pratos em Baker Street, vendi pulôveres em frente ao British Museum, chamei clientes italianos e franceses na frente de uma boate de strip-tease no Soho à noite...
MC: Era um rebelde sem causa?
CC: Eu adorava os meus pais, me dava superbem com eles, nada me incomodava. Apenas queria viver esse amor, e esse amor estava em Londres e era para mim muito mais importante do que a escola ou outra coisa qualquer.
MC: Você gosta da frase de Lacan que diz: 'A gente não aguentaria nossas vidas se não tivesse certeza de que vai morrer'?
CC: Muito. E contrariamente do que possa parecer, não acho essa frase depressiva, porque não acho a morte uma coisa horrorosa. Claro que a gente pode ser tomado por um grande desconforto quando pensa que a vida vai acabar, no sentido de tentar entender o que foi isso e o que passamos aqui. Mas nós somos tomados pela idéia de que o sentido da vida é a duração dela. Ou seja, a vida só teria sentido se durasse para sempre.
MC: Isso se reflete no amor?
CC: A gente fala de uma relação fracassada porque durou apenas seis meses, ou apenas dois anos. 'O meu casamento fracassou porque durou apenas cinco anos.'Quem disse que a duração é um índice da qualidade do relacionamento? E isso vale para a vida. O que faz uma vida valer a pena ou fazer sentido é a qualidade do que foi vivido. Eu levanto para os pais de adolescentes essa questão. Eles estão sempre tentando entender o que devem fazer para que o filho se prepare para o futuro. Isso, claro, é crucial, mas por outro lado a gente nunca deve perder de vista que os filhos não estão se preparando para o futuro, eles estão vivendo agora, a vida deles é agora. Então vale a pena sempre pensar: 'E se meu filho morresse amanhã, qual o balanço da vida dele?'. É doloroso, mas é importante.
MC: A morte não mete medo?
CC: Há dez anos tive um diagnóstico chato, apavorante, que, graças a Deus, não deu em nada. Mas tive que encarar, fazer uma cirurgia e só aí o médico disse: 'Olha, desculpa, a gente abriu por nada, não tinha nada'. Tá certo, melhor assim. Mas, durante meses, achei que ia viver no máximo dois anos, era o que os médicos diziam. Foi uma experiência interessante porque tive que considerar que morrer ia ser triste, mas que, por outro lado, tinha feito coisas bacanas. Claro que tinha coisas que eu gostaria de fazer e não ia mais dar tempo, como, por exemplo, escrever esse romance. Mas, no fundo, a idéia que ficava é a de que tinha sido uma puta jornada. Eu ia embora em paz. Então, talvez morrer não seja tão ruim assim [ri].
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Clique aqui e confira a estrevista de Calligaris no Programa do Jô.
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